A Sombra do Brasil: uma análise do bolsonarismo pelo olhar da Psicologia Analítica e da Psicologia das Massas

Está escancarada para quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir, ou seja, os olhos e os ouvidos da consciência, a violência linguística, simbólica e material do discurso e da prática política de Jair Bolsonaro e os seus. Diante disso, fica uma pergunta: como há quem ainda defenda Bolsonaro e seu projeto de Nação? A resposta é tão simples quanto complexa.

Ao utilizar-se de uma psicologia fascista, Bolsonaro se tornou um avatar da Sombra coletiva do Brasil, liberando dos esgotos os bichos escrotos, aqueles que acreditávamos ter sumido no decorrer da história ou, pelo menos, existir em pouca quantidade. Mas eles estavam apenas adormecidos, esperando a melhor condição para despertarem. Uma psicologia fascista é pautada pela ocultação de informações, a criação de bodes expiatórios e de factóides, a produção de ódio e de medo e a desconsideração pela historicidade da sociedade e de suas instituições. Ela mobiliza, assim, afetos sombrios da psique humana. Mas para que ela ganhe força em uma sociedade, há que haver condições de possibilidade. A partir de 2013, vimos uma insatisfação profunda tomar conta do brasileiro, vazio esse que foi manejado politicamente de forma cruelmente sagaz, fazendo com que, a partir de 2018, Bolsonaro começasse a receber uma imensa quantidade de projeção psíquica, o que, em um país onde o incentivo ao autoconhecimento é nulo, tornou-se uma bomba relógio. Bolsonaro passou a ser uma representação da sombra coletiva do nosso país. Essa hipótese, no entanto, não é minha nem é uma novidade. Não ao menos no campo da Psicologia Analítica, criada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que é a psicologia que eu estudo. Mas eu quis trazer a minha visão. Mesmo porque, a maioria das pessoas que me leem são leigas nesse campo do conhecimento ou o conhece mais de um lugar de curiosidade, e buscam por mais referências para refletirem e agirem sobre a situação do Brasil atual. Apresento aqui uma referência.

Desde que passei a me aprofundar na obra de Carl Jung, assim como na psicoterapia junguiana como paciente, minha compreensão sobre a cultura e a sociedade ganhou novas e fundamentais nuances, de tal maneira que fiz uma inversão no objeto das minhas pesquisas: coloquei os estudos do mundo interior na frente dos estudos do mundo exterior. A psicologia profunda no geral, que é toda psicologia que considera em suas análises e em seu trabalho a hipótese do inconsciente, como a Psicanálise e a própria Psicologia Analítica, tem muito a dizer sobre nós. Precisamos dela, pois o nosso maior mistério é a nossa psique. Sabemos mais sobre o espaço e o mundo fora de nós do que sobre nós mesmos, e isso pode ser a causa oculta de todas as nossas tragédias. Dito isso, vamos ao que o texto se propõe.

Em 1918, ano que marca o fim da Primeira Guerra Mundial, Jung escreveu que os conflitos na Europa naquela época deveriam ser vistos não apenas pelo ponto de vista materialista, pois, no fundo, eles se tratavam de uma crise psicológica. A Alemanha foi um dos países que saiu devastado da guerra. Em consultório, Jung observou nos seus pacientes alemães, no período entre as duas guerras, a recorrência de certos sintomas. Imagens se repetiam nos sonhos e fantasias daquelas pessoas. Eram convulsivas, coléricas, embriagadas, e reivindicavam seu lugar na consciência, desejando “tomar o poder”. Tais características também apareciam na arte e na filosofia da Alemanha já fazia um tempo. Alguns anos depois, o Nazismo ascendeu e, junto com ele, Adolf Hitler encarnando essas características presentes nos sonhos e fantasias dos alemães em crise, como um avatar da sombra coletiva. À época, Jung fez uma análise trazendo à cena o deus germânico das tormentas e da embriaguez, Wotan, correspondente do nórdico Odin. Patriarca autoritário e imoral, Wotan está sempre em busca do Anel do Poder. Quem conhece o ciclo operístico de Richard Wagner, O Anel do Nibelungo, conhece bem essa história. Para conseguir o que quer, Wotan faz de tudo. Disfarça-se como poucos e sabe falar o que deseja ser ouvido. É um mestre das ilusões, da manipulação e da corrupção, cuja ira apazigua-se apenas com sacrifícios de sangue (com bodes expiatórios). Senhor do clima, é intempestivo e imprevisível. Tem os seus escolhidos, mas mesmo esses vivem sob o perigo do seu humor oscilante em sua sede de poder. Em uma Alemanha desmoralizada, marcada ainda pela história ocidental de negação do Eros, ou seja, de negação das emoções e do prazer, conforme analisa Jung ao olhar para a história do Ocidente, eis que “Wotan emergiu”, ou seja, eis que o impulso de Eros despertou em sua forma diabólica – geradora de caos e violência – na ideologia nazista.

Por séculos, o cristianismo na Europa associou intempestivos deuses pagãos ao diabo, o que significa o mesmo que dizer que as emoções e as paixões são o Mal, o erro. O resultado disso é medo, culpa e vergonha na consciência. A cultura do Iluminismo também negligenciou esses aspectos, como se fossem expressões menores e primitivas do humano. Assim, as potências apaixonadas e emotivas dos indivíduos foram sendo negligenciadas, jogadas para um canto escuro da psique. Mas a psique é uma totalidade e não exclui nada. Aquilo que é negligenciado ou massacrado dentro de nós, um dia reivindica o seu lugar e, quando vem à tona, nos possui. É assim que nascem os sintomas neuróticos e psicóticos. Tais emoções reprimidas foram crescendo no submundo da psique dos alemães por séculos, despertando como um vulcão quando a Alemanha mergulhou em crise após a Primeira Guerra, numa erupção histérica. Não é assim que agimos quando somos negligenciados, esquecidos ou feridos e nos deixamos dominar pelas emoções? Como um vulcão que explode? A Alemanha em crise fez um Wotan negligenciado e ridicularizado acordar do seu sono milenar, “possuindo” os alemães e dando origem a uma paranoia coletiva delirante. O Nazismo deu expressão ao que acontecia no inconsciente coletivo alemão. Claro que essa possessão não é literal. Lembro aqui que estou falando de psicologia. Mas também não se trata de simples analogia. Wotan, nesta análise, aparece como um símbolo vivo produzido espontaneamente pela psique. Não precisa ter o nome de Wotan. É preciso apenas reconhecê-lo como uma expressão de aspectos da psique. O símbolo, segundo Jung, é “o que representa o indizível de forma insuperável”, como podemos ler no volume 6 de sua Obra Completa. Símbolos são produções espontâneas da psique que emergem do inconsciente por necessidade da psique de se equilibrar, conduzindo a nossa ação na realidade física, material. Não são apenas um signo, uma imagem pura e simples, mas energias e potências psíquicas materializadas. São expressões de modelos e padrões de comportamento muito arcaicos, constituintes e definidores da psique humana, os arquétipos, os quais não podemos conhecer diretamente, mas apenas através de imagens arquetípicas. Tais imagens também não estão sob o controle da nossa consciência. Elas se manifestam a nós, emergindo do inconsciente. Os deuses são imagens arquetípicas muito antigas. Eles espelham os nossos dramas internos. Nunca foram deuses de fora, mas de dentro, e carregam características nossas de forma projetada. Justamente por essa antiguidade e pela importância que possuíram nas culturas, ainda viveriam dentro de nós. É por isso que Jung dizia que no mundo contemporâneo “os deuses não morreram”: eles se transformaram em sintomas.

No parágrafo 411 do volume 10 da Obra Completa de Jung, lemos: “no momento em que o mal irrompe no mundo, ele já eclodiu por toda a parte no âmbito psíquico.” Essa emergência de Wotan não pode, então, ser vista como uma coisa planejada por uma mente doentia para colonizar as demais, mas como uma expressão coletiva que deu match com a mente doentia de Hitler. Trata-se de um vínculo neurótico, como diz a Psicanálise, onde aquele que tem uma dor dentro de si, mas não a acessa pela consciência, procura inconscientemente por algo ou alguém para receber a sua projeção. Quando os alemães, e o mundo ocidental no geral, perceberam o que se passava, o que se deu somente após o choque que foi produzido na consciência diante de um mal tão devastador – tão humano que projetá-lo em imagens como o diabo já não fazia mais sentido -, o estrago já estava feito e não havia como voltar atrás, apenas como parar a máquina.

O mal se alastra dentro de nós sem que a gente sequer perceba, quanto mais inconscientes de nossa natureza nós estamos. Portanto, não nos consideremos distantes da Alemanha Nazista e aprendamos com a História. Quando os eleitores de Bolsonaro saem em sua defesa mesmo diante de tantas evidências de violência linguística, simbólica, física, material e moral, eles estão apaixonados pelo próprio mal dentro de si sem nem saber, porque, de alguma maneira, esses afetos dão sentido às suas vidas. Eles suprem vazios. Nos parágrafos 417 e 418 do mesmo volume 10, lemos algo que poderia facilmente ser aplicado a boa parte dos brasileiros e a Bolsonaro: “Uma vez que ninguém pode sair da própria pele e abandonar a si mesmo, o mal que se encontra por toda a parte é o mal de si mesmo. Chama-se a isso de neurose histérica. (…) Todos esses sintomas, a completa cegueira acerca do próprio caráter, a admiração autoerótica de si mesmo, a depreciação e atormentação dos demais (com que desprezo Hitler falava de seu povo!), a projeção da própria sombra, a falsificação mentirosa da realidade, o ‘querer impressionar’ e impor, os blefes e imposturas, reúnem-se naquele homem que foi dado clinicamente como histérico, mas que um destino curioso transformou durante 12 anos no expoente político, moral e religioso da Alemanha. Será isso um mero acaso?” Eu pergunto: qualquer semelhança é mera coincidência?

A partir dessa perspectiva, podemos compreender que toda crise ou convulsão social é sempre uma crise psicológica, não apenas material. No entanto, a perspectiva materialista não precisa ser descartada. Eu acredito que ela ganha em profundidade com a perspectiva psicológica, porque esta vai ao cerne da questão, lá onde toda a vida material tem sua origem: na psique humana. A compreensão da psique talvez possa nos explicar melhor por que, como escreveu Karl Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Sei que unir a Psicologia Analítica com as teses de Marx não é fácil, e nem sei até que ponto isso é possível. Mas acredito que o estudo da psique pode revolucionar nosso entendimento da política e da sociedade, porque estamos sob o domínio da psique, não o contrário. A psique não é algo que nós temos e manipulamos ao nosso bel prazer. É ela que nos tem e nos atravessa. Ela nos acontece! A maior parte da nossa vida é guiada pelo inconsciente, essa parte desconhecida do nosso psiquismo. Mas apesar da força cultural desta hipótese no mundo atual e do quanto a atividade clínica consegue comprovar o poder do inconsciente através de seus efeitos na consciência, o Ocidente ainda carrega séculos de crença num sujeito psicológico totalmente consciente, como se consciência fosse sinônimo de psique. O resultado disso é uma cultura na qual a razão possui centralidade, mas ao custo do extrarracional, por demonizar as emoções e as paixões em nós, o que faz com que essa força ecloda das piores formas possíveis, já que é impossível se desvencilhar dessa expressão psíquica. A tese de Jung é que mesmo a religião no Ocidente foi racionalizada, transformada numa lista exaustiva de ritos, regras e explicações que acabou por tirar a conexão do ocidental com a experiência interna, profunda e individual do sagrado, abrindo espaço para um vazio existencial perigoso, que é a causa das neuroses do mundo branco civilizado, logo, a causa de nossas violências. Essa cultura branca intelectualizada, capitalista e patriarcal, que se quis e se quer hegemônica, ainda sufocou e sufoca as demais, tentando impor a elas, na base da força, a sua lógica de um mundo esquadrinhado e controlado, o que nunca deu certo nas profundezas da psique. É da natureza da psique buscar seu equilíbrio, como numa espécie de homeostase. Logo, quando a balança psíquica pende para um lado só, ela desperta o que foi negado de maneira colérica, o que se manifesta no mundo exterior em forma de violência.

Para clarear um pouco mais essa dinâmica psíquica, entenda que a psique se movimenta no sentido de tornar consciente os conteúdos do inconsciente de forma autônoma. Logo, se não colocamos a nossa consciência à serviço do inconsciente, para que ela ouça, analise, compreenda e integre simbolicamente esses conteúdos, são eles que nos possuem. Enquanto não fizermos o trabalho do autoconhecimento, vamos chamar tudo o que nos acontece de destino, como dizia Jung, mas a verdade é que é somente o inconsciente agindo através de nós. E boa parte dele é coletiva, repleta de memórias e expressões muito antigas que, sem que percebamos, nos toma em vários momentos da vida. Com isso, fica claro que a ideia de que sabemos exatamente quem somos é a nossa maior ilusão. Basta que observemos como as emoções nos acometem ou como os sentimentos e os pensamentos aparecem. Eles não são criados pelo esforço da consciência. Eles acontecem! Temos apenas a impressão de que fazemos escolhas, mas a verdade é que o nosso livre arbítrio é quase totalmente condicionado e moldado por camadas e camadas de crenças, valores e modelos de comportamento de todas as eras anteriores a nós, somadas aos impactos psíquicos deixados por nossa experiência individual e a experiência dos nossos ancestrais diretos, o que faz da psique uma espiral energética que ora volta a sua energia para o mundo exterior, ora para dentro, num leva e traz de memórias, sentimentos, pensamentos, sensações e intuições que nos tomam e nos arrastam. Todo esse desconhecido em nós Jung chamou de sombra. E é ela, a sombra, a parte de nós mais suscetível ao que é chamado de contágio psíquico, dando origem a verdadeiras epidemias psíquicas.

É pelo contágio psíquico que emergem todos os fenômenos sociais, como revoltas, apaixonamentos coletivos, revoluções, crises, convulsões e mesmo os comportamentos de “pequenas massas”, como famílias ou grupos de trabalho. Observe como você age diferente em grupo do que quando está sozinho. Em grupo, nossa capacidade de discernimento fica mais comprometida e somos movidos pelas funções mais inferiores em nós, pelas nossas sombras. Ficamos, assim, mais suscetíveis aos movimentos coletivos. Logo, é pelo contágio psíquico que também nascem os governos autoritários. Nenhum autoritarismo de governo aparece sem que o inconsciente coletivo esteja tomado por emoções que o alimentem. O caso do Nazismo nos fica de ilustração. No entanto, apenas isso não basta. Tais tendências, para virem à tona e se manifestarem concretamente, precisam de condições de possibilidade. No caso da Alemanha, como vimos, foram séculos de uma balança psíquica tendendo para um lado só, o lado da racionalidade, reprimindo as emoções e o êxtase, o que fez emergir a irracionalidade de uma maneira convulsiva e violenta, dando vazão ainda a um antissemitismo que já vinha sendo alimentado na história. No caso do Brasil, temos toda a mobilização da insatisfação de 2013, mas também uma história de opressão, de violência e de descaso que pode tanto gerar a revolta contra quem oprime, quanto um vínculo neurótico com ele, a depender de como as emoções são manejadas. Voltarei a isso mais adiante. Por ora, algo me diz que na base da emergência dos autoritarismos, há uma condição primeira que é o comprometimento do autoconhecimento. Sem uma cultura de valorização do autoconhecimento, as chances de eclodirem epidemias psíquicas é bem maior. Esse comprometimento pode se dar porque condições materiais básicas não estão supridas, como água, comida, abrigo, educação de base. Então, a pessoa sequer tem o que comer ou onde se abrigar, quanto mais pensar em quem ela é. Daí a importância de termos governos democráticos e inclusivos fortes. Já nos casos em que se têm as condições básicas de sobrevivência, o autoconhecimento fica comprometido pelo nosso medo de nós mesmos, o que nos torna extremamente suscetíveis aos afetos destrutivos e ao sentimento de “meu umbigo é o mundo”. E essa é, até agora, a história das sociedades humanas.

O medo é a emoção mais primária do ser humano. Se ele se amplia na angústia, e a conseguimos sustentar, temos algo de bom, pois a angústia é criativa, ela nos move em direção ao autoconhecimento. Mas se ficamos agarrados ao medo primitivo, vivemos como meros fantoches do inconsciente, logo, também do outro. O medo de conhecer a natureza humana em profundidade, que é uma natureza plural e complexa, é o pai do negacionismo, dos preconceitos e do autoritarismo, tanto na esfera íntima quanto na social. É por conta desse medo que vemos, por exemplo, a sombra no outro, mas a negamos em nós. Por isso, projetamos: o outro é o mal, é meu inferno, é a besta do Apocalipse. Assim também, alguns outros são o meu paraíso. Nunca se trata de mim, sempre do outro. Mas na verdade, tudo o que vemos no outro fala sobre nós, ainda que também possa falar do outro. Esse outro vai desde o marido, a esposa, o filho, a amiga e o vizinho, até a celebridade, o político, o presidente e Deus. Sim, Deus! Atenção aqui, pois não falo de fé nem de dogma, mas de como o conceito de Deus é interiorizado. Pelo ponto de vista psicológico, quando estamos muito inconscientes de nós, o que temos como Deus é também uma projeção, como imagem e semelhança principalmente do que não resolvemos internamente com a nossa base, ou seja, pai e mãe. É por isso que para Freud, a religião era uma ilusão. Mas Deus também pode ser uma imagem potente em nós se conseguimos romper a barreira dessa inconsciência.

A inconsciência da própria sombra é também mãe da crença de que sou o filho eleito, o arauto da bondade, o missionário da luz e o mensageiro da verdade. Um narcisismo espiritual que vemos tanto no fundamentalismo religioso, incluindo o cristão, quanto num mais recente, que chamo de fundamentalismo namastê, gerado por pessoas praticantes de antigas tradições orientais, e até mesmo por alguns terapeutas, que acreditam-se superiores aos demais. Pratico yoga e meditação há 20 anos e, desde 2018, só vejo crescer esse comportamento ao meu redor. Há muitos praticantes dessas tradições que também defendem Bolsonaro. Mas não nos enganemos achando que esse tipo de comportamento narcisista só existe no mundo das religiões institucionalizadas e das tradições espirituais. Muitos cientistas também se acham iluminados, logo, superiores ao inconsciente e ao outro, incapazes de perceber suas sombras. Do ponto de vista psicológico, a Ciência pode ser um Deus tão irado quando Javé ou tão salvador quanto o Deus cristão, e alguns cientistas tão fundamentalistas quanto alguns religiosos. É por isso que também há cientistas eleitores de Bolsonaro, mesmo psicólogos, historiadores e cientistas sociais. Existe em nós uma tendência psicológica a confundir a totalidade psíquica com uma imagem de Deus. Quando esse Deus não é o Deus do dogma, ou seja, quando a psique não se satisfaz com Ele, ela vai buscá-lo em outras referências. E essa referência estará condicionada ao nosso nível de autoconhecimento, de consciência. Assim, o Deus que acreditamos acaba sendo imagem do nosso mundo interior e, pela mesma lógica, também os nossos ídolos, que erroneamente podemos vir a chamar de mitos ou lendas, e a adorar como se adora um antigo deus.

Por tudo isso é que Bolsonaro é um perigoso sintoma. Não ele como um simples ser humano. Não podemos dar a ele sozinho esse poder. O perigo de Bolsonaro vem do coletivo. É ele como repositório das projeções das sombras do Brasil, mas assumindo esse lugar e se inflando nele, projetando também a sua sombra em um “grande outro”, como um salvador dos valores de Deus, da Pátria e da família, que nada mais são que valores que expressam a sombra fascista do nosso país: uma mistura explosiva de misoginia, machismo, racismo, homo e transfobia e outras tantas violências a toda expressão da vida que foge do padrão do homem branco hétero civilizado, somadas a defesa da propriedade e da soberania a qualquer custo, bem como da meritocracia, desconsiderando a historicidade dos conceitos e das práticas, como no caso mesmo dos conceitos de Deus, de pátria e de família, que se transformam no tempo e no espaço, não são uma verdade atemporal. Durante um bom tempo, eu me perguntei se Wotan havia “encarnado” no Brasil. De alguma forma, parece que sim, já que Wotan, como imagem do autoritarismo, é um arquétipo. Ele se manifesta de muitas formas em várias culturas. Mas considerando a força do cristianismo no Brasil e o discurso teocrático de Bolsonaro, a imagem que melhor se encaixa nessa “encarnação” talvez seja Javé, o Deus do Antigo Testamento, que não deixa de ser uma espécie de Wotan. Jamais o Deus cristão, isso para mim é indiscutível, apesar de Bolsonaro e muitos de seus seguidores se gabarem de serem cristãos. Mas não tem nada mais distante de Bolsonaro do que o cristianismo real de Jesus Cristo. O “cristianismo” bolsonarista é um legalismo, que ainda carrega em si muito de Javé, apoiando-se em trezentas mil regras acima do evangelho. É um “cristianismo” violento e perseguidor. Mas como diz o pastor e deputado federal Henrique Vieira, “não existe Jesus com arma na mão”. Qualquer leitura do evangelho mostra isso. O arquétipo que parece estar atuando no inconsciente coletivo me soa muito mais Javé, o deus temperamental, senhor dos exércitos, que exige sacrifícios de sangue em troca de sua lealdade e aniquila os que não são o seu povo. Que exige que seu povo seja a sua imagem e semelhança para ser amado por Ele. A diferença é violentada. É um deus que separa e divide, que governa para um só tipo de família e prega a submissão da mulher ao homem. Um deus tão inconsciente de si, que dá liberdade à sua sombra, Satã, para atuar em seu lugar. Foi tomado por ela que infligiu ao crente Jó as piores provações, gratuitamente. E ainda parecia gostar. Havia um gozo mórbido de Javé em fazer Jó sofrer. Imagina, era só uma gripezinha que Jó estava vivendo, não sei do que ele estava reclamando… Um deus autoritário, criador de uma lei que nem ele mesmo respeita, porque Javé sequer cumpre um de seus Mandamentos, o “não matarás”. Logo, é o deus da hipocrisia. Tudo isso pode, de um lado, parecer muito fantasioso. De outro, pode ofender a fé de algumas pessoas. Mas lembremos que estou falando de psicologia, não de dogma nem de fé. Javé está aqui como um símbolo, porque sobreviveu como imagem de uma expressão da psique no mundo ocidental, em suas camadas mais profundas, anteriores a Cristo, que já espelha outra consciência de Deus. Claro que se pegarmos pela perspectiva da Cabala judaica, teremos outras visões do Antigo Testamento. Aqui eu ressalto como ele foi inserido no mundo cristão. Javé não morreu simplesmente após Cristo. Como expressão do mundo interior, ele reside adormecido e pode acordar a qualquer hora. E parece que acordou no Brasil do início do século XXI. Um arquétipo que fala em nome da justiça, uma justiça que muitos seguidores de Bolsonaro realmente acreditam estar fazendo – estou desconsiderando aqui os que estão interessados nas mamatas, mas falando de uma maioria que me parece estar totalmente inconsciente do que faz. Mas essa justiça não é para todos, apenas para os eleitos, os certos, os cidadãos de bem. E sabemos que desejar demais o bem nesse grau de vaidade acaba gerando o mal. Estão também eles possuídos psicologicamente por Javé, ou por Wotan, ou quem sabe pelo próprio diabo que, como escreveu Shakespeare, “pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”. São incapazes, assim, de perceber que o reino de Deus do qual falava Cristo é vasto e não é a sua igreja. É dentro, no meio, entre, jamais acima. Javé é quem está acima, e por isso segue sendo o Deus de quem, em seu mundo interior, está dominado pela lógica do autoritarismo. É uma questão de personalidade afinar-se a Bolsonaro? Também. Pessoas que acreditam mais nas hierarquias fixas, seja pelo lado do prazer de mandar ou do prazer de obedecer, e tendem a não mexer em time que está ganhando por medo da impermanência e da complexidade da vida, são os potenciais eleitores e seguidores de Bolsonaro. Mas como diria Caetano, “tudo é muito mais”. Eu sou uma pessoa de tendência psíquica controladora, às vezes até autoritária, e já causei problemas a mim e aos outros por conta disso. Mas isso não me fez eleitora da extrema direita nem uma defensora de tiranos. O que me diferencia de outras pessoas com as mesmas tendências que eu? Há um conjunto de coisas envolvidas aqui, algumas que envolvem privilégios, o que não posso negar. Mas na base delas está a preocupação com o autoconhecimento, com a autoanálise. A autocrítica constante. Foi ao encarar essa minha escuridão que pude começar a dominar esse monstro, ao invés de deixar que ele me domine. É o desconhecimento da própria sombra, motivado internamente pelo medo primitivo de si mesmo, que leva alguém a simplesmente agir sem refletir, a se deixar dominar por suas paixões em tamanho grau que sequer é capaz de questionar se as suas verdades internas podem ou não gerar violência no mundo. Nesse grau de inconsciência é que “essas divindades nos possuem”.

Mas não importa se o arquétipo que possuiu boa parte dos brasileiros tenha o nome de Wotan, Javé ou mesmo do famoso coisa ruim. O que importa sabermos é que ele é um gerador de caos, violência e confusão que quanto mais é alimentado e provocado, mais poder de violência exerce. Por medo de perder seu latifúndio, mais temperamental se torna, e grita como uma criança birrenta ameaçando o Supremo, o vizinho, a colega da fila, e querendo passar por cima da Constituição em nome de um Deus general. Repito: Bolsonaro é um avatar, um dispositivo que nos revelou tudo o que vivia e fermentava no mais profundo do inconsciente coletivo, o que torna a oposição a ele muito mais complexa do que se imaginou há 4 anos. Estamos vendo o quanto foi necessária uma ampla coalizão de Lula para esse enfrentamento. A política brasileira precisará se reinventar profundamente se quiser realmente se opor ao fascismo bolsonarista, pois uma vitória de Lula não vai fazê-lo desaparecer. E é o Fascismo a sombra mãe de tudo o que temos visto.

Fascismo é uma palavra que assusta algumas pessoas, mas precisamos dar nome aos bois. Por que falar em Fascismo quando se trata do bolsonarismo? Porque a psicologia fascista é a psicologia bolsonarista. O Fascismo, apesar de ter sido um sistema de governo e uma ideologia, pode ser visto também como arquetípico. Eu o vejo como uma expressão radical do ego inflado, do ego que acredita ser a totalidade da psique e ignora o poder do inconsciente sobre ele. Assim, se deseja soberano e quer controlar a realidade. Morre de medo de perder o que é seu e, por isso, se impõe com violência. O ego inflado atua como um chefe de milícia. É paranoico e está sempre buscando conspiradores contra o seu domínio. Pretende-se um latifundiário da psique, um empresário multinacional do psiquismo. Em seu ensaio de 1935, O Fascismo é a verdadeira face do capitalismo, Bertolt Brecht escreveu que “o fascismo é a face mais nua, sem vergonha, opressiva e traiçoeira do capitalismo.” O fascismo é a violência aberta do capitalismo, já sem pudores para ser expressada na manutenção da propriedade e dos poderes de quem detém os meios de produção. Ele passa como um rolo compressor por cima da luta de classes, como se todos vivessem definitivamente sob condições iguais e pudessem, assim, agir e reagir das mesmas maneiras, e desconsidera, igualmente, a historicidade das práticas e instituições sociais. Ignora o próprio movimento da vida, querendo cristalizar a existência e dominá-la. É uma violência que começa dentro, se expressa na linguagem e se expande por todos os lados como violência material. Uma psicologia da imposição do medo, da produção de notícias falsas e de sua divulgação a partir de um investimento pesado em propaganda. Também uma psicologia de culto à personalidade, afinal, o papel daquele que recebe as projeções psíquicas é fundamental para a manutenção do Fascismo.

Não é fácil enfrentar essa psicologia, embora seja urgente que façamos isso. Tratando o Fascismo como um desastre humano, Brecht diz que “devemos mostrar que esses desastres são lançados pelas classes possuidoras para controlar o grande número de trabalhadores que não possuem os meios de produção.” Mas isso é um desafio, já que não basta um projeto de esclarecimento intelectual das massas, uma vez que a própria condição de opressão pode despertar expressões recalcadas e reprimidas na psique que vão gerar vínculos projetivos com quem souber manejar essas insatisfações. O livro Psicologia das Massas do Fascismo, do psicanalista marxista Wilhelm Reich, mostra bem essa relação e traz o debate incômodo sobre por que pessoas em condições de opressão e pobreza se vinculam, muitas vezes, a quem os explora. Por isso, não basta “mostrar a realidade” para quem está imbuído do que Jung chamou de participation mystique, na qual o sujeito está profundamente vinculado com o objeto de maneira que ele não consegue se diferenciar desse objeto. É uma espécie de transe, e para sair dele a pessoa precisaria ou levar um choque de consciência, algo que a mobilizasse psiquicamente de forma que a fizesse sofrer – e isso varia de pessoa para pessoa – ou empreender uma elaboração afetivo-simbólica de sua vida, o que leva tempo e depende de uma disposição interna. Aqui mora a grande dificuldade em lidar com esses processos de contágio psíquico. E em se tratando de Fascismo, a dificuldade é maior, pois nele existe ainda o controle e a manipulação da informação. Nele, há orçamento secreto, perseguição da liberdade de expressão, produção e distribuição de fake news. Como ocorreu na Itália Fascista. Como ocorreu na Alemanha Nazista. O Nazismo pode ser lido como uma expressão fascista ainda mais radical, apesar de ter algumas diferenças em relação ao Fascismo italiano. Hitler, com sua histeria, sabia como arrebatar as massas. Falava o que as pessoas em desespero e com necessidade urgente de mudança queriam ouvir, produzindo o tal vínculo neurótico. Conversava com o que existia de mais inferior nas pessoas, mobilizando suas sombras. É o que Bolsonaro também faz, dentro da sua realidade. Assim como se utiliza de uma estratégia de manipulação de crueldade requintada, também utilizada pelo Nazismo e pelo Fascismo: a escolha de bodes expiatórios para explicar as mazelas do povo, dando cara, nome e cor ao inimigo, ao ladrão da felicidade, estimulando o ódio e, junto dele, o sentimento punitivo. Mussolini, criador da expressão fascismo e de suas bases, em seu primeiro discurso como Primeiro Ministro da Itália, antes ainda de se tornar governante soberano, disse: “com trezentos mil jovens totalmente armados, determinados a fazer tudo e quase misticamente prontos para o meu comando, eu poderia punir todos aqueles que difamaram e tentaram manchar o fascismo.” Percebe alguma semelhança com falas de Bolsonaro? Alguém aí se lembra do eliminar a petralhada? No entanto, também não podemos esquecer o passado, e precisamos ir mais além, quando começou toda a demonização de Lula e do PT, antes mesmo que Bolsonaro chegasse à presidência. Bolsonaro, definitivamente, foi uma criação do inconsciente coletivo.

Algo muito parecido aconteceu também no Brasil da ditatura. E apesar das diferenças entre as épocas, parece mesmo que, como conclui Marx inspirado em Hegel, a história se repete. Mas cada vez menos como tragédia, e cada vez mais como farsa. Porque a promessa da revolução, do novo, da mudança, não cessa de aparecer. Mas ela não acontece. Bolsonaro diz que defende os mais pobres e os trabalhadores, mas quem ganha mesmo são os latifundiários e os mega empresários, além da própria família dele. Venceu em 2018 com o discurso de eliminar a corrupção, mas o que ele eliminou foram as investigações, deixando a corrupção correr solta. Era uma mentira criada para mobilizar as emoções daquele momento. Mussolini também falava em nome do proletariado, mesmo que o Fascismo tenha sido uma ideologia de extrema direita. O Nazismo também usou o discurso em favor do trabalhador, inclusive nomeando o partido como Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, uma artimanha da equipe de propaganda nazista. Diante de tudo isso, fica uma pergunta: como sair desse ciclo de eterno retorno da história como farsa? Eu apelo à psicologia profunda: com o ganho de consciência! Estou com Jung quando ele afirma que o autoconhecimento é a base da mais profunda revolução social. Apenas mais conscientes de nossas sombras e dos mecanismos psíquicos, nos tornamos menos fantoches, nos identificamos menos com o coletivo, sabendo diferenciar o que é nosso do que é da massa, e conseguimos transitar com mais propriedade e integridade na arena política do capitalismo, que quando deseja se investir do fascismo hoje, ganha uma dimensão muito mais perigosa, em função da rapidez com que as mensagens circulam no mundo online. Mas, para isso, precisamos também de uma educação que favoreça e estimule a autocrítica, a autoanálise, em suma, a autonomia. É uma via de mão dupla: política e subjetiva. Por isso, quem ganha um mínimo de consciência de si mesmo e consegue não participar da histeria coletiva tem uma responsabilidade imensa com o coletivo. A relação entre política e autoconhecimento é intrínseca.

Vendo trabalhadores que defendem Bolsonaro, pessoas que em suas vidas pessoais se esforçam por viver dignamente, não deixo de me entristecer. Mas não podemos culpá-los, já que o inconsciente coletivo é uma força que sai tomando aqueles mais emocionalmente suscetíveis. Isso me faz lembrar da fala de Jesus Cristo na cruz, no evangelho de Lucas: “Pai, perdoe-lhes, pois eles não sabem o que fazem.” Esses que votam movidos por uma paixão insana por um “mito” (que se são cristãos, já estão quebrando o primeiro mandamento), porque esse pretenso mito sabe dar a eles a esperança de receber o que a criança ferida dentro deles não recebeu, estão sendo peões de uma violência institucionalizada. Acreditam em Bolsonaro como uma criança ferida acredita que o Pai pode prover a sua felicidade. Movida por essa espera, essa criança que os habita acaba por clamar, sem querer, pelo Deus colérico. Porque esse Pai só está interessado nele mesmo, e apenas se interessa por seu filho quando ele é uma cópia dele. Se o filho não segue na linha, ele se torna o Pai punitivo, e o filho baixa a cabeça a esse pai narcisista na esperança de não perder o amor, tornando-se uma repetição do pai e utilizando-se da mesma violência. Mais uma vez, é o vínculo neurótico em atuação. Quem não se nutre e não encontra o salvador dentro de sua própria alma, acaba por adorar ídolos, e elege pessoas despreparadas e violentas como se fosse o próprio Salvador. Mas para descobrir o salvador dentro de si, é preciso enfrentar o diabo dentro de si, deixando de lado o Pai acima. É preciso coragem! Pior é quem tem consciência do que está acontecendo e, ainda assim, não se posiciona ou toma uma atitude. No entanto, todo posicionamento exige cuidado também com a própria sombra. Sombra atrai sombra. Há quem sinta prazer em se dizer do lado certo em atitude de provocação ao lado errado. Mas isso é também uma inflação do ego. Temos que ter muito cuidado para não cairmos nas armadilhas do inconsciente. Nossa psique nos pede atenção! A sombra é uma realidade traiçoeira e nos leva para caminhos perigosos quando acreditamos que estamos acima das suspeitas.

Dedico este texto à amiga e sócia Mariana Pietrobon, pelo puxão de orelha para que eu parasse de enrolar com ele e o lançasse antes do segundo turno das eleições.

Voto útil: uma reflexão sobre o eu e o coletivo

Eleição chegando e venho aqui fazer uma reflexão sobre o voto útil. Não como uma simples opinião, mas a partir do que concluo com as minhas pesquisas sobre o inconsciente coletivo e a gênese da violência. Não a faço, no entanto, com a pretensão de convencer ninguém, pois eu respeito muito as liberdades individuais. Mas isso não significa que eu vá deixar de expressar minhas posições. Claro que nem toda posição precisa se tornar pública. Não sou obrigada. Faço esta reflexão porque o momento é crucial para o país, como um convite para que reflita junto comigo. Posso não ser obrigada, mas sou parte de um coletivo. Somos! E não podemos fugir à essa responsabilidade como crianças feridas que se escondem por medo de não receberem afeto.

Ao meu ver, o momento é crucial especialmente no que diz respeito à diversidade que se expressa na vida humana, que vem sendo ameaçada tanto quanto a diversidade do meio ambiente. Essa diversidade, mesmo que haja quem não a aceite, é uma manifestação natural. Observe a Natureza e verá! É a diversidade que mantém a vida em seu estado de equilíbrio. Quanto mais rígidos e unilaterais nós somos, mais desequilibramos a balança e mais a violência se propaga. Toda história de violência no mundo é a história de uma cultura ou psique rígida que não aceita o que é diferente dela e se considera portadora da verdade universal. Tal diversidade, porém, tanto a humana quanto a da natureza em si, está ameaçada no Brasil por práticas discursivas que se apoiam na pauta nacionalista e no que consideram valores cristãos. Mas esse é um tipo de cristianismo mais diabólico do que em consonância com a mensagem de Cristo. Diabo vem da palavra latina diabolus que, por sua vez, vem do grego diábolos, sendo aquilo que gera caos e desunião. Diá é um prefixo que, neste caso, significa “o que separa”, assim como sym (de sýmbolos) é o que une. Diabólico é o oposto do simbólico. Não é o que temos visto? Quanto à pauta nacionalista que se diz a favor do país, a questão é: que país? Ser a favor do país eu também sou. Mas se estamos tendo o mesmo entendimento de país é que é o ponto. Um país que desmata as suas florestas, que favorece o latifúndio e o grande capital, que violenta os povos e saberes originários, que deixa o pobre mais pobre e que nega a diversidade é um tipo de nação que não se sustenta mais. Tentar mantê-lo é forçar a barra para manter o passado, como se isso fosse possível. A vida mostra o tempo todo que não. A vida é um ciclo eterno de vida-morte-vida. Só não percebe quem está em negação. Esse discurso reacionário reapareceu no mundo não foi à toa. Emergiu como uma necessidade da própria psique coletiva. Quem sabe, para vermos que ele não tinha morrido como ingenuamente acreditamos. Mas para vermos também que ele não se sustenta mais. Isso fortalece a gente como coletivo para os enfrentamentos necessários. A reação a essa tentativa de inserir o novo na caixinha do velho ficará cada vez mais forte. Esse modelo de nação e de realidade pertence a outro tempo. As singularidades emergiram e irão emergir cada vez mais, contra a vontade dos que têm medo da diversidade e da mudança. Isso é uma necessidade psíquica coletiva. Não há como controlar. Quanto mais eu estudo como se comporta o inconsciente coletivo, mais percebo isso. Quem tentar forçar o contrário, vai sofrer e provocar dores que poderiam ser evitadas. Tanto como Nação quanto como pessoa. Máscaras estão caindo para ganharmos consciência, e quanto mais consciência ganhamos, mais as máscaras caem. Treinemos nossa força interior para aceitar o imponderável e reagir à vida com menos violência e mais compreensão, inteireza e coragem. Só isso já muda o mundo. É esta, aliás, a principal tarefa de todos nós: o autoconhecimento! Sem ele, corremos o risco de ascensão de todo tipo de totalitarismo, inclusive os nossos próprios. No fundo, temos medo não do outro, mas de nós mesmos. Não sejamos ingênuos.

Vamos agora ao voto útil. Antes, um pequeno preâmbulo curioso. Já achei uma bobagem esse tal de voto útil. Até mesmo o voto, durante um bom tempo da minha vida. Inconsciente de mim mesma e da complexidade da realidade, defendia o Anarquismo. Não mudei totalmente, ainda acredito que esse é o sistema social mais interessante. Minha utopia foi cantada por John Lennon: Imagine there’s no countries. Mas nesse caso também, vale o meu estudo sobre os movimentos do inconsciente coletivo. Através dele, mais e mais eu venho saindo do mundo da fantasia delirante que acredita na perfeição e no consenso universal. Estudar psicologia analítica (tanto teoricamente quanto em mim mesma, no meu processo de autoconhecimento) tem sido um constante “cair na real”. O nível de inconsciência é tão grande na sociedade que tão cedo não vejo como seria possível nos sustentarmos socialmente pela autogestão, que é o princípio mais fundamental do Anarquismo. Nesse momento, ainda precisamos do Estado. Que seja então o Estado Democrático de Direito.

Mas a verdade é que há muito mais mistérios na vida do que supõe as nossas crenças, mesmo quando a gente estuda bastante. “Só sei que nada sei” é o princípio que vem me guiando, pois quanto mais a gente estuda, mais descobre que não sabia de nada. Estudamos, ouvimos, reagimos, agimos, mas não sabemos de fato quais serão as consequências das nossas ações. Portanto, ao falar em voto útil, falo sobre um ponto de vista, que é sempre a vista de um ponto, como aprendi há alguns anos com Leonardo Boff. Mas tento fazê-lo com responsabilidade e com um mínimo de embasamento. Não quero simplesmente emitir uma opinião, algo que só serve para encher o mundo de mais palavras perigosas por um lado e vazias por outro.

Como muitas pessoas, eu não gostaria de votar em Lula desta vez, mas vou votar nele. Digo que não gostaria não porque eu seja antipetista. Tenho mais o que fazer do que gastar o meu tempo atacando um partido e transformando pessoas e instituições em bodes expiatórios. O buraco do Brasil é muito embaixo. No meu caso, isso acontece porque eu gostaria de votar em uma mulher negra com a gana e a coragem de uma Marielle Franco e a capacidade de articulação e governabilidade do Lula. Mas essa mulher ainda não existe como candidata à presidência. Logo, meu voto é em Lula nesta eleição e por uma razão: é o único com capacidade de derrotar Bolsonaro e toda a velha e perigosa política que esse representa e põe em prática. Você pode argumentar: mas Lula é a velha política também! Sim, sob vários aspectos. Não vou negar o óbvio. Porém, ele carrega um discurso que olha para o futuro e pensa as suas parcerias da mesma forma. Além disso, eu vivi a era Lula quando estava na faculdade e começando a trabalhar. Foi um período incrível. Sinto que vivi em um país mais diverso, mais alegre e colorido e que crescia economicamente. Foi também um país que me desafiou, ao me fazer olhar para as minhas sombras. Pode não parecer, mas isso é maravilhoso! Foi naquela época que, por exemplo, as discussões sobre o machismo e o racismo estruturais começaram a ganhar força, e eu tive que começar a encarar duras realidades internas e externas, como o meu privilégio branco e tudo o que vivi sendo mulher em uma sociedade machista. Esse tipo de sociedade que encara de frente os seus males e a sua história violenta é a sociedade que irá reduzir a violência, promovendo mais respeito e entendimento. Não se lida com as sombras jogando-as para debaixo do tapete. Isso é idealização da vida. Muito menos, fazendo piadas tóxicas com a vida alheia, como o ainda atual presidente faz, e estruturando políticas de medo, morte e controle. O estudo da psique humana e o autoestudo nos revela com muita clareza que o que negamos nos possui como um demônio, o que se manifesta de muitas formas: desde crises de raiva, inveja e ciúme aos ódios coletivos.

Voltando ao país solar que já tivemos, respeitado internacionalmente, e não motivo de chacota, penso que não sabemos se teremos esse país de volta e, mais do que isso, andando para a frente com suas pautas progressistas realmente em atuação, melhor ainda do que já foi. Mas precisamos acreditar que sim. A esperança, que eu já ataquei tanto também em minha antiga rebeldia sem causa, é o que mantém o ser humano vivo, atuante e com energia para levantar da cama todos os dias. O voto útil me parece hoje o voto de esperança na humanidade. Apenas isso. Mas isso já é muito. Para quem não é da turma bolsonarista, entendo que não votar em Lula hoje é abrir espaço para Bolsonaro crescer nas eleições. As eleições estão polarizadas sim, precisamos aceitar esse fato. Não é desta vez que as coisas vão ser diferentes, pois temos muito capim ainda para comer e digerir até que grandes e boas novidades na política se apresentem. Quem sabe não será na próxima eleição!? Agora, ou ganha Lula ou ganha Bolsonaro. Mas, claro, não sejamos tolos acreditando que só o voto resolve tudo. É depois das eleições que começa, de fato, a principal atuação política. Essa é a prova dos nove. Ninguém, especialmente os políticos, deve ser encarado como herói eterno e salvador da pátria. Isso é lavar as mãos. Eles são nossos funcionários e precisamos cobrar deles as promessas de trabalho. São todos humanos, falíveis, burros e inteligentes, bons e maus, coerentes e incoerentes. Como todos nós! Tolo é aquele que acredita em heróis sem ser um herói da própria vida, depositando neles toda a sua salvação. Já quem se vende como herói salvador, esse é um perverso. Sejamos inteligentes: nem tolos nem perversos. Como nos alertou Nilton Bonder em seu livro A Alma Imoral, é por medo de sermos tolos e perversos que deixamos de fazer o que precisa ser feito, e acabamos sendo um ou outro. Mas também não podemos simplesmente agir de forma inconsequente, nos deixando levar pelas emoções como ovelhas que seguem o outro incondicionalmente só porque ele desperta uma paixão. O amor deve ser incondicional, mas não a estupidez. O irracional em nós precisa estar em equilíbrio com a razão. Quando um deles se sobrepõe, não é bom. No Brasil, temos deixado as emoções falarem alto demais. Precisamos equilibrá-las com o discernimento e traçar, assim, o caminho do meio que irá fazer nascer a lótus no meio da lama.