A perigosa ilusão do líder religioso

“Onde existe a iluminação de Buda, também se faz presente a ilusão de Mara”. A frase é do professor e psicólogo Rangel Fabrete, de uma postagem em seu perfil no Instagram logo após as repercussões do vídeo no qual vemos o 14º Dalai Lama Tenzin Gyatso, líder espiritual e político do Tibete e do Budismo Tibetano, pedindo a um menino que chupe a sua língua. O vídeo assombra e a frase do prof. Rangel não poderia resumir melhor o jogo entre a luz e a escuridão que molda a existência.

No Budismo Tibetano, Mara é a representação das ilusões geradas pelo apego a tudo o que é transitório. É essa personagem que, no mito de Buda, tentou Sidarta debaixo da figueira, antes de ele se tornar um Buda, enquanto ele buscava pela compreensão (ou seja, a iluminação, que nada mais é do que consciência) das verdades da vida. Mara é um demônio que nos lembra que, assim como disse Freud há mais de 100 anos, não somos senhores em nossa própria casa. Ser gente é estar sujeito ao desconhecido de si mesmo e da própria natureza humana. O inconsciente, nossa grande escuridão, se impõe sobre nós, por mais que estejamos apegados à crença iluminista da primazia da razão. Mas ela é só mais uma crença. A História, assim como as histórias pessoais, são a prova do poder do inconsciente. Chistes, atos falhos, sintomas neuróticos, expressões violentas não possuem apenas explicações racionais, muito menos são mensuráveis por métricas. Eles nos possuem de forma desordenada, nos tomando quando menos esperamos em função tanto da inconsciência de nós mesmos quanto da inconsciência sobre a dinâmica psicossocial. Pela perspectiva da psicologia de Carl Jung, corrente da psicologia profunda tão importante quanto a Psicanálise, tudo isso é manifestação da nossa sombra. A sombra nos habita e se manifesta de forma autônoma, queiramos ou não, acreditemos ou não, por uma razão muito simples: nos é impossível conhecer a nossa totalidade. Por isso a importância do constante exame de consciência, assim como da ética. Os efeitos na consciência provam a expressão e relevância da sombra. Quanto mais acreditamos que estamos ou somos iluminados e esclarecidos, mais estamos sujeito às pegadinhas “do diabo”. “O demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí mesmo é que ele toma conta de tudo”, diz Riobaldo em Grande Sertão: Veredas.

Se todos nós estamos sujeitos a essa ilusão de bondade e de superioridade, que dirá os líderes e toda pessoa que se destaca nos grupos. Mais ainda, os líderes religiosos, a quem coletivamente se dá a chancela de santos. Passar uma vida inteira acreditando na própria santidade é uma inflação do ego que pode transformar o santo em demônio num piscar de olhos. Na Psicologia Analítica de Jung, esse fenômeno da transformação de algo em seu oposto é chamado de enantiodromia, expressão grega apropriada da filosofia de Heráclito. Segundo essa psicologia complexa, quanto mais uma característica se exacerba, mais ela fica próxima do seu oposto e o desperta. Muitas vezes, de forma colérica. Essa unilateralidade é como um filtro que nos impede de perceber a realidade dual – e complexa – das coisas. É o ego acreditando ser o si-mesmo. É o inconsciente coletivo dominando, como um monstro, a crença do sujeito no seu próprio esclarecimento. Não vou entrar em detalhes sobre esse funcionamento da psique porque já escrevi sobre ele em outros textos aqui no blog e também em meu novo livro, Este não é um livro de autoajuda, que será lançado em menos de um mês. Aqui, basta que o leitor aceite isso como uma hipótese possível.

Líderes religiosos são os mais sujeitos a essa inflação egóica caso não façam o trabalho permanente de exame de si mesmo e de humildade diante do grande mistério que é a vida. Verdade seja dita: conhecemos muito pouco. O curioso é que essa dualidade está em toda religião. O problema é que ela é expressa de forma tão maniqueísta, que caímos na armadilha de acreditar que somos o bem e o outro é o mal. Isso acontece em outros meios que não os religiosos também. Não demonizemos a religião como se seculares e ateus fossem o bem e os religiosos o mal. Atitudes de devoção, assim como fundamentalismos, existem até mesmo na ciência. Existe onde existe ser humano. Mas quando seus efeitos nefastos afetam um líder religioso, é sempre um desastre de grandes proporções, pois é suposto que a religiosidade deva ajudar o ser humano a lidar com a vida como ela é. Mas não é bem isso o que acontece, e sim, uma idealização da vida que acaba violentando a própria vida.

Pessoas no mundo todo, inclusive no Brasil, saíram em defesa de Dalai Lama, dizendo que mostrar a língua é cultural no Tibete, como sinal de que se gosta de uma pessoa, e que ele sempre foi uma pessoa brincalhona. Outras alegaram que ele tem problemas com a língua inglesa e acabou usando a palavra errada (chupe, ao invés de veja). Mas não me parece que o problema dele seja com a língua inglesa, mas com a própria. Sobre essas defesas, deixo duas reflexões finais. A primeira delas diz respeito à personalidade brincalhona. Ela não pode ser desculpa para a falta de exame de si e para o desrespeito aos sentimentos e à existência do outro. Não importa se Dalai Lama está senil, como alguns afirmaram, ou se sempre foi uma pessoa bondosa e deixou de ser – isso jamais saberemos, pois estamos distante dele. A questão é que agora ele agrediu uma criança e isso precisa ser encarado com responsabilidade por ele ou, se ele não está em condições disso, por quem tem responsabilidade sobre a propagação de sua imagem e poder. Logo, me parece plausível que toda a comunidade do Budismo Tibetano tome para si esse desafio de reexaminar seus próprios valores e atitudes, assim como a Igreja Católica Romana precisa fazer em relação às denúncias de pedofilia e a toda uma história banhada de sangue. Nada é estático. Culturas devem mudar, como pessoas também.

Não falo isso, no entanto, para detratar uma cultura, mas para observarmos o quanto idealizamos a realidade e, com isso, geramos tanto mal no mundo. O Budismo Tibetano tem muita beleza e profundidade. É muito importante na minha história, inclusive. Foi um choque para mim assistir ao vídeo e saber do ocorrido. Ao mesmo tempo, foi também uma lembrança do quanto, mesmo quando não queremos, idealizamos pessoas. O tempo inteiro, algo de nós mesmos nos escapa e nos conecta ao outro pela projeção. Frequentei templos e grupos de estudos de Budismo Tibetano por alguns anos. Os ensinamentos de Buda aliados às meditações sobre as deidades tibetanas, me ajudaram imensamente na compreensão da realidade de luz e sombra dentro de mim e no mundo. Mas o que é positivo e potente em uma cultura não representa a totalidade de uma cultura e nenhuma cultura está acima – ou deveria estar – da ética e dos sentimentos de uma pessoa. Aprendemos a relativizar as culturas com os antropólogos, o que foi fundamental em um tempo de preconceitos enraizados. Ainda precisamos relativizar muita coisa. Mas isso não quer dizer relativizar tudo, ou cairemos no paradoxo da tolerância de Karl Popper, onde tolerar o intolerável anula a própria tolerância.

Toda cultura, como todo ser humano, é luz e sombra. Quando uma criança se sente constrangida diante de um adulto, esse é um sinal de que águas podres circulam pelos vales de uma cultura. O corpo denuncia. Não podemos perder a conexão com a natureza do corpo em função de uma relativização geral da cultura. Cultura e Natureza caminham juntas no ser humano, e tudo se transforma o tempo inteiro. Uma cultura que não olha para si é como uma pessoa que se acredita consciente de tudo, logo, acima das suspeitas. Ambas geram violência. E quanto mais santo, mais propenso se está a ser demônio. Pode parecer um princípio estranho para muitos, mas os surtos e crises que temos a todo instante nos mostram o poder do desconhecido, assim como a História parece provar que nos meandros da vida material corre um rio subterrâneo chamado inconsciente. Coletivo e individual, ele guarda nossos tesouros, mas nos avisa que para chegarmos até os tesouros temos antes que encarar monstros.

A psique é nosso maior mistério. Mais do que o espaço e o fundo do mar. Ainda fugimos de sua compreensão porque temos medo de nos conhecer de verdade. Essa é a razão pela qual eu acredito, dentro dos limites do meu entendimento sobre a realidade, que a psicologia profunda – aquela que tem o inconsciente como premissa -, é um dos saberes mais necessários para a saúde social. Alguns amigos do mundo da arte me perguntam por que dei um tempo na produção artística para fazer um doutorado em Ciência da Religião. E mais, estudando a obra de Carl Jung, uma obra repleta de más interpretações e que sofre com inúmeros preconceitos. Compreender minimamente a bizarra realidade que se escancara para nós diariamente, como fruto das nossas ilusões, é a minha resposta. Inclusive, a própria crítica à obra de Jung, e à psicologia do inconsciente como um todo, me parece uma expressão dessa ilusão de esclarecimento. No Ocidente ou no Oriente, dentro e fora, luz e sombra são um casal que nunca se separa. Está aí o 14º Dalai Lama mostrando que jamais fomos modernos, jamais fomos esclarecidos. A religião não é o único campo para o estudo da psique, mas talvez seja um dos mais férteis. O humano, quando imbuído do sentimento religioso, esteja vinculado ou não à uma religião institucionalizada, pode sucumbir ou renascer, espalhar o maior amor, mas também as maiores violências.

Autor: Vanessa Rocha

Escritora ensaísta, de ficção e de poesia. Palestrante, pesquisadora e professora. Doutoranda em Ciência da Religião, especialista em Psicologia Analítica, Mestra em Comunicação e Cultura, Produtora Cultural e Artística. Quatro livros publicados e contando...

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

%d blogueiros gostam disto: