Pra que serve a poesia

se não servir a poesia
para nada
prefiro não ouvi-la
não sou adepta do vazio
da palavra
que, aqui, uma vez dita,
– a física garante –
produz nota na cítara
do outro lado do planeta

que me sirva, a poesia!
como me serve um prato
de carne suculenta
ou prefiro esquecê-la

para quê poesia
se não me lembra, ela,
da vida latejante
que existe para além
do cansaço

deve servir sim!
para lembrar
o absurdo risível

que nada é tão absurdo
que não possa ser possível

Humano, demasiado humano…

Hoje, voltando para a casa, me peguei metafísica. Pensava na vida, como quem olha pra muito longe. E eu realmente olhava. Pela janela do metrô. De onde não se vê nada, a não ser dentro de si mesmo – um lugar longe… Por alguns instantes, fiquei tentando encaixar as peças de um nebuloso quebra-cabeças ao qual o meu desejo está profundamente vinculado. E esqueci que eu estava num vagão de metrô. Minha estação é a última e, às quase dez da noite, são poucos os que ficam para descer. Depois que o trem parou na penúltima estação, ficamos três naquele vagão. E, então, eu me vi de novo no mundo exterior. Lembrei haver um corpo que interage e que estava presente em um determinado lugar quando os meus dois companheiros de vagão me chamaram a atenção. Um homem e uma mulher, jovens como eu, caminhando ali pelos seus trinta e poucos anos. Sozinhos os dois, como eu estava. Ela chorava, com uma melancolia tão grande no rosto que chegou a partir meu coração. Olhava também para dentro, pois chorava aquele choro que pergunta. Ele fixava seu olhar num ponto fixo no banco da frente, imóvel, como quem quisesse também encaixar peças de um complexo tabuleiro onde a vida corre e não nos dá a chance de pararmos o tempo e decidirmos o que fazer. A gente simplesmente tem que decidir enquanto a ampulheta está virada e no meio de tudo o mais que não somos capazes de controlar – quase tudo. Por uns instantes, ele me olhou e eu retribuí, e ele balançou a cabeça como quem diz: é, estamos todos no mesmo barco!
Pois percebi que éramos três seres humanos que não se conhecem, mas estavam ligados naquele mesmo momento pela perplexidade que é viver – e, talvez, por um sentimento comum, aquele que existe na pergunta: mas o que foi que aconteceu mesmo? O silêncio, o choro, a introspecção, são formas que encontramos de tentar dar conta do inexplicável. Eu buscava ouvir a minha intuição, pois ela anda cada vez mais acertando o alvo direitinho. Eles, talvez. Mas estávamos, os três, impactados por isso que parece ser uma mistura de destino com livre arbítrio absolutamente misterioso: a vida. Meu cérebro tentava juntar tudo que compôs o dia, desde um sonho que me acordou assustada às 5 da manhã à curiosas conjunções; as mensagens surpreendentemente afetuosas que recebi e, por outro lado, uma bem hostil, que me lembrou que não tenho sangue de barata – e me fez perguntar porque, às vezes, somos tão reativos, como se tivéssemos que reagir sempre a tudo –; além dos silêncios, das fugas – as reais e, não, as musicais –, dos novos afetos e daqueles que insistem e apenas crescem e vão ganhando novos contornos. E tudo que me põe pra baixo e tudo que me põe pra cima. E me senti aliviada. Aliviada em perceber como, assim como disse o meu desconhecido amigo do metrô através do seu olhar, estamos todos no mesmo barco. 
Na vida, ninguém ganha nada, ninguém é nada, ninguém sabe de nada, mas podemos ser tudo, justamente por isso, ou seja, quando reconhecemos isso. Somos todos frágeis, entregues na mão do destino, à mercê da roda da fortuna. Mas também somos todos fortes, donos da própria escolha, conscientes de nosso valor, magos e dançarinos. Pena que o medo nos domine, ao invés de nos servir apenas para a preservação. Ele aprisiona e impede que muita vida seja vivida. E, assim, a gente não aceita bem a fortuna nem usa bem a chance de escolha. Por isso, penso cada vez mais como um grande amigo que, com sua sabedoria, diz que é preciso menos medo e mais cuidado. Penso também que é preciso mais loucura. Risco. Arriscar chegar perto do que nos assusta. Sempre achei que é aí que reside a maior libertação: quando a vida nos coloca dependurados de cabeça para baixo, perto do abismo. No Tarô de Marselha, uma das mais intrigantes e completas representações da jornada humana, depois do Enforcado vem a carta da Morte. Porque depois que a vida sacode seu ego e te coloca de cabeça para baixo, morre um monte de coisas que não serviam mais. Mas, para isso, não se pode lutar contra o destino de ser posto de cabeça para baixo. É uma escolha sábia aceitar, trazendo a tona o louco que ronda a nossa psique o tempo inteiro (a carta zero do tarô) – a tal ponto que se começa a dançar com o destino doloroso. Então, vem a morte para, finalmente, depois dela, vermos revelar-se diante de nossos olhos um caminho mais leve, mais fácil, mais nosso – iluminado até a dança final, a dança do mundo. Acho que, no fundo, todo ser humano tem os mesmos profundos desejos de viver com menos peso e mais amor. Isso nos conecta. Só que a gente leva tempo para descobrir que antes de encontrarmos leveza e amor em qualquer coisa fora da gente, eles existem dentro de nós. Alguns se perdem por isso, por não saberem como lidar com o fato de que é dentro da gente que tudo existe primeiro. E a nossa sociedade os condena por isso. Mas nosso louco está sempre pronto a nos ajudar a nos tornar sãos. E, na verdade, acho que era sobre isso o meu sonho. Na verdade, acho que é sobre isso que talvez pensasse o homem ou por isso chorava a mulher. Quando a vida mostra a cara, a gente só quer um pouco de alívio. Mas percebemos que ele não vem de um dia para o outro. É preciso uma longa jornada – que começa em uma franca conversa consigo mesmo diante do espelho mais cristalino em que possamos nos ver, que revela tudo: o que se quer e o que não se quer. Uma longa jornada. Já que insistimos em criar tantos muros, lanças e espadas…

Aos nossos contadores de história que se foram…

Ariano Suassuna, que nos deixou hoje, disse certa vez: “o homem nasceu para a imortalidade. A morte foi um acidente de percurso”. Em poucos dias, a morte chegou para três grandes pensadores e escritores brasileiros: João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e o próprio Suassuna. Tive a sorte de conhecer dois deles: João Ubaldo e Suassuna. E me deixar inspirar, como ser humano e como escritora. Talvez, seja mesmo a imortalidade que guie um criador a produzir sua obra. E não se trata de ego, mas de uma missão dada pelo universo. Desde o seu início, há alguns trilhões de anos, todo o universo conta a sua história e a mantém eterna. Meteoros carregam bactérias capazes de sobreviver por muito tempo, mais tempo do que nossa capacidade humana é capaz de imaginar. Cada semente conta a história da planta que lhe deu origem e da próxima que ela originará. Nós, seres humanos, contamos nossa história e nossas histórias de inúmeras maneiras: pela palavra, pela tecnologia, as ciências, as imagens, a música. Pelo amor que perpetua a espécie. Se tem algo que une tudo que existe no universo, além do fato de sermos todos poeiras de estrela, é o fato de que tudo o que existe é capaz de, à sua maneira, contar uma história, a história do cosmo, da vida e do planeta, e se manter imortal. Por isso, considero o ofício de narrador um dos mais bonitos. Ele nos torna eternos. Ele faz a vida humana se espalhar pelo tempo infinito do universo. Um brinde aos nossos grandes narradores!
Uma alegria:

Cheiro de rosa

um cheiro de rosa invade a minha sala

se é incenso vindo de fora
se é paixão que insiste no peito
que importa

fato é que um cheiro de rosa
bate à minha porta

e devaneio

abro a garrafa de vinho
escrevo mais um soneto

enlouqueço
e cedo à tentação
de deixar escorrer pelo meu corpo
um cheiro persistente

que insiste em ser presente

mas canso
e me entorpeço

desabo
em direção a fonte
do espasmo

e me deixo
exausta

à mercê da tua estrada
à guisa das tuas madrugadas
sonhando contigo
a me acordar em noites calmas
delirando o abismo
de desejar estar sempre em tua jornada

estando

vivendo contigo
a construir
realidades novas

o que estamos fazendo
senão traçando, juntos,
uma estrada sinuosa?

um cheiro de rosa invade a minha sala
e sei que daí, a partir destes dias,
pensas que não sabes mais o que sentir

e eu…

eu não sei

apenas canto
tua maravilhosa presença

ensimesmando
com tanta
persistência

O amor tranquilo

então, era isso!
de uma simplicidade estonteante!

então era assim que, o tempo todo,
ele estava programado para chegar?

silencioso e sem querer

no frio de uma madrugada de inverno
depois da calma de um dia de sol
que renovou a fé nos dias que virão

então, era só isso?
e eu não precisava ter sofrido tanto?

mas, desconfio:
o sofrimento é que nos traz
o sentido da leveza
e a sua grandeza

então, o tempo todo,
ele esteve comigo!

porque nunca não haveria de estar
eu apenas não o via
mas, desde sempre,
ele esteve respirando
em meu ouvido

então, era só isso…
simples, fácil, óbvio
e, por isso, belo

como o sol descendo no horizonte
ao som do bolero de Ravel

O substantivo vida

se perguntassem a um poeta o que é a vida
carbono seria estrela

vida é aquilo que existe quando a gente ama!
e sente dor de estômago

é o cheiro que enjoa
e a luz que dificulta abrir os olhos

é quando bate a saudade
e nasce alegria de ouvir a voz querida

é carinho desejado
e acontecido
vértebra cintilando
o investido

vida é dor
dor nas vísceras

é quando os músculos se contraem
as lágrimas caem
o peito se apavora

vida tem gosto de vinho, azeite e amora
e é a lida que começa cedo para fazer o pão

é o moinho girando
a água cantando na pedra
o som da máquina do mundo
o cabelo ao vento
um poço bem fundo

tem cheiro de delírio
gosto de ser amado
tato de mar salgado
visão de deserto longo

vida é o estilhaço
das cordas renascidas
e o sopro que anuncia o susto

da morte

às vezes,
a vida parece uma falta de sorte
e é um grande espanto

no entanto,
é a notícia dela,
da sua chegada,
a notícia da certeza
de que sentir-se vivo
é, antes de tudo,
sentir-se estrela!