o vento do tempo

faz pouco tempo
um vento, carregando o futuro,
entrou pelo meu quarto

era um vento forte
que fez voar as fotos
e carregava a sorte

vinha de longe
muito mais longe
que do mar e da montanha

vinha do tempo e de suas entranhas

vinha do tempo,
o vento,
do que se anuncia
e já, tão meu,
me enche de alegria

faz pouco tempo,
um vento entrou pelo meu quarto
e, no meu ouvido,
sem tempo,
sussurrou o seu rastro

Felicidade e nada mais

É sexta-feira à noite, e estou em casa, cansada e feliz, alegre por que amanhã, sábado, não terei hora pra acordar, o que não significa que não terei o que fazer… Como tenho! E por isso também me sinto feliz. São coisas que eu escolhi, porque elas me escolheram. Amor! E algumas (menos) que não escolhi, mas que já entendi que é necessário vivê-las porque elas têm algo a me ensinar. E uma coisa me anima nesse instante: escrever sobre a felicidade. Venho refletindo bastante sobre essa coisa que persegue a humanidade, e que perseguimos como um tesouro e, de tanto perseguir obsessivamente, acabamos por encontrar qualquer coisa, menos a tal da felicidade.
Mas hoje estou sentindo algo que se aproxima ao que chamo de felicidade. Então é sobre isso que minha mente inquieta junto aos meus dedos frenéticos a procura das teclas do computador estão querendo escrever. Não realizei nesta vida o que já foi um dos meus sonhos, ser pianista (sonho que talvez nem exista mais, já que outros falam tão mais alto), mas posso me considerar uma pianista das palavras. Gosto de pensar assim. Isso me faz feliz.
Como foucaultiana que sempre fui, acredito que felicidade não é um conceito dado e, a cada época, se reconfigura de acordo com os interesses e relações de poder estabelecidos. Já houve tempo em que a felicidade estava muito longe, na promessa da salvação, no paraíso, num plano etéreo que definitivamente não era a Terra. Mas acho que ela nunca esteve tão longe quanto hoje. Busca-se a felicidade incessantemente, e o que vemos cada vez mais são pessoas infelizes. A felicidade passou a depender de tanta coisa que se tornou um mundo “ideal” que não existe. Colocamos essa coisinha tão longe e demos tanta importância pra isso que ela simplesmente desapareceu. Sempre achei muito curioso como a sociedade ocidental contemporânea foge da dor como o diabo da cruz. O discurso da segurança é nosso discurso mais poderoso. O medo de envelhecer, um dos nossos grandes medos. A “perfeição” do corpo, uma obsessão. A perfeição como figura social também. Não pode fumar, não pode errar, não pode comer fritura, não pode brochar, tem que ter dentes brancos, pele lisinha, cabelos com brilho e sem frizz. Há que ser excelente em tudo: como profissional, amante, amigo, filho, marido, mulher, e o tudo o mais. Conceito de excelência que vem do conceito de eficiência empresarial. Culto da performance, como o nome de um livro excelente anuncia. Que saco… Bem, deixo claro que não estou aqui defendendo a esculhambação, mas falando contra essa doideira coletiva de achar que existe perfeição. 
Perfeição absolutamente não existe. Só posso acreditar na perfeição que considera o seu contrário, o imperfeito. Acho a imperfeição tão perfeita! Assim como me alegra saber quão imperfeita é a perfeição…  Será que é tão difícil entender algo tão óbvio? É! Primeiro, porque a gente cria mundos perfeitos na nossa cabeça. Segundo, e o que torna o primeiro grave, é que os criamos deslocados da realidade. Felicidade, se existe, tem a ver com realidade. Sonho tem a ver com realidade. Sonhar o impossível não é para os fracos (risos). Sonhar o impossível só faz sentido se você põe o impossível no plano do possível, e corre atrás, mas aceita que, em suma, nada controlamos e que o impossível é imperfeito, e que isso é perfeito…
Felicidade, então, para mim, tem a ver com dor. Que mania essa de fugir da dor… Que mania também de alguns de se afundar na dor e querer se tornar mártires. Acho que felicidade tem a ver com a aceitação da dor. Mas, indo mais além, com a aceitação do convite que a dor proporciona: o do autoconhecimento e do contato fundamental com os mistérios da vida. O mistério é tão necessário a nossa saúde mental! A obsessão científica em tudo querer explicar acaba gerando uma angústia que também coloca a felicidade nesse lugar inexistente… Felicidade tem farpa, tem espinho, tem espelho, tem ponto de interrogação. E ponto de interrogação tem maravilhar-se! Felicidade tem aspereza. Felicidade tem a ver com descobrir que, melhor do que as coisas acontecerem do jeito que você imagina, é a surpresa. Aceitar o tempo das coisas, o tempo do outro, o seu tempo, e deslizar nesse universo de tempos sobrepostos e em colisão ou comunhão, é felicidade. É felicidade ainda saber que tudo passa, tanto a tristeza quanto a alegria. Felicidade é ser agradecido tanto pelos momentos em que houve desespero e nada saiu como esperado, quanto por aqueles em que houve só a alegria daquela calma que sentimos nos momentos em que dizemos: eu não queria estar em mais nenhum outro tempo e lugar do mundo, mas exatamente aqui e agora. Felicidade é isso tudo, que é nada. É só viver sabendo que tudo é transitório. Não consigo negar parte da minha formação budista…
Infelizmente, nossa cultura parece não nos ajudar muito a aceitar a vida, que é caos. É uma cultura da culpa, do medo, da diminuição da coragem, da inflação do ego, da ideia de que ter (inclusive pessoas) é que traz felicidade. Uma cultura do “perfeito”… Impossível não lembrar de Nietzsche nessa hora e dos quatro grandes erros de “Crepúsculo dos Ídolos”, que talvez tenham movido Zaratustra a subir e descer a montanha, porque a felicidade se encontra nos dois atos, e na descoberta trágica do eterno retorno. 
Hoje, nesse exato momento, eu digo “estou feliz” e isso me soa sincero. E sabe por quê? Porque eu sofri. E porque eu ri. Porque eu levei mais de dez anos praticando yôga para começar a entendê-la. Porque eu tive coragem de ir pra onde deveria ir e tive coragem de voltar pra onde deveria voltar. Porque eu rompi, mesmo com medo. Porque eu conectei, mesmo com medo. Porque eu olho no espelho. Porque eu errei e aprendi com o erro. Porque eu sei que vou errar mais, diante do novo, e isso não me assusta, porque o novo é absolutamente o que move a vida. Cada dia que passa é um novo dia. E acho que é tudo isso, essa movimentação, que me proporciona experiências e conexões incríveis. O universo se move, tudo no universo se move. Tem um amigo que diz que somos a consciência do universo. Se a gente não se move, o universo nada faz por nós, já que somos uma coisa só. Então, no fundo de tudo o que eu poderia listar como “segredo” da felicidade, talvez esteja esta simples, mas não simplista, ação: movimentar-se! É jogando a bola para o universo que ele joga de novo pra você, como diz um outro amigo. E como diz um outro ainda, quando o desejo é sincero, e não interesseiro, as coisas acontecem. Talvez isso nem seja desejo, mas simplesmente existir conforme o que te move. Ser o próprio universo, simplesmente. O infinito está dentro da gente… Logo, a felicidade também. Tem coisa mais fácil de entender e mais difícil de viver? Óbvio que agora cheguei num ponto daqueles altamente complexos: será que é mesmo só uma questão de movimento? Pois algumas pessoas parecem ter sorte enquanto outras parecem ter um azar danado… Mas sei lá. Isso é mistério, e ainda bem. Se já estivesse tudo resolvido, que graça haveria em continuar? É como aquela música do Moska: “então me diz qual é a graça, de já saber o fim da estrada, quando se parte rumo ao nada…” Nenhuma. O bom da vida é que ela é uma aventura! 

Àquela que se perdeu

basta
todo jogo pálido
toda cena estúpida

chega desse jogo barato

pareces não saber mais
como se vive…

mostra a cara limpa
e deixe tudo claro

isso é raro?

cansada de toda farsa esquálida
escarro no teu rosto inválido
a fome de viver

escarro em tua alma morta
que esqueceu o que é paixão
o meu tesão bandido em viver

que triste tu és
alma pequena
que sequer consegue
murmurar desejos

tu
que teces fios sórdidos

pensas que não vejo!?

estou de olho na forma como costuras
e tenho pena de ti

tu que sofres e sequer se olhas
tu que levaste da vida porrada ácida agora
e nem assim

tenho pena de ti

mas esqueço
porque não tens por si
mais nenhum apreço

e grande é meu desejo
de sair por esse mundo
a alimentar música, poesia
e o beijo mais doce e quente
que já conheci um dia

sabe quando um homem te arrepia?
acho que tu já esqueceste…

talvez haja tempo
que ninguém lhe beije

tenho pena de ti
e digo

a paixão dá sentido

se esqueceste de si mesma
nada mais posso fazer
que ignorar-te

e viver a plenitude da mulher selvagem

porque sou mulher apaixonada
pessoa inflamada de arte
que olha com desprezo o teu mundo burocrata

se ninguém mais te beija
nada posso fazer que prestar-lhe
o meu pesar

mas falo da verdade do beijar

quem se esqueceu
também atrai quem já morreu

nada mais posso fazer
a não ser
desejar-lhe
sem remorso
que seu coração se acalme
e adoce sua alma disforme
para que um dia
possas ter também
a sorte
de ter o beijo do homem
que te refaz da morte

pois, de tão certo,
resignifica teu sexo
e, jubiloso,
sagrado o faz

não entendes o que digo?
muito sinto

pena não te ver
fazer valer o instinto

quem se perde de si
perde tudo

empobrece o mundo com o medo
e apequena a humanidade

tanto esforço inútil
por receio
da liberdade