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Este não é um livro de autoajuda

Olá! Hoje eu venho aqui para apresentar meu novo livro: Este não é um livro de autoajuda – um ensaio sobre a arte de viver. Criei uma campanha de financiamento coletivo no Catarse para a publicação impressa do livro, e você pode contribuir acessando o link https://www.catarse.me/estenaoeumlivrodeautoajuda. Você também pode baixar a introdução do livro para já sentir um gostinho do texto aqui.

Sinopse

Poucas pessoas podem se dar ao luxo de dizer que não possuem grandes conflitos internos. Não foi para elas que este livro foi escrito. Para quem não vive tais conflitos, a vida também não costuma ofertar grandes desafios. Nesses casos, é melhor evitar o confronto com a escuridão da própria alma para não se trazer à tona algo que pode ser perturbador. A questão é que são poucos esses casos. A maioria de nós sofre. E duplamente, por não saber exatamente por que sofre. Podemos listar mil razões e apontar culpados, mas lá no fundo há um alçapão que nos chama a um lugar ainda mais escuro, desconhecido e incompreendido, onde as respostas que temos são insuficientes. Nós, que vivemos grandes inquietações e fazemos perguntas incômodas, desejamos resposta. Desejamos inclusive o próprio desejo, embora ele possa vir a ser a nossa ruína. O lendário personagem Fausto, amplamente retratado no teatro e na literatura, nos fica de espelho. Foi por desejar demais que sucumbiu a um pacto diabólico. O pacto é uma imagem simbólica que nos alerta sobre o perigo de nos tornarmos presas das ambições que nos fazem acreditar que estamos acima do grande mistério da vida. Diante desse desejo das alturas, esquecemos que a arte de viver se constrói diariamente e diligentemente, e se faz no meio, entre as alturas e as profundezas, entre o ocidente e o oriente, não apenas em nenhum deles.

A proposta das reflexões deste livro é ajudar a clarear um pouco o caminho escuro que obrigatoriamente precisamos atravessar para que encontremos, ao menos, uma resposta inicial satisfatória sobre quem nós somos e o que estamos fazendo aqui, a partir de nós mesmos. Uma resposta que diminua o sofrimento e canalize a angústia para a construção de uma vida que valha a pena viver e seja a nossa grande obra de arte. Quem pode fazer isso, minimamente que seja, tem o dever ético de fazê-lo, porque o fará não apenas por si mesmo, mas por todos os que não podem viver essa liberdade. O livro se propõe, assim, a ser também uma espécie de guia para a difícil arte de viver, que como dizia o personagem Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, nos pede coragem. Trata-se de um texto crítico e reflexivo, mas um guia. Porém, como alerta o título, não o confundam com um livro de autoajuda, embora às vezes ele até se pareça com um. Mas aprendemos cedo que as aparências enganam.

Índice do livro

Prefácio

Introdução à vida não-medíocre

Ensaio sobre a arte de viver:

  1. A arte de encarar o monstro
  2. A arte de desapegar
  3. A arte de uivar
  4. A arte de sair do transe
  5. A arte de silenciar
  6. A arte de ser sagaz
  7. A arte de viver com prazer
  8. A arte de viver o agora
  9. A arte de se render
  10. A arte de criar
  11. A arte de amar
  12. A arte de ser simples

Conclusão: A vida como obra de arte

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A Sombra do Brasil: uma análise do bolsonarismo pelo olhar da Psicologia Analítica e da Psicologia das Massas

Está escancarada para quem tiver olhos para ver e ouvidos para ouvir, ou seja, os olhos e os ouvidos da consciência, a violência linguística, simbólica e material do discurso e da prática política de Jair Bolsonaro e os seus. Diante disso, fica uma pergunta: como há quem ainda defenda Bolsonaro e seu projeto de Nação? A resposta é tão simples quanto complexa.

Ao utilizar-se de uma psicologia fascista, Bolsonaro se tornou um avatar da Sombra coletiva do Brasil, liberando dos esgotos os bichos escrotos, aqueles que acreditávamos ter sumido no decorrer da história ou, pelo menos, existir em pouca quantidade. Mas eles estavam apenas adormecidos, esperando a melhor condição para despertarem. Uma psicologia fascista é pautada pela ocultação de informações, a criação de bodes expiatórios e de factóides, a produção de ódio e de medo e a desconsideração pela historicidade da sociedade e de suas instituições. Ela mobiliza, assim, afetos sombrios da psique humana. Mas para que ela ganhe força em uma sociedade, há que haver condições de possibilidade. A partir de 2013, vimos uma insatisfação profunda tomar conta do brasileiro, vazio esse que foi manejado politicamente de forma cruelmente sagaz, fazendo com que, a partir de 2018, Bolsonaro começasse a receber uma imensa quantidade de projeção psíquica, o que, em um país onde o incentivo ao autoconhecimento é nulo, tornou-se uma bomba relógio. Bolsonaro passou a ser uma representação da sombra coletiva do nosso país. Essa hipótese, no entanto, não é minha nem é uma novidade. Não ao menos no campo da Psicologia Analítica, criada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que é a psicologia que eu estudo. Mas eu quis trazer a minha visão. Mesmo porque, a maioria das pessoas que me leem são leigas nesse campo do conhecimento ou o conhece mais de um lugar de curiosidade, e buscam por mais referências para refletirem e agirem sobre a situação do Brasil atual. Apresento aqui uma referência.

Desde que passei a me aprofundar na obra de Carl Jung, assim como na psicoterapia junguiana como paciente, minha compreensão sobre a cultura e a sociedade ganhou novas e fundamentais nuances, de tal maneira que fiz uma inversão no objeto das minhas pesquisas: coloquei os estudos do mundo interior na frente dos estudos do mundo exterior. A psicologia profunda no geral, que é toda psicologia que considera em suas análises e em seu trabalho a hipótese do inconsciente, como a Psicanálise e a própria Psicologia Analítica, tem muito a dizer sobre nós. Precisamos dela, pois o nosso maior mistério é a nossa psique. Sabemos mais sobre o espaço e o mundo fora de nós do que sobre nós mesmos, e isso pode ser a causa oculta de todas as nossas tragédias. Dito isso, vamos ao que o texto se propõe.

Em 1918, ano que marca o fim da Primeira Guerra Mundial, Jung escreveu que os conflitos na Europa naquela época deveriam ser vistos não apenas pelo ponto de vista materialista, pois, no fundo, eles se tratavam de uma crise psicológica. A Alemanha foi um dos países que saiu devastado da guerra. Em consultório, Jung observou nos seus pacientes alemães, no período entre as duas guerras, a recorrência de certos sintomas. Imagens se repetiam nos sonhos e fantasias daquelas pessoas. Eram convulsivas, coléricas, embriagadas, e reivindicavam seu lugar na consciência, desejando “tomar o poder”. Tais características também apareciam na arte e na filosofia da Alemanha já fazia um tempo. Alguns anos depois, o Nazismo ascendeu e, junto com ele, Adolf Hitler encarnando essas características presentes nos sonhos e fantasias dos alemães em crise, como um avatar da sombra coletiva. À época, Jung fez uma análise trazendo à cena o deus germânico das tormentas e da embriaguez, Wotan, correspondente do nórdico Odin. Patriarca autoritário e imoral, Wotan está sempre em busca do Anel do Poder. Quem conhece o ciclo operístico de Richard Wagner, O Anel do Nibelungo, conhece bem essa história. Para conseguir o que quer, Wotan faz de tudo. Disfarça-se como poucos e sabe falar o que deseja ser ouvido. É um mestre das ilusões, da manipulação e da corrupção, cuja ira apazigua-se apenas com sacrifícios de sangue (com bodes expiatórios). Senhor do clima, é intempestivo e imprevisível. Tem os seus escolhidos, mas mesmo esses vivem sob o perigo do seu humor oscilante em sua sede de poder. Em uma Alemanha desmoralizada, marcada ainda pela história ocidental de negação do Eros, ou seja, de negação das emoções e do prazer, conforme analisa Jung ao olhar para a história do Ocidente, eis que “Wotan emergiu”, ou seja, eis que o impulso de Eros despertou em sua forma diabólica – geradora de caos e violência – na ideologia nazista.

Por séculos, o cristianismo na Europa associou intempestivos deuses pagãos ao diabo, o que significa o mesmo que dizer que as emoções e as paixões são o Mal, o erro. O resultado disso é medo, culpa e vergonha na consciência. A cultura do Iluminismo também negligenciou esses aspectos, como se fossem expressões menores e primitivas do humano. Assim, as potências apaixonadas e emotivas dos indivíduos foram sendo negligenciadas, jogadas para um canto escuro da psique. Mas a psique é uma totalidade e não exclui nada. Aquilo que é negligenciado ou massacrado dentro de nós, um dia reivindica o seu lugar e, quando vem à tona, nos possui. É assim que nascem os sintomas neuróticos e psicóticos. Tais emoções reprimidas foram crescendo no submundo da psique dos alemães por séculos, despertando como um vulcão quando a Alemanha mergulhou em crise após a Primeira Guerra, numa erupção histérica. Não é assim que agimos quando somos negligenciados, esquecidos ou feridos e nos deixamos dominar pelas emoções? Como um vulcão que explode? A Alemanha em crise fez um Wotan negligenciado e ridicularizado acordar do seu sono milenar, “possuindo” os alemães e dando origem a uma paranoia coletiva delirante. O Nazismo deu expressão ao que acontecia no inconsciente coletivo alemão. Claro que essa possessão não é literal. Lembro aqui que estou falando de psicologia. Mas também não se trata de simples analogia. Wotan, nesta análise, aparece como um símbolo vivo produzido espontaneamente pela psique. Não precisa ter o nome de Wotan. É preciso apenas reconhecê-lo como uma expressão de aspectos da psique. O símbolo, segundo Jung, é “o que representa o indizível de forma insuperável”, como podemos ler no volume 6 de sua Obra Completa. Símbolos são produções espontâneas da psique que emergem do inconsciente por necessidade da psique de se equilibrar, conduzindo a nossa ação na realidade física, material. Não são apenas um signo, uma imagem pura e simples, mas energias e potências psíquicas materializadas. São expressões de modelos e padrões de comportamento muito arcaicos, constituintes e definidores da psique humana, os arquétipos, os quais não podemos conhecer diretamente, mas apenas através de imagens arquetípicas. Tais imagens também não estão sob o controle da nossa consciência. Elas se manifestam a nós, emergindo do inconsciente. Os deuses são imagens arquetípicas muito antigas. Eles espelham os nossos dramas internos. Nunca foram deuses de fora, mas de dentro, e carregam características nossas de forma projetada. Justamente por essa antiguidade e pela importância que possuíram nas culturas, ainda viveriam dentro de nós. É por isso que Jung dizia que no mundo contemporâneo “os deuses não morreram”: eles se transformaram em sintomas.

No parágrafo 411 do volume 10 da Obra Completa de Jung, lemos: “no momento em que o mal irrompe no mundo, ele já eclodiu por toda a parte no âmbito psíquico.” Essa emergência de Wotan não pode, então, ser vista como uma coisa planejada por uma mente doentia para colonizar as demais, mas como uma expressão coletiva que deu match com a mente doentia de Hitler. Trata-se de um vínculo neurótico, como diz a Psicanálise, onde aquele que tem uma dor dentro de si, mas não a acessa pela consciência, procura inconscientemente por algo ou alguém para receber a sua projeção. Quando os alemães, e o mundo ocidental no geral, perceberam o que se passava, o que se deu somente após o choque que foi produzido na consciência diante de um mal tão devastador – tão humano que projetá-lo em imagens como o diabo já não fazia mais sentido -, o estrago já estava feito e não havia como voltar atrás, apenas como parar a máquina.

O mal se alastra dentro de nós sem que a gente sequer perceba, quanto mais inconscientes de nossa natureza nós estamos. Portanto, não nos consideremos distantes da Alemanha Nazista e aprendamos com a História. Quando os eleitores de Bolsonaro saem em sua defesa mesmo diante de tantas evidências de violência linguística, simbólica, física, material e moral, eles estão apaixonados pelo próprio mal dentro de si sem nem saber, porque, de alguma maneira, esses afetos dão sentido às suas vidas. Eles suprem vazios. Nos parágrafos 417 e 418 do mesmo volume 10, lemos algo que poderia facilmente ser aplicado a boa parte dos brasileiros e a Bolsonaro: “Uma vez que ninguém pode sair da própria pele e abandonar a si mesmo, o mal que se encontra por toda a parte é o mal de si mesmo. Chama-se a isso de neurose histérica. (…) Todos esses sintomas, a completa cegueira acerca do próprio caráter, a admiração autoerótica de si mesmo, a depreciação e atormentação dos demais (com que desprezo Hitler falava de seu povo!), a projeção da própria sombra, a falsificação mentirosa da realidade, o ‘querer impressionar’ e impor, os blefes e imposturas, reúnem-se naquele homem que foi dado clinicamente como histérico, mas que um destino curioso transformou durante 12 anos no expoente político, moral e religioso da Alemanha. Será isso um mero acaso?” Eu pergunto: qualquer semelhança é mera coincidência?

A partir dessa perspectiva, podemos compreender que toda crise ou convulsão social é sempre uma crise psicológica, não apenas material. No entanto, a perspectiva materialista não precisa ser descartada. Eu acredito que ela ganha em profundidade com a perspectiva psicológica, porque esta vai ao cerne da questão, lá onde toda a vida material tem sua origem: na psique humana. A compreensão da psique talvez possa nos explicar melhor por que, como escreveu Karl Marx em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.” Sei que unir a Psicologia Analítica com as teses de Marx não é fácil, e nem sei até que ponto isso é possível. Mas acredito que o estudo da psique pode revolucionar nosso entendimento da política e da sociedade, porque estamos sob o domínio da psique, não o contrário. A psique não é algo que nós temos e manipulamos ao nosso bel prazer. É ela que nos tem e nos atravessa. Ela nos acontece! A maior parte da nossa vida é guiada pelo inconsciente, essa parte desconhecida do nosso psiquismo. Mas apesar da força cultural desta hipótese no mundo atual e do quanto a atividade clínica consegue comprovar o poder do inconsciente através de seus efeitos na consciência, o Ocidente ainda carrega séculos de crença num sujeito psicológico totalmente consciente, como se consciência fosse sinônimo de psique. O resultado disso é uma cultura na qual a razão possui centralidade, mas ao custo do extrarracional, por demonizar as emoções e as paixões em nós, o que faz com que essa força ecloda das piores formas possíveis, já que é impossível se desvencilhar dessa expressão psíquica. A tese de Jung é que mesmo a religião no Ocidente foi racionalizada, transformada numa lista exaustiva de ritos, regras e explicações que acabou por tirar a conexão do ocidental com a experiência interna, profunda e individual do sagrado, abrindo espaço para um vazio existencial perigoso, que é a causa das neuroses do mundo branco civilizado, logo, a causa de nossas violências. Essa cultura branca intelectualizada, capitalista e patriarcal, que se quis e se quer hegemônica, ainda sufocou e sufoca as demais, tentando impor a elas, na base da força, a sua lógica de um mundo esquadrinhado e controlado, o que nunca deu certo nas profundezas da psique. É da natureza da psique buscar seu equilíbrio, como numa espécie de homeostase. Logo, quando a balança psíquica pende para um lado só, ela desperta o que foi negado de maneira colérica, o que se manifesta no mundo exterior em forma de violência.

Para clarear um pouco mais essa dinâmica psíquica, entenda que a psique se movimenta no sentido de tornar consciente os conteúdos do inconsciente de forma autônoma. Logo, se não colocamos a nossa consciência à serviço do inconsciente, para que ela ouça, analise, compreenda e integre simbolicamente esses conteúdos, são eles que nos possuem. Enquanto não fizermos o trabalho do autoconhecimento, vamos chamar tudo o que nos acontece de destino, como dizia Jung, mas a verdade é que é somente o inconsciente agindo através de nós. E boa parte dele é coletiva, repleta de memórias e expressões muito antigas que, sem que percebamos, nos toma em vários momentos da vida. Com isso, fica claro que a ideia de que sabemos exatamente quem somos é a nossa maior ilusão. Basta que observemos como as emoções nos acometem ou como os sentimentos e os pensamentos aparecem. Eles não são criados pelo esforço da consciência. Eles acontecem! Temos apenas a impressão de que fazemos escolhas, mas a verdade é que o nosso livre arbítrio é quase totalmente condicionado e moldado por camadas e camadas de crenças, valores e modelos de comportamento de todas as eras anteriores a nós, somadas aos impactos psíquicos deixados por nossa experiência individual e a experiência dos nossos ancestrais diretos, o que faz da psique uma espiral energética que ora volta a sua energia para o mundo exterior, ora para dentro, num leva e traz de memórias, sentimentos, pensamentos, sensações e intuições que nos tomam e nos arrastam. Todo esse desconhecido em nós Jung chamou de sombra. E é ela, a sombra, a parte de nós mais suscetível ao que é chamado de contágio psíquico, dando origem a verdadeiras epidemias psíquicas.

É pelo contágio psíquico que emergem todos os fenômenos sociais, como revoltas, apaixonamentos coletivos, revoluções, crises, convulsões e mesmo os comportamentos de “pequenas massas”, como famílias ou grupos de trabalho. Observe como você age diferente em grupo do que quando está sozinho. Em grupo, nossa capacidade de discernimento fica mais comprometida e somos movidos pelas funções mais inferiores em nós, pelas nossas sombras. Ficamos, assim, mais suscetíveis aos movimentos coletivos. Logo, é pelo contágio psíquico que também nascem os governos autoritários. Nenhum autoritarismo de governo aparece sem que o inconsciente coletivo esteja tomado por emoções que o alimentem. O caso do Nazismo nos fica de ilustração. No entanto, apenas isso não basta. Tais tendências, para virem à tona e se manifestarem concretamente, precisam de condições de possibilidade. No caso da Alemanha, como vimos, foram séculos de uma balança psíquica tendendo para um lado só, o lado da racionalidade, reprimindo as emoções e o êxtase, o que fez emergir a irracionalidade de uma maneira convulsiva e violenta, dando vazão ainda a um antissemitismo que já vinha sendo alimentado na história. No caso do Brasil, temos toda a mobilização da insatisfação de 2013, mas também uma história de opressão, de violência e de descaso que pode tanto gerar a revolta contra quem oprime, quanto um vínculo neurótico com ele, a depender de como as emoções são manejadas. Voltarei a isso mais adiante. Por ora, algo me diz que na base da emergência dos autoritarismos, há uma condição primeira que é o comprometimento do autoconhecimento. Sem uma cultura de valorização do autoconhecimento, as chances de eclodirem epidemias psíquicas é bem maior. Esse comprometimento pode se dar porque condições materiais básicas não estão supridas, como água, comida, abrigo, educação de base. Então, a pessoa sequer tem o que comer ou onde se abrigar, quanto mais pensar em quem ela é. Daí a importância de termos governos democráticos e inclusivos fortes. Já nos casos em que se têm as condições básicas de sobrevivência, o autoconhecimento fica comprometido pelo nosso medo de nós mesmos, o que nos torna extremamente suscetíveis aos afetos destrutivos e ao sentimento de “meu umbigo é o mundo”. E essa é, até agora, a história das sociedades humanas.

O medo é a emoção mais primária do ser humano. Se ele se amplia na angústia, e a conseguimos sustentar, temos algo de bom, pois a angústia é criativa, ela nos move em direção ao autoconhecimento. Mas se ficamos agarrados ao medo primitivo, vivemos como meros fantoches do inconsciente, logo, também do outro. O medo de conhecer a natureza humana em profundidade, que é uma natureza plural e complexa, é o pai do negacionismo, dos preconceitos e do autoritarismo, tanto na esfera íntima quanto na social. É por conta desse medo que vemos, por exemplo, a sombra no outro, mas a negamos em nós. Por isso, projetamos: o outro é o mal, é meu inferno, é a besta do Apocalipse. Assim também, alguns outros são o meu paraíso. Nunca se trata de mim, sempre do outro. Mas na verdade, tudo o que vemos no outro fala sobre nós, ainda que também possa falar do outro. Esse outro vai desde o marido, a esposa, o filho, a amiga e o vizinho, até a celebridade, o político, o presidente e Deus. Sim, Deus! Atenção aqui, pois não falo de fé nem de dogma, mas de como o conceito de Deus é interiorizado. Pelo ponto de vista psicológico, quando estamos muito inconscientes de nós, o que temos como Deus é também uma projeção, como imagem e semelhança principalmente do que não resolvemos internamente com a nossa base, ou seja, pai e mãe. É por isso que para Freud, a religião era uma ilusão. Mas Deus também pode ser uma imagem potente em nós se conseguimos romper a barreira dessa inconsciência.

A inconsciência da própria sombra é também mãe da crença de que sou o filho eleito, o arauto da bondade, o missionário da luz e o mensageiro da verdade. Um narcisismo espiritual que vemos tanto no fundamentalismo religioso, incluindo o cristão, quanto num mais recente, que chamo de fundamentalismo namastê, gerado por pessoas praticantes de antigas tradições orientais, e até mesmo por alguns terapeutas, que acreditam-se superiores aos demais. Pratico yoga e meditação há 20 anos e, desde 2018, só vejo crescer esse comportamento ao meu redor. Há muitos praticantes dessas tradições que também defendem Bolsonaro. Mas não nos enganemos achando que esse tipo de comportamento narcisista só existe no mundo das religiões institucionalizadas e das tradições espirituais. Muitos cientistas também se acham iluminados, logo, superiores ao inconsciente e ao outro, incapazes de perceber suas sombras. Do ponto de vista psicológico, a Ciência pode ser um Deus tão irado quando Javé ou tão salvador quanto o Deus cristão, e alguns cientistas tão fundamentalistas quanto alguns religiosos. É por isso que também há cientistas eleitores de Bolsonaro, mesmo psicólogos, historiadores e cientistas sociais. Existe em nós uma tendência psicológica a confundir a totalidade psíquica com uma imagem de Deus. Quando esse Deus não é o Deus do dogma, ou seja, quando a psique não se satisfaz com Ele, ela vai buscá-lo em outras referências. E essa referência estará condicionada ao nosso nível de autoconhecimento, de consciência. Assim, o Deus que acreditamos acaba sendo imagem do nosso mundo interior e, pela mesma lógica, também os nossos ídolos, que erroneamente podemos vir a chamar de mitos ou lendas, e a adorar como se adora um antigo deus.

Por tudo isso é que Bolsonaro é um perigoso sintoma. Não ele como um simples ser humano. Não podemos dar a ele sozinho esse poder. O perigo de Bolsonaro vem do coletivo. É ele como repositório das projeções das sombras do Brasil, mas assumindo esse lugar e se inflando nele, projetando também a sua sombra em um “grande outro”, como um salvador dos valores de Deus, da Pátria e da família, que nada mais são que valores que expressam a sombra fascista do nosso país: uma mistura explosiva de misoginia, machismo, racismo, homo e transfobia e outras tantas violências a toda expressão da vida que foge do padrão do homem branco hétero civilizado, somadas a defesa da propriedade e da soberania a qualquer custo, bem como da meritocracia, desconsiderando a historicidade dos conceitos e das práticas, como no caso mesmo dos conceitos de Deus, de pátria e de família, que se transformam no tempo e no espaço, não são uma verdade atemporal. Durante um bom tempo, eu me perguntei se Wotan havia “encarnado” no Brasil. De alguma forma, parece que sim, já que Wotan, como imagem do autoritarismo, é um arquétipo. Ele se manifesta de muitas formas em várias culturas. Mas considerando a força do cristianismo no Brasil e o discurso teocrático de Bolsonaro, a imagem que melhor se encaixa nessa “encarnação” talvez seja Javé, o Deus do Antigo Testamento, que não deixa de ser uma espécie de Wotan. Jamais o Deus cristão, isso para mim é indiscutível, apesar de Bolsonaro e muitos de seus seguidores se gabarem de serem cristãos. Mas não tem nada mais distante de Bolsonaro do que o cristianismo real de Jesus Cristo. O “cristianismo” bolsonarista é um legalismo, que ainda carrega em si muito de Javé, apoiando-se em trezentas mil regras acima do evangelho. É um “cristianismo” violento e perseguidor. Mas como diz o pastor e deputado federal Henrique Vieira, “não existe Jesus com arma na mão”. Qualquer leitura do evangelho mostra isso. O arquétipo que parece estar atuando no inconsciente coletivo me soa muito mais Javé, o deus temperamental, senhor dos exércitos, que exige sacrifícios de sangue em troca de sua lealdade e aniquila os que não são o seu povo. Que exige que seu povo seja a sua imagem e semelhança para ser amado por Ele. A diferença é violentada. É um deus que separa e divide, que governa para um só tipo de família e prega a submissão da mulher ao homem. Um deus tão inconsciente de si, que dá liberdade à sua sombra, Satã, para atuar em seu lugar. Foi tomado por ela que infligiu ao crente Jó as piores provações, gratuitamente. E ainda parecia gostar. Havia um gozo mórbido de Javé em fazer Jó sofrer. Imagina, era só uma gripezinha que Jó estava vivendo, não sei do que ele estava reclamando… Um deus autoritário, criador de uma lei que nem ele mesmo respeita, porque Javé sequer cumpre um de seus Mandamentos, o “não matarás”. Logo, é o deus da hipocrisia. Tudo isso pode, de um lado, parecer muito fantasioso. De outro, pode ofender a fé de algumas pessoas. Mas lembremos que estou falando de psicologia, não de dogma nem de fé. Javé está aqui como um símbolo, porque sobreviveu como imagem de uma expressão da psique no mundo ocidental, em suas camadas mais profundas, anteriores a Cristo, que já espelha outra consciência de Deus. Claro que se pegarmos pela perspectiva da Cabala judaica, teremos outras visões do Antigo Testamento. Aqui eu ressalto como ele foi inserido no mundo cristão. Javé não morreu simplesmente após Cristo. Como expressão do mundo interior, ele reside adormecido e pode acordar a qualquer hora. E parece que acordou no Brasil do início do século XXI. Um arquétipo que fala em nome da justiça, uma justiça que muitos seguidores de Bolsonaro realmente acreditam estar fazendo – estou desconsiderando aqui os que estão interessados nas mamatas, mas falando de uma maioria que me parece estar totalmente inconsciente do que faz. Mas essa justiça não é para todos, apenas para os eleitos, os certos, os cidadãos de bem. E sabemos que desejar demais o bem nesse grau de vaidade acaba gerando o mal. Estão também eles possuídos psicologicamente por Javé, ou por Wotan, ou quem sabe pelo próprio diabo que, como escreveu Shakespeare, “pode citar as Escrituras quando isso lhe convém”. São incapazes, assim, de perceber que o reino de Deus do qual falava Cristo é vasto e não é a sua igreja. É dentro, no meio, entre, jamais acima. Javé é quem está acima, e por isso segue sendo o Deus de quem, em seu mundo interior, está dominado pela lógica do autoritarismo. É uma questão de personalidade afinar-se a Bolsonaro? Também. Pessoas que acreditam mais nas hierarquias fixas, seja pelo lado do prazer de mandar ou do prazer de obedecer, e tendem a não mexer em time que está ganhando por medo da impermanência e da complexidade da vida, são os potenciais eleitores e seguidores de Bolsonaro. Mas como diria Caetano, “tudo é muito mais”. Eu sou uma pessoa de tendência psíquica controladora, às vezes até autoritária, e já causei problemas a mim e aos outros por conta disso. Mas isso não me fez eleitora da extrema direita nem uma defensora de tiranos. O que me diferencia de outras pessoas com as mesmas tendências que eu? Há um conjunto de coisas envolvidas aqui, algumas que envolvem privilégios, o que não posso negar. Mas na base delas está a preocupação com o autoconhecimento, com a autoanálise. A autocrítica constante. Foi ao encarar essa minha escuridão que pude começar a dominar esse monstro, ao invés de deixar que ele me domine. É o desconhecimento da própria sombra, motivado internamente pelo medo primitivo de si mesmo, que leva alguém a simplesmente agir sem refletir, a se deixar dominar por suas paixões em tamanho grau que sequer é capaz de questionar se as suas verdades internas podem ou não gerar violência no mundo. Nesse grau de inconsciência é que “essas divindades nos possuem”.

Mas não importa se o arquétipo que possuiu boa parte dos brasileiros tenha o nome de Wotan, Javé ou mesmo do famoso coisa ruim. O que importa sabermos é que ele é um gerador de caos, violência e confusão que quanto mais é alimentado e provocado, mais poder de violência exerce. Por medo de perder seu latifúndio, mais temperamental se torna, e grita como uma criança birrenta ameaçando o Supremo, o vizinho, a colega da fila, e querendo passar por cima da Constituição em nome de um Deus general. Repito: Bolsonaro é um avatar, um dispositivo que nos revelou tudo o que vivia e fermentava no mais profundo do inconsciente coletivo, o que torna a oposição a ele muito mais complexa do que se imaginou há 4 anos. Estamos vendo o quanto foi necessária uma ampla coalizão de Lula para esse enfrentamento. A política brasileira precisará se reinventar profundamente se quiser realmente se opor ao fascismo bolsonarista, pois uma vitória de Lula não vai fazê-lo desaparecer. E é o Fascismo a sombra mãe de tudo o que temos visto.

Fascismo é uma palavra que assusta algumas pessoas, mas precisamos dar nome aos bois. Por que falar em Fascismo quando se trata do bolsonarismo? Porque a psicologia fascista é a psicologia bolsonarista. O Fascismo, apesar de ter sido um sistema de governo e uma ideologia, pode ser visto também como arquetípico. Eu o vejo como uma expressão radical do ego inflado, do ego que acredita ser a totalidade da psique e ignora o poder do inconsciente sobre ele. Assim, se deseja soberano e quer controlar a realidade. Morre de medo de perder o que é seu e, por isso, se impõe com violência. O ego inflado atua como um chefe de milícia. É paranoico e está sempre buscando conspiradores contra o seu domínio. Pretende-se um latifundiário da psique, um empresário multinacional do psiquismo. Em seu ensaio de 1935, O Fascismo é a verdadeira face do capitalismo, Bertolt Brecht escreveu que “o fascismo é a face mais nua, sem vergonha, opressiva e traiçoeira do capitalismo.” O fascismo é a violência aberta do capitalismo, já sem pudores para ser expressada na manutenção da propriedade e dos poderes de quem detém os meios de produção. Ele passa como um rolo compressor por cima da luta de classes, como se todos vivessem definitivamente sob condições iguais e pudessem, assim, agir e reagir das mesmas maneiras, e desconsidera, igualmente, a historicidade das práticas e instituições sociais. Ignora o próprio movimento da vida, querendo cristalizar a existência e dominá-la. É uma violência que começa dentro, se expressa na linguagem e se expande por todos os lados como violência material. Uma psicologia da imposição do medo, da produção de notícias falsas e de sua divulgação a partir de um investimento pesado em propaganda. Também uma psicologia de culto à personalidade, afinal, o papel daquele que recebe as projeções psíquicas é fundamental para a manutenção do Fascismo.

Não é fácil enfrentar essa psicologia, embora seja urgente que façamos isso. Tratando o Fascismo como um desastre humano, Brecht diz que “devemos mostrar que esses desastres são lançados pelas classes possuidoras para controlar o grande número de trabalhadores que não possuem os meios de produção.” Mas isso é um desafio, já que não basta um projeto de esclarecimento intelectual das massas, uma vez que a própria condição de opressão pode despertar expressões recalcadas e reprimidas na psique que vão gerar vínculos projetivos com quem souber manejar essas insatisfações. O livro Psicologia das Massas do Fascismo, do psicanalista marxista Wilhelm Reich, mostra bem essa relação e traz o debate incômodo sobre por que pessoas em condições de opressão e pobreza se vinculam, muitas vezes, a quem os explora. Por isso, não basta “mostrar a realidade” para quem está imbuído do que Jung chamou de participation mystique, na qual o sujeito está profundamente vinculado com o objeto de maneira que ele não consegue se diferenciar desse objeto. É uma espécie de transe, e para sair dele a pessoa precisaria ou levar um choque de consciência, algo que a mobilizasse psiquicamente de forma que a fizesse sofrer – e isso varia de pessoa para pessoa – ou empreender uma elaboração afetivo-simbólica de sua vida, o que leva tempo e depende de uma disposição interna. Aqui mora a grande dificuldade em lidar com esses processos de contágio psíquico. E em se tratando de Fascismo, a dificuldade é maior, pois nele existe ainda o controle e a manipulação da informação. Nele, há orçamento secreto, perseguição da liberdade de expressão, produção e distribuição de fake news. Como ocorreu na Itália Fascista. Como ocorreu na Alemanha Nazista. O Nazismo pode ser lido como uma expressão fascista ainda mais radical, apesar de ter algumas diferenças em relação ao Fascismo italiano. Hitler, com sua histeria, sabia como arrebatar as massas. Falava o que as pessoas em desespero e com necessidade urgente de mudança queriam ouvir, produzindo o tal vínculo neurótico. Conversava com o que existia de mais inferior nas pessoas, mobilizando suas sombras. É o que Bolsonaro também faz, dentro da sua realidade. Assim como se utiliza de uma estratégia de manipulação de crueldade requintada, também utilizada pelo Nazismo e pelo Fascismo: a escolha de bodes expiatórios para explicar as mazelas do povo, dando cara, nome e cor ao inimigo, ao ladrão da felicidade, estimulando o ódio e, junto dele, o sentimento punitivo. Mussolini, criador da expressão fascismo e de suas bases, em seu primeiro discurso como Primeiro Ministro da Itália, antes ainda de se tornar governante soberano, disse: “com trezentos mil jovens totalmente armados, determinados a fazer tudo e quase misticamente prontos para o meu comando, eu poderia punir todos aqueles que difamaram e tentaram manchar o fascismo.” Percebe alguma semelhança com falas de Bolsonaro? Alguém aí se lembra do eliminar a petralhada? No entanto, também não podemos esquecer o passado, e precisamos ir mais além, quando começou toda a demonização de Lula e do PT, antes mesmo que Bolsonaro chegasse à presidência. Bolsonaro, definitivamente, foi uma criação do inconsciente coletivo.

Algo muito parecido aconteceu também no Brasil da ditatura. E apesar das diferenças entre as épocas, parece mesmo que, como conclui Marx inspirado em Hegel, a história se repete. Mas cada vez menos como tragédia, e cada vez mais como farsa. Porque a promessa da revolução, do novo, da mudança, não cessa de aparecer. Mas ela não acontece. Bolsonaro diz que defende os mais pobres e os trabalhadores, mas quem ganha mesmo são os latifundiários e os mega empresários, além da própria família dele. Venceu em 2018 com o discurso de eliminar a corrupção, mas o que ele eliminou foram as investigações, deixando a corrupção correr solta. Era uma mentira criada para mobilizar as emoções daquele momento. Mussolini também falava em nome do proletariado, mesmo que o Fascismo tenha sido uma ideologia de extrema direita. O Nazismo também usou o discurso em favor do trabalhador, inclusive nomeando o partido como Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, uma artimanha da equipe de propaganda nazista. Diante de tudo isso, fica uma pergunta: como sair desse ciclo de eterno retorno da história como farsa? Eu apelo à psicologia profunda: com o ganho de consciência! Estou com Jung quando ele afirma que o autoconhecimento é a base da mais profunda revolução social. Apenas mais conscientes de nossas sombras e dos mecanismos psíquicos, nos tornamos menos fantoches, nos identificamos menos com o coletivo, sabendo diferenciar o que é nosso do que é da massa, e conseguimos transitar com mais propriedade e integridade na arena política do capitalismo, que quando deseja se investir do fascismo hoje, ganha uma dimensão muito mais perigosa, em função da rapidez com que as mensagens circulam no mundo online. Mas, para isso, precisamos também de uma educação que favoreça e estimule a autocrítica, a autoanálise, em suma, a autonomia. É uma via de mão dupla: política e subjetiva. Por isso, quem ganha um mínimo de consciência de si mesmo e consegue não participar da histeria coletiva tem uma responsabilidade imensa com o coletivo. A relação entre política e autoconhecimento é intrínseca.

Vendo trabalhadores que defendem Bolsonaro, pessoas que em suas vidas pessoais se esforçam por viver dignamente, não deixo de me entristecer. Mas não podemos culpá-los, já que o inconsciente coletivo é uma força que sai tomando aqueles mais emocionalmente suscetíveis. Isso me faz lembrar da fala de Jesus Cristo na cruz, no evangelho de Lucas: “Pai, perdoe-lhes, pois eles não sabem o que fazem.” Esses que votam movidos por uma paixão insana por um “mito” (que se são cristãos, já estão quebrando o primeiro mandamento), porque esse pretenso mito sabe dar a eles a esperança de receber o que a criança ferida dentro deles não recebeu, estão sendo peões de uma violência institucionalizada. Acreditam em Bolsonaro como uma criança ferida acredita que o Pai pode prover a sua felicidade. Movida por essa espera, essa criança que os habita acaba por clamar, sem querer, pelo Deus colérico. Porque esse Pai só está interessado nele mesmo, e apenas se interessa por seu filho quando ele é uma cópia dele. Se o filho não segue na linha, ele se torna o Pai punitivo, e o filho baixa a cabeça a esse pai narcisista na esperança de não perder o amor, tornando-se uma repetição do pai e utilizando-se da mesma violência. Mais uma vez, é o vínculo neurótico em atuação. Quem não se nutre e não encontra o salvador dentro de sua própria alma, acaba por adorar ídolos, e elege pessoas despreparadas e violentas como se fosse o próprio Salvador. Mas para descobrir o salvador dentro de si, é preciso enfrentar o diabo dentro de si, deixando de lado o Pai acima. É preciso coragem! Pior é quem tem consciência do que está acontecendo e, ainda assim, não se posiciona ou toma uma atitude. No entanto, todo posicionamento exige cuidado também com a própria sombra. Sombra atrai sombra. Há quem sinta prazer em se dizer do lado certo em atitude de provocação ao lado errado. Mas isso é também uma inflação do ego. Temos que ter muito cuidado para não cairmos nas armadilhas do inconsciente. Nossa psique nos pede atenção! A sombra é uma realidade traiçoeira e nos leva para caminhos perigosos quando acreditamos que estamos acima das suspeitas.

Dedico este texto à amiga e sócia Mariana Pietrobon, pelo puxão de orelha para que eu parasse de enrolar com ele e o lançasse antes do segundo turno das eleições.

Os Anéis de Poder: quando a arte não cumpre a sua função e o poder sobe à cabeça

Em sua teoria das obras literárias e de arte, o pensador Umberto Eco explorou o conceito da verossimilhança. Uma obra de ficção cumpre seu papel de obra de arte e de cultura, que é espelhar a psique humana e a nossa realidade, quando se baseia na verossimilhança. Não importa se fala do “mundo real”, de uma galáxia distante ou de um mundo de alta fantasia, como é o mundo criado por J. R. R. Tolkien entre os anos 1930 e 1950 com O Senhor dos Anéis, O Hobbit e todos os apêndices que contam a história da fictícia Terra Média. Não havendo a verossimilhança, a obra perde sua importância psíquica e cultural, porque não cria conexão. Uma obra precisa nos convencer de que nada nela é gratuito, ou seja, de que estamos diante de algo que faz sentido naquela realidade e que, ainda, gere correspondência com a nossa, por mais fantasiosa que ela seja. Tolkien foi um mestre no domínio do princípio da verossimilhança. Também por isso, sua obra se tornou um fenômeno. Logo, adaptar obras literárias que cumprem esse princípio de forma magistral, o que dá a elas justamente a sua profundidade, é sempre um desafio. E nem sempre esse desafio se torna bem sucedido. Por esse prisma é que considero a temporada inaugural da série Os Anéis de Poder um fracasso na história da arte.

A série do Amazon Prime, inspirada na clássica obra de Tolkien, foi anunciada em 2020 e, desde então, a Amazon, que investiu 1 bilhão de dólares na produção da primeira temporada, fazendo desta a série mais cara da história, conseguiu criar grandes expectativas. Não era para menos! Depois de tantas séries incríveis de fantasia, ver o universo de Tolkien ganhar mais vida nas telas era realmente algo esperado pelos fãs do gênero e também de sua obra. Mas o “perigo” de gerar muito desejo é ter que encarar depois a frustração do outro caso não se cumpra o que foi prometido. Para além do marketing da própria série, ela viria ainda sob o peso de superar ou, ao menos, igualar a impecável trilogia O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson, sucesso no cinema no início dos 2000. Então, eis que veio o lançamento neste ano de 2022, mostrando que todo marketing do mundo não é capaz de sustentar um produto que não funciona.

A história contada na série se passa na era anterior à saga de Frodo em O Senhor dos Anéis e narra a história da ascensão do Mal na lendária Terra Média, com a criação de Mordor e o estabelecimento de Sauron por lá, e a criação dos anéis de poder, incluindo o famoso Um Anel. Só esse argumento já seria suficiente para fazer os fãs de Tolkien e da literatura de alta fantasia desejarem parar a vida toda sexta-feira para assistir à série. Mas não foi o que aconteceu para muitos de nós. Eu sou fã confessa do gênero. Mas depois do quarto episódio, vinham as sextas-feiras e eu simplesmente esquecia que tinha episódio novo. Além de assistir depois, quando dava, lá pelo meio dos episódios eu me pegava conversando, olhando o celular, levantando para alongar o corpo, e quando via já tinha perdido uns bons minutos sem me dar conta do que tinha acontecido. Como sou neurótica e não gosto de perder até mesmo o que não estou gostando (se estou assistindo algo, tenho que realmente assistir, até para poder criticar) eu voltava o que havia perdido e descobria porque me distraía. Era uma soma de tudo: roteiro, direção, atuação, cenários. A floresta da terra dos elfos parecia de plástico. Não tinha vida de verdade. Lembrou-me alguns cenários toscos de filmes dos anos 1980, quando os orçamentos eram bem menores e as condições de produção muito mais difíceis. O olho humano e o nosso psiquismo sabem reconhecer algo vivo e diferenciá-lo de uma cópia. Vi depois que algumas paisagens foram criadas em estúdio. Com tanta locação incrível pelo mundo e um orçamento bilionário, criar uma floresta em estúdio é aquele tipo de coisa que eu, como produtora, não consigo entender, a não ser como amadorismo ou preguiça. Alguns figurinos também passavam essa sensação, como armaduras que pareciam ter acabado de sair da loja, e não de voltar de uma guerra. Já as atuações não passaram de medianas e nenhum personagem conseguiu se destacar. Mesmo com grandes atores em cena. Até agora estou tentando entender o que fizeram com a Galadriel, que em tese seria a protagonista da série, mas que não passa por nenhuma jornada de transformação. Uma das personagens mais lendárias de Tolkien, a elfa milenar foi transformada numa menina mimada e ressentida sem nenhum tempero. Como alguém que tem mais de 10 mil anos e já passou por tanta coisa pode ter esse tipo de personalidade? Incompreensível. Li que a atriz Morfydd Clark sequer se deu o trabalho de ler os livros. Embora eu, pessoalmente, ache isso um absurdo para qualquer pessoa que entra numa produção adaptada, e um desrespeito à obra, isso até pode passar quando se tem uma boa direção de atores e, principalmente, um bom roteiro. E é justamente nesses dois quesitos fundamentais e basilares que Os Anéis de Poder peca e desperdiça o seu orçamento. Como encontrar elementos para desenvolver um personagem com um roteiro meia boca em mãos? Como atuar se não há uma direção real de atores? Não estamos por trás das câmeras para saber disso, claro. Mas não é preciso, pois o que é visível em uma obra audiovisual revela o invisível por trás dela. Mas mesmo o visível não convencia, como no caso dos cenários, dos figurinos e até dos figurantes. Além disso, havia cenas tão pobres em desenvolvimento e ação que é difícil acreditar que estamos vendo uma produção de porte, comprometendo totalmente o princípio da verossimilhança. Em algumas, faltavam personagens, em outras sobravam. Ou pior: havia cenas em que simplesmente se ignorava as emoções dos personagens, como se pessoas (ou orcs) fossem meros bonecos ocupando espaço no meio de uma explosão pirotécnica ou de um cenário grandioso. No geral, parece haver tanta preocupação com a paisagem (além da floresta de plástico) e com os efeitos especiais que a gente até esquece que aquele lugar é habitado. Impossível criar conexão dessa forma. Como fazer, então, a série cumprir sua função de obra cultural e artística com um roteiro e uma produção tão aquém da profundidade da obra de Tolkien? Sequer o tema central de sua obra, e que é o tema central dessa era da Terra Média, foi bem explorado: a ascensão do Mal.

A ascensão de um grande Mal deveria causar espanto, medo, raiva, revolta e, por fim, a aceitação de que é preciso encarar o seu olho para não sucumbir às ilusões. Afinal, a realidade não é um mar de rosas. É luz e sombra. O mal tem a sua função psicológica, como a arte tem a dela de mexer profundamente com as nossas emoções e nos fazer (re)considerar as nossas próprias ações no mundo. Mas a série, ao não cumprir suas funções básicas, nos faz indiferentes à ascensão desse Mal. Parece que tanto faz como tanto fez que tantas pessoas tenham morrido e um mal terrível tenha dominado a Terra Média. O tema central da obra de Tolkien é simplesmente um dos temas mais fundamentais da história humana: como enfrentar o mal que nos habita e deixar reluzir nossa luz sem que ela nos ofusque e se torne alimento do próprio Mal. Tolkien era um profundo conhecedor de mitologia, filologia, linguística, história e, claro, da alma humana. Criou uma obra que conversa com as raízes mais ancestrais do inconsciente coletivo e que, por isso, arrebata corações em todo o mundo há quase 70 anos. Daí vem o homo superioris do século XXI e destrói a sua profundidade, transformando-a em uma novela das seis, com cenários bonitos, mas limpinhos demais, falas forçadas que parecem declamações de poemas baratos, cenas sem nenhuma conexão entre elas, coisas mal explicadas e outras explicadas demais, e personagens zanzando de um lado para o outro sem saber o que fazer, munidos de um roteiro péssimo. Mesmo os diálogos mais toscos de George Lucas na saga Star Wars não superam essa falta de cuidado da bilionária Os Anéis de Poder. Mas Lucas foi mestre em captar o inconsciente e criar personagens com os quais a gente se conecta na alma. A comparação pode não ser a melhor. Porém, se eu for comparar com outras séries de fantasia mais atuais ou com os filmes do Peter Jackson, a situação de Os Anéis de Poder fica bem pior. Melhor deixar quieto e partir para o que a série tem de bom. Para mim, no entanto, tudo isso foi ótimo. Como escritora e produtora, aprendi como não criar personagens e desenvolver uma história, e como não fazer uma série, se um dia eu quiser me aventurar a ser showrunner de uma. Aliás, descobri assistindo a um vídeo no YouTube que os showrunners de Os Anéis de Poder não têm nenhuma experiência prévia com produções desse porte, o que parece aquele tipo de história que a gente vê muito no mundo da arte com financiamento privado: a do cara que tem o dinheiro, quer fazer algo grande e contrata o sobrinho que “quer ser artista” para dar uma chance para ele, ao invés de contratar profissionais gabaritados. Que coloque o sobrinho! Todo mundo merece uma oportunidade para começar. Mas como estagiário ou assistente, não como chefe. Qual a relação dos showrunners com o Jeff Bezos eu não faço ideia, mas que parece isso… Ah, parece!

Mas vamos falar de coisa boa, vamos falar da nova TekPix! O principal acerto da série é a representatividade, o que não compromete em nada o princípio da verossimilhança como alguns puristas argumentam. Já sabemos que os problemas da série são outros. É bonito ver, cada vez mais, pessoas negras, asiáticas, latinas, entre outros grupos que foram minorizados, ocupando lugares de destaque nas grandes produções hollywoodianas. Representatividade faz toda a diferença! Não tem nada que gere mais conexão em uma obra audiovisual do que uma pessoa se ver representada na tela. Outro acerto da série são as paisagens, as mesmas belas paisagens da Nova Zelândia usadas por Peter Jackson (ignorado na série, apesar de referenciado em vários momentos) em sua trilogia. Mas quem dera paisagens fizessem uma obra! A cena que mostra o reino de Númenor a primeira vez também é bem interessante e dá a dimensão da beleza e da grandiosidade dos sítios criados por Tolkien. Os orcs são legais, quando não precisam atuar sob uma má direção. No mais, alguns personagens quase chegam lá no quesito conexão. Os anões são maravilhosos. Amei! Elrond também. Comecei a série não gostando muito dele, ligada ainda ao Elrond do Hugo Weaving nos filmes, e terminei achando que ele foi um dos personagens mais interessantes, muito embora tenham deixado ele se perder no caminho. Os demais, só mesmo a esperança nas cenas dos próximos capítulos. Que consigam desenvolver bem o Isildur, que tem um papel fundamental na história, mas agora é só um garoto de expressão zero; o elfo Arondir, a humana Bronwy e o seu filho; a pé-peludo Nori; o Estranho, que todo mundo já imagina ser o mago Gandalf, embora não faça nenhum sentido Gandalf estar na Terra Média naquela época, segundos os livros; e, claro, o temível Sauron. Quanto de expectativa paira sobre ele, que é a própria encarnação do Mal! Haja trabalho para darem vida a esse que é o grande antagonista da história. Boa sorte para o ator Charlie Vickers! Quanto a Galadriel, para que ela convença algum ser humano lá dentro de sua alma haverá que ser feito um grande trabalho. Da atriz, dos roteiristas, dos diretores, dos showrunners e dos deuses da arte e da fantasia. Galadriel é a liga da história, mas parece que os donos dessa bola chamada Os Anéis de Poder se esqueceram disso. E de todos os seus personagens. Transformaram-se, eles, nos personagens principais. Deslumbraram-se, como se tivessem sido tomados pelo Um Anel de Sauron: quiseram fazer algo tão grandioso, caro e espetacular para chamarem de “my precious” que, ofuscados pelo poder, podem ter sucumbido à maldição que tomou Gollum e comprometido uma grande obra e a própria função de sua arte. Arte e poder não combinam. Mas parece que as cabeças de Os Anéis de Poder não entenderam isso. Ou seja, não entenderam a própria obra de Tolkien, que ainda bem que não está vendo esse apropriação capitalista selvagem de sua obra-prima.

Por que encerrei um canal no YouTube após uma semana do lançamento

Começo esse texto às gargalhadas, imaginando a expressão das pessoas que me conhecem mais intimamente dizendo: “Tinha que ser a Vanessa mesmo! É muito geminiana!” Nessa hora a gente culpa a astrologia para não se sentir muito destrambelhada. Pois eis que após planejar e lançar um canal meu no YouTube, voltado à arte e ao entretenimento com pensamento crítico, desisti dele uma semana depois. Em alguns casos, desistir é, definitivamente, uma opção! Mas por que eu quero desistir? Será que é isso mesmo? Pensei durante toda a semana, tomada pela exaustão e uma pressão terrível de ter que fazer roteiros, gravar e editar vídeos com temas variados, muitos deles passando longe do meu tema de pesquisa atual, sendo que meu tempo já está tão ocupado. Inclusive, ocupado pelo dolce far niente, a doce alegria de fazer nada, algo que demorei muito para conseguir inserir na minha vida e que merece a minha dedicação. Venho descobrindo que fazer nada é tão necessário quanto fazer a coisa certa.

Desde que lancei a Medicina das Palavras, há quase dois anos, também com um canal no YouTube, tenho descoberto muitas coisas a respeito da relação entre personalidade, propósito e vida online. Embora eu tivesse certeza de que a Medicina das Palavras não seria um canal – o canal é apenas mais um espaço de interação – eu tinha para mim que ela seria uma empresa digital. Com isso, em agosto do ano passado nós lançamos um curso online. De lá pra cá, foi insana a corrida para entender o que significa construir autoridade na Internet. Fiz vários cursos de marketing digital, desde tráfego pago a curso de copywriting, e nunca ficou tão claro para mim o que significa o conhecimento: absolutamente nada quando ele não tem uso. Entender de marketing não me habilitou a saber utilizar a linguagem do marketing, que nunca foi a minha linguagem. Esse é um lugar no qual eu preciso me esforçar para conseguir algum resultado. Não é natural para mim quanto é escrever um ensaio, uma poesia ou dar uma aula. Para pensar o marketing, eu preciso de parceiros. Mas esse é um assunto que não cabe nesse texto. Há algo mais importante por trás de tudo isso, uma pergunta que me acompanhava já há um tempo: eu quero construir autoridade na Internet? Eu quero realmente ter uma empresa digital? Qual é a prioridade disso na minha vida?

Essas perguntas vinham a mim especialmente porque eu sofria muito em ter que construir esse lugar e acompanhar o insano bonde dos algoritmos das redes sociais. Analista que sou, claro que dediquei um bom tempo a analisar isso, e percebi que boa parte do meu sofrimento tinha a ver, antes de tudo, com a minha personalidade. Não era porque eu não gostava do marketing ou achava que eu não devia estar na internet. Marketing é fundamental para que o nosso trabalho e mensagem cheguem até as pessoas certas. E hoje em dia, estar na Internet é necessário. É um espaço importante de troca, debate e expressão da nossa verdade. Não só, mas também. Porém, temos tomado este “estar na Internet” como uma verdade absoluta que vale para todos, como se fosse impossível hoje em dia fazer dinheiro, construir carreira e se expressar de outras formas, sem postar todos os dias e ficar expondo a vida nos stories. Isso é insano! Percebi que eu havia introjetado isso e estava seguindo a manada, movida por uma ânsia de me expressar. Que sim, eu tenho! Mas a questão é: como eu quero comunicar a minha verdade? Mais ainda: qual é a minha forma mais potente e verdadeira de me comunicar e me expressar? Eu precisava descobrir de uma vez por todas! E sabia que a resposta que eu encontraria serviria também a outras pessoas.

Algumas personalidade se adequam muito bem ao mundo dos algoritmos. A minha não. Sou mais introvertida do que extrovertida e preciso de tempo para elaborar o pensamento. Há semanas em que quero aparecer, falar, postar. Tem outras que só quero ficar no silêncio, longe das redes sociais, curtindo a natureza. Quando não respeito isso, crio sérios problemas para mim e para as pessoas ao meu redor. Às vezes, um texto acontece de um dia para o outro. Outras vezes, preciso de semanas para construir um. Elaboração e tempo são necessidades minhas. Logo, decidi que não iria me violentar para me dobrar ao tempo das redes sociais. Até mesmo o YouTube, um espaço para reflexões mais profundas, é um lugar complicado de se manter, especialmente quando a vida nos chama a outras prioridades. Como postar vídeos toda semana em um canal, com temas diversos, e ainda conseguir aprofundar os temas? Pois se não é assim, o YouTube simplesmente não entrega o seu conteúdo. Eu não consigo lidar com isso. Ao menos, não agora nem sozinha. Meu tempo interno, mais do que o externo, não colabora. Já o tempo externo, nesse momento, está ocupado com prioridades que só consegui perceber dessa forma depois de lançar o canal e me perguntar: mas o que estou fazendo!? Minha mensagem se torna mais potente para o outro quando ela vem da elaboração. Para isso, é preciso pesquisa, criação, escrita e, claro, tempo, pois nada disso se faz bem na correria. Ao compreender e aceitar isso, coloquei de volta o meu doutorado como prioridade, seguido dos meus livros e do trabalho que já venho construindo na Medicina das Palavras. No tempo em que é possível! Precisamos aceitar o nosso tempo e encontrar o equilíbrio entre ele e o tempo social.

Ainda fiz uma análise geracional do caso que não sei se faz muito sentido sociologicamente ou se fará sentido para você. A mim fez. Sobre as dores e as delícias da Geração Y, a Millennial, que diz respeito aos nascidos entre 1981 e 1996 (alguns analistas indicam o início da Y em 1980, quando eu nasci). Sou do início dessa Geração, ou do finalzinho da X, na passagem para a Y. Faço parte daquela turma que nasceu sob uma grande expectativa: foi esperado que mudaríamos o mundo! Mas o que aconteceu com a gente foi um baita de um anticlímax. A Geração Millennial é a que viu uma transformação radical da sociedade com o surgimento da Internet e o advento de grandes crises sociais e econômicas mundiais. Parece que isso nos levou a um questionamento profundo sobre quem nós somos e o que queremos da vida. Logo, não me parece coincidência o fato da discussão sobre autoconhecimento ter se expandido conosco. Fomos nós que abrimos esse caminho. Os estudiosos das gerações classificam os Millennials como possuidores, de uma lado, de uma vontade enorme de realizar e, de outro, de um grande sentimento de frustração. Somos a geração cuja angústia é essa dualidade entre o desejo e a incapacidade. Por isso também, somos a geração que disparou o êxodo urbano contemporâneo, iniciado na geração anterior. Nós vimos a decadência do capitalismo e a crise das grandes cidades, e nos tornamos a verdadeira geração do lema “eu quero uma casa no campo”, sedenta por uma vida com mais sentido, silêncio, tempo e relações mais profundas. Eu mesma sou uma dessas pessoas. Venho alimentando o desejo dessa mudança. Como, então, ocupar o tempo com mais uma atividade que demanda tanta presença nas redes sociais?

Já fui uma workaholic, tive duas crises de Burnout e uma bem séria de ansiedade generalizada. Ocupar o tempo era a minha especialidade. Só depois de adoecer é que percebi que era preciso mudar. Mas como esse foi um padrão que durou pelo menos 20 anos na minha vida, às vezes ele retorna. Minha mente e meu corpo ficaram viciados nele. É em momentos assim que percebo o poder revolucionário do autoconhecimento. Em outros tempos mais inconscientes, eu teria levado uma eternidade para perceber que eu não iria dar conta de mais um projeto. E mais do que isso: quais eram as segundas intenções desse projeto. Infelizmente, segundas intenções nos movem em algumas ações. Quantas coisas já não criamos e fizemos para fugir do que realmente precisa ser encarado ou feito? Contamos para nós uma história incrível sobre as motivações daquele projeto, convencemos até o outro, mas no fundo ele é só uma distração ou um alimento para as feridas do ego. Felizmente, percebo com cada vez mais rapidez as ciladas nas quais me coloco.

É impressionante como a gente se sabota inventando situações que nos tiram do caminho que temos que trilhar, e que ainda nos violentam. Mas isso não é necessariamente ruim. Se não fizéssemos isso, como saberíamos qual o caminho? Apenas quando erramos, podemos acertar. Ao perceber o erro, nos cabe corrigir o rumo. O importante é corrigir, não se deixando levar pelo medo, a culpa ou a vergonha de dizer “errei, não era por aqui, vou mudar”. Entendendo também que isso não é um fracasso, é só um resultado de uma inconsciência. A consciência não teria vindo se não tivesse havido o movimento. Assim, percebo como foi importante ter lançado o canal. Se eu não o tivesse lançado, talvez eu demorasse muito mais para perceber o que eu já vinha intuindo com dois anos de vida online com a Medicina das Palavras: que eu não quero viver de internet. É claro que não tenho como fugir da internet. Nem quero. Como escritora, encontro a maior parte do meu público na internet. Como palestrante, professora, consultora também. Mas há muito para viver “do lado de fora”. Há relações para alimentar, outras para construir, casa para cuidar, projetos para realizar que não estão no mundo online. Não foi à toa que mudei os rumos da Medicina das Palavras de um projeto totalmente digital para um projeto que possa ser mais independente das redes. Isso já me dizia algo importante sobre o meu desejo. Não é à toa que, já faz tempo, tenho mudado muita coisa na minha vida.

Pessoas mais extrovertidas que introvertidas são ótimas em lidar com as necessidades do “deus algoritmo”. Embora, mesmo assim, precisem ter muito cuidado com a saúde mental e com as armadilhas da vaidade. O ser humano se aprisiona com muita facilidade, especialmente a números e reconhecimento. Ainda assim, extrovertidos se saem melhor do que introvertidos nesse mundo online, já que esse é o aspecto da personalidade mais valorizado pela sociedade capitalista hiperconectada. Por isso também é preciso que os introvertidos afirmem seu modo de ser. Introvertidos de todo o mundo, uni-vos! Ainda no quesito conformação ao tempo dos algoritmos, a Geração Z, então, tira de letra. É a geração que já nasceu em um mundo hiperconectado. Cada um de nós precisa saber o seu lugar nesse trem da personalidade e das gerações. Mas, mais do que isso, no trem da sua verdade. Precisamos saber o que damos conta e o que não damos, quais são os nossos limites e também onde e como somos mais potentes. Não dá para ser tudo e dar conta de tudo! Essa é uma ilusão contemporânea perigosa. A coragem de encarar essa ilusão e fazer a autoanálise nos chama. A de aceitar quem se é, também. Precisamos disso não apenas por nós, mas pelo coletivo. Quando descobrimos onde e como somos melhores e mais felizes, descobrimos nossa melhor maneira de servir ao mundo. É simples! Mas é complexo… No entanto, não me afastarei das redes sociais. Ainda há trabalho nesse sentido a ser feito. E talvez haja para sempre. Mas não pretendo me violentar em nome da lógica insana do “no pain no gain” ou do “desistir não é opção”. Inaugurar mais um canal foi mesmo um equívoco. Um erro pelo qual agradeço imensamente! Pois sigo em acordo com Jung, quando ele diz em seu Livro Vermelho: “O que sabes de seu erro? Talvez seja sagrado.”

O mal não tem uma resposta fácil! A série Dahmer: um canibal americano traz mais perguntas do que respostas.

Hoje eu vou falar sobre uma série que entrou para a lista das 10 séries mais assistidas da história da Netflix – Dahmer: um canibal americano – que conta a história, ficcionalizada, do serial killer Jeffrey Dahmer. E não contente em produzir esta série, a Netflix ainda lançou hoje, dia 7 de outubro, um documentário sobre o caso.

Para mim essa foi uma série bem difícil de assistir, pois ela fala de uma história real e intragável que nenhuma história de terror de ficção chega perto. Até hoje, o mais perto que eu cheguei de sentir um asco profundo com uma ficção de terror foi lendo o livro “A narrativa de Arthur Gordon Pym”, que é o único romance de Edgar Allan Poe e até tem uma questão semelhante a de Dahmer, num ponto bem específico do livro. Ainda assim, a história não se aproxima de Jeffrey Dahmer e por uma razão muito simples: a de Dahmer é real e nos leva a questionar os limites da nossa humanidade.

De fato, como o nome da série em inglês nos diz, Dahmer foi um monstro. O primeiro episódio é bem incômodo. Depois dele eu achei que eu não ia conseguir assistir, mas eu queria muito chegar ao final porque o tema do Mal, das sombras e da violência é o meu tema atual de pesquisa – e eu gosto de ver também como a indústria cultural lida com o tema, porque isso revela muito da nossa sociedade e do inconsciente coletivo. Como a mente tem lá as suas formas de criar filtros e lidar com as coisas, depois de uma noite de pesadelo eu consegui aos poucos engrenar e os últimos episódios eu já assisti de uma vez só.

Mas a série não tem muitas cenas explícitas de violência. Muita coisa é sugerida. Só que isso torna tudo ainda mais tenso, porque a capacidade da mente de imaginar é infinita e poderosa. E isso pode ser uma armadilha. Então, se você não tem um estômago muito forte, sinceramente, melhor não assistir. Mas fica aqui comigo, porque mesmo falando sobre a série, na verdade, a série é um pretexto para uma reflexão sobre esse mal avassalador e sobre a violência da nossa cultura.

A série é uma produção de Ryan Murphy, muito conhecido e celebrado na indústria cinematográfica, e que tem o horror e as mentes perturbadas como um de seus temas de trabalho preferidos. Os outros temas são a homossexualidade, os excluídos de todo tipo, as histórias de superação. Entre seus sucessos estão Glee, Ratched, Hollywood e Comer, rezar, amar. Murphy é conhecido ainda pela lendária série de horror American Horror Story, e é de lá também que saiu Evan Peters, ator que interpreta Jeffrey Dahmer, e que disse que esse foi o papel mais difícil da sua vida. Dá para entender o porquê assistindo à série… E olha que ele já interpretou outros serial killers na carreira dele. Eu espero sinceramente que Evan nunca largue a sua terapia, porque eu não sei como alguém consegue mergulhar tanto assim na escuridão da alma de uma forma tão visceral sem pirar. O trabalho de Evan Peters na série é fenomenal! Eu confesso que eu precisei assistir algumas entrevistas com ele depois, com a cara dele mesmo, pra tirar da minha mente a imagem dele como o Dahmer, porque eu fiquei muito impressionada e até esqueci o rosto do próprio Dahmer real. Se tem um motivo para assistir à série, é esse, a atuação de Evan Peters. O outro motivo são as questões sociais abordadas, muito embora não seja realmente necessário contar a história de Jeffrey Dahmer para falar desses assuntos. Um outro ponto é a explanação do mal que nós, seres humanos, somos capazes de dar vida e o qual não podemos ignorar. Mas quanto a isso, a gente pode até questionar a existência da série. Embora séries de true crime sejam interessantes, e eu acho que elas devem ser produzidas porque mostram aspectos importantes da nossa sociedade e da nossa psique que a gente não pode fingir que não existe, tudo depende: por exemplo, de como a história é contada, em que momento e contexto. O contexto do caso Jeffrey Dahmer é o da exploração excessiva da sua história e é delicado revisitá-la o tempo todo. Há uma infinidade de livros e documentários sobre ele, e cada um com o seu ponto de vista, revivendo de tempos em tempos essa história sem dar grandes explicações. Há outros contextos em que uma história de crime é revisitada de maneira mais cirúrgica, na tentativa de explicar o nascimento de um serial killer, o que é uma proposta bem interessante.

Vou dar um exemplo do próprio Ryan Murphy que eu acho muito feliz: a série American Crime Story. Ele é um dos produtores da série e esteve bastante envolvido com a segunda temporada, “O assassinato de Gianni Versace”, que conta a história de outro assassino em série, o Andrew Cunanan, que ficou famoso por sua última vítima, o estilista Versace. Na série, Ryan une todos os seus interesses e conta uma história muito coesa, numa produção incrível, sobre como a obsessão e outros desequilíbrios psíquicos são agravados e, em alguns casos, gerados por uma cultura preconceituosa e violenta contra os mais diversos modos de viver. A série costura muito bem essa relação entre a sociedade e o nascimento de um serial killer.

Embora o caso de Jeffrey Dahmer guarde uma semelhança ou outra com o de Andrew Cunanan, por exemplo, no fato de ambos serem homossexuais e matarem apenas homens, ele é diferente. O nível de monstruosidade, que envolvia mutilação, esquartejamento e canibalismo, é o que assusta e nos deixa sem respostas sobre qual a origem desse mal, embora se possa especular muita coisa. Talvez seja por isso, por essa falta de uma resposta conclusiva, que não nos cansemos de revisitar essa história. Eu sinto que a série tenta uma explicação, ainda que a única explicação possível seja complexa, mas fica passeando e tateando, como se fosse encontrar uma resposta que nunca chega. Vai na infância de Jeffrey, nos dramas familiares, no alcoolismo, na pressão que homossexuais sofrem em uma sociedade heteronormativa e na permissividade de uma sociedade branca e racista. Mas nada disso explica a monstruosidade de Dahmer, pois se assim fosse produziríamos serial killers como ele em massa, ainda que serial killers sejam um fenômeno que não podemos ignorar.

No caso de Dahmer, não é possível saber qual foi o gatilho que despertou nele um desejo mórbido e sombrio de matar, e ainda mais, do jeito que ele matava. No entanto, se não é o drama familiar e a sociedade que criam monstros como Dahmer, não dá para desconsiderarmos que os desequilíbrios familiares e coletivos estimulam que uma monstruosidade latente possa se expressar externamente. Uma das cenas mais interessantes para mim, nesse sentido, é a que ele tenta conversar com o pai, Lionel Dahmer, alguém em quem ele confiava e a única pessoa com quem ele teve uma relação próxima de amor, ainda que de formas um pouco tortas: ele se dobrava sempre aos comandos do pai, mesmo que não sustentasse suas decisões depois. Quem sabe fazia isso numa tentativa de nunca perder esse que era o único amor que ele tinha… Ele sempre se disse muito solitário, tinha uma ferida de abandono, que muitas pessoas têm, mas isso não faz de ninguém um monstro. Na conversa com o pai, numa tentativa de pedir ajuda, Jeffrey tenta falar sobre suas fantasias, porque ele tinha medo do que poderia vir a fazer e do que já havia feito, segundo ele, sem querer. A primeira morte não parece ter sido premeditada. O pai, assustado com o início da conversa, não sabe o que fazer e muda de assunto, espelhando a nossa incapacidade de lidar com os tabus e os assuntos mais sombrios da natureza humana. Simplesmente porque, ao invés de falarmos sobre eles, nós os tememos e fingimos que eles não existem. Fingimos ainda que sabemos quem é o outro. Queremos que nossos filhos, pais, irmãos e irmãs, parceiros e parceiras sejam a nossa projeção sobre eles. Mas a verdade é que não os conhecemos. Nem sequer conhecemos muito de nós mesmos. E essa é a nossa culpa coletiva: o medo da nossa própria natureza atrasa o nosso desenvolvimento como pessoas e como sociedade. Talvez se o pai tivesse tido coragem e estrutura para ouvir o seu filho, a história poderia ter sido bem diferente, embora, ainda assim, pudesse esbarrar em contextos perigosos, como na biologia do crime, que traz dilemas éticos profundos. O que fazer com alguém que diz ter vontade de mutilar pessoas e matar, especialmente se esse alguém for o seu filho? Estamos preparados para dar uma resposta pela perspectiva da saúde mental e coletiva, ou nosso impulso será sempre o de punir e matar? Mas como esse pai poderia ter tido força interna para ouvir o filho e fazer essa pergunta, se somos ensinados não a lidar com a complexidade da vida, mas a fechar os olhos para ela, a nos sentir culpados por ser quem somos e a cumprir os papeis esperados de nós!? Como!?

Dito isso, um outro aspecto que merece a nossa maior atenção na série é como ela expõe o racismo. A trajetória de Jeffrey Dahmer deixa claro que se ele fosse um homem negro, muito provavelmente teria ido parar na prisão antes mesmo até que matasse alguém. Mas o fato de ser branco livrou a cara dele várias vezes, inclusive em momentos em que a polícia esteve muito perto de pegá-lo. Os muitos avisos à polícia de que havia algo de muito errado no apartamento de Jeffrey, pela vizinha Glenda, interpretada maravilhosamente pela atriz Niecy Nashe, são angustiantes e reveladores dessa realidade do racismo. Em um dos episódios, ouvimos ao final a gravação real de um telefonema da Glenda real para a polícia, polícia essa que se mostra racista e homofóbica, logo, conivente com Jeffrey Dahmer. E depois esses policiais ainda ganham um prêmio. Acreditem!

Entre 1978 e 1991, Dahmer violentou, matou e esquartejou 17 homens e garotos. Apenas os 2 primeiros, que ele dizia ter matado acidentalmente, eram brancos. Os demais eram negros, em sua maioria, mas também indígenas e asiáticos, todos homens gays. Além de ter exercido a torto e a direito o seu privilégio branco, Dahmer teria ódio de homens? Não se aceitaria como homossexual? Em uma de suas entrevistas ele disse que tinha vergonha de ser gay. O que revela não necessariamente uma característica pessoal, mas a nossa incapacidade como sociedade de acolher e aceitar as diferenças. Essa hipótese do ódio aos homens, e de si mesmo, é apenas uma das hipóteses possíveis, mas que também não explica ele ter se tornado o que se tornou.

A série traz como objetivo expor essa realidade do racismo, do privilégio branco e da homofobia, e sinto que ela faz um esforço sincero para focar uma parte da história nas vítimas. Acho que consegue até certo ponto. O episódio do julgamento e o episódio 6 são exemplos disso. O episódio 6 conta a história de Tony. Para mim, foi um dos episódios mais bonitos e mais tristes também, porque a gente vê não apenas um vislumbre de luz no Jeffrey Dahmer, quando ele tenta lutar contra o que ele dizia ser a compulsão dele, mas principalmente porque conhecemos a história de um garoto muito luminoso, talentoso e cheio de sonhos, que teve a sua vida interrompida pelo seu encontro com o serial killer.

Há na série também uma outra denúncia, se é que podemos chamar assim, bem interessante e necessária, que é sobre o tratamento violento dado às mulheres em nossa sociedade. A medicalização excessiva da mãe de Dahmer durante a gravidez lembra os primeiros estudos sobre a histeria, que naturalizava a loucura na mulher. A mãe de Dahmer tinha depressão, tentou se matar algumas vezes e não teve apoio familiar e social necessário para lidar com isso. A forma ainda como o pai de Jeffrey tratava a sua esposa era agressiva, misógina e acusativa. Foi nesse ambiente que cresceu Jeffrey Dahmer. Por mais que isso não tenha gerado a sua monstruosidade, pois o seu irmão cresceu no mesmo ambiente e não é um serial killer, pode ter disparado dentro dele, ainda criança ou na adolescência, algo já latente nele, um mal para o qual toda explicação parece ser insuficiente.

Pois há um mal que não possui explicação psicológica, sociológica ou qualquer outra que dê conta. É tudo e mais um pouco que desconhecemos. Talvez tenhamos que simplesmente lidar com essa angústia, essa ausência de uma resposta satisfatória. Essa é a própria hipótese de Jeffrey Dahmer em uma conversa muito interessante que ele tem com um padre, dentro da prisão, que a gente vê no penúltimo episódio. Ele pergunta para o padre se ele acredita que há algo como simplesmente ser mal, sem explicação. O padre diz que sim e eles têm uma conversa bem curiosa sobre os vilões do cinema. Mas há outra pergunta que Dahmer faz ao padre que parece ser uma pergunta que devemos nos fazer: porque há tantos serial killers atualmente? Ele pergunta isso ao ver na TV a história de John Gacy, outro serial killer famoso dos EUA, conhecido como O Palhaço Assassino. Dahmer questiona ao padre: porque há tantos outros como eu hoje? Não temos a resposta facilmente, mas a pergunta precisa ser feita, e a resposta talvez esteja nessa combinação explosiva de medo de nós mesmos com uma cultura opressora, segregadora e segregativa, somados à nossa dificuldade em lidar com essas manifestações sombrias da nossa psique. Quem espera uma resposta fácil, parece ser um pouco ingênuo.

É curioso perceber uma clareza em Dahmer quando ele faz essa pergunta. Ele também queria se entender. Parece que sempre esteve muito consciente de que o que fazia era errado, o que ele mostra nas suas entrevistas. Quando foi preso, pediu para ser morto. Só não foi porque o estado de Milwaukee não tem pena de morte. Ele não era um psicopata, diferente de algumas análises que estão sendo feitas por aí. Psicopatas seduzem aos poucos, não estabelecem vínculos mas fazem o outro acreditar que esse vínculo existe, e não se arrependem ou sentem culpa alguma. Jeffrey Dahmer parecia sentir culpa, tinha dificuldades de se relacionar e se apegava ao extremo aos outros. Queria literalmente devorá-los para que fizessem parte dele. Drogava as suas vítimas antes de mutilá-las e matá-las, segundo ele, para que não sentissem dor. Mas afirmava também não conseguir parar de fazer o que fazia, como uma compulsão. Pesquisei pelo diagnóstico psiquiátrico dele e encontrei que ele foi diagnosticado com borderline em um alto grau, que é um transtorno que deixa a pessoa extremamente instável, além de transtorno psicótico e esquizoide. Mas mesmo que esse diagnóstico traga alguma explicação, ainda fica a questão: como lidar com isso e como esses fatores podem levar a uma expressão radical daquilo que chamamos de Mal?

A questão do mal é uma das mais antigas da humanidade. Nos intriga como nós, seres humanos, podemos carregar um nós um potencial de destruição avassalador, que produz verdadeiros monstros. O mal aniquila. Destrói não apenas a vida, mas a própria morte como expressão natural da vida, ao desejar controlar e subjugar tanto a vida quanto a morte. Não há uma resposta fácil para o Mal. E é a curiosidade por essa parte da natureza humana que faz com que séries como essa tenham sucesso. Somos tentados não apenas a querer saber, mas a ver imagens, como uma forma de dar vazão a algo muito primitivo da psique humana. Somos todos, afinal, crias de uma história civilizatória sangrenta e feitos de uma carne que sangra e se deteriora. Por mais que não lidemos com isso diariamente, a nossa memória genética sim. Acredito ainda que o nosso interesse por essas histórias passa também pela própria necessidade da nossa psique de se conhecer – isso é natural em nós. Ao olhar para o outro, nos perguntamos, ainda que de forma inconsciente, se nós seríamos capazes ou não de fazer o que o outro faz, avaliamos nossos desejos mais íntimos, nos aliviamos por descobrir que temos asco de certos comportamentos.

Mas sempre que se aborda histórias reais como essa na indústria do audiovisual, há que se lidar com a fragilidade do limite entre a luz e a sombra. Uma coisa é dar vazão à essa necessidade humana na ficção. Outra coisa é ficar remexendo nas histórias reais. No caso da série Dahmer, mesmo que Ryan Murphy e sua equipe tentem chamar a atenção para necessários temas sociais e para a dor das vítimas, eles acabam fazendo também o que toda série que conta histórias de serial killers fazem: espetacularizam o assassino. Na época em que estava vivo, Dahmer se tornou uma verdadeira celebridade. Recebia carta dos fãs na prisão e virou até personagem de quadrinhos. É o que vemos nos últimos episódios da série, onde quase vemos também uma redenção de Dahmer. Eu achei essa sequência final bem complicada em termos de edição, porque ela pode despertar dubiedades. Ele é morto espancado por um outro homem dentro da penitenciária, um homem negro. Até aí, tudo bem. Essa é a história real. Mas a cena acontece depois dessa tentativa de redenção, quando Dahmer pede para ser batizado e diz que está se esforçando para mudar. Entendo que a cena tem um caráter de vingança, mas é delicada porque coloca um homem negro matando um homem branco depois que ele estava tentando se redimir. Uma distração do espectador já pode fazê-lo reiterar o racismo e esquecer tudo o que Dahmer causou aos 17 homens que matou e às suas famílias. Enfim, esses episódios finais são complicados.

Atualmente, Jeffrey Dahmer é também um dos assuntos mais procurados nos mecanismos de busca online e é claro que a Netflix sabia que seria assim, e que seria sucesso a primeira versão romanceada da sua história. Transformar o mal em espetáculo é uma especialidade da indústria cultural. E o fato de ficarmos falando sobre isso, eu inclusive e todo mundo que vem falando sobre a série, já nos mostra que estamos todos enredados na sombra. Juntos. Não parece importar que tipo de consequência negativa – psíquica e social -, revisitar muitas vezes essa história pode trazer. O que isso revela senão o fato de que, no fundo, por mais que a gente ame filmes e séries, o que move a indústria cultural é a imoralidade? Uma cilada do capitalismo dos anéis da serpente, como diria o filósofo francês Deleuze, um capitalismo descentralizado, onde o “centro” está por toda parte, que tudo controla porque tudo absorve como válido. Ao mesmo tempo, há que se considerar que talvez essa imoralidade pode nos trazer respostas para os dilemas sociais, diante do peso que a indústria do audiovisual tem hoje em nossa vida e em nosso imaginário. Quando as histórias polêmicas vêm à tona, podemos lidar com os seus temas. Do contrário, sem mexer nelas, a gente fica sem saber o que pode emergir debaixo do tapete.

A série foi duramente criticada pela família de uma das vítimas, que está cansada de ter que se esquivar dos inúmeros programas, filmes, livros e séries sobre o caso. Não basta terem que lidar com o trauma na própria vida e memória, precisam lidar com toda uma indústria explorando a história que causou o seu trauma. É fácil compreender a perspectiva das famílias. Mas eu também compreendo o lado dos pesquisadores e de todas as pessoas que se interessam pela história de Jeffrey Dahmer, porque ela é tão radicalmente monstruosa que produz em nós um questionamento profundo sobre quem somos nós. E eu acredito que a gente precisa conhecer essa história, saber o tamanho do mal de que um ser humano é capaz. Repito: é por fingir que essa escuridão não existe, que ela pode se tornar cada vez maior.

Ao mesmo tempo, explorar em demasia uma mesma história para a qual todo mundo tem um ponto de vista, mas nenhum deles é conclusivo, pode ser apenas mais uma das armadilhas desse capitalismo hiperconectado e imoral que nos dá a ilusão de que estamos no controle e sabemos exatamente o que estamos fazendo. Só que não. Lembremos uma máxima de Freud: não somos senhores em nossa própria casa! Mas como escapar? Como ignorar as ondas coletivas? Como não se deixar seduzir? Como falar dos temas difíceis, abordá-los, sem cair na espetacularização vazia que apenas se alimenta do gosto mórbido pela violência? As perguntas seguem em aberto e Dahmer: um canibal americano, pode ser uma das séries mais intrigantes e interessantes de true crime e vir a alavancar ainda mais a carreira de Evan Peters, merecidamente. A questão é: a que custo? Fica essa pergunta também no ar, pra gente pensar. Respostas fáceis são tão perigosas quanto evitar o assunto.

The Boys e a violência da vida real

The Boys, série do Amazon Prime, me trouxe tantas reflexões que se tornou uma série muito especial para mim. Não a acompanhei no seu lançamento, acabei de assisti-la, então ela está bem fresca na minha mente e no meu coração. Achei uma das melhores séries que assisti e uma produção impecável da Amazon. Não apenas pela arte e a técnica, mas também pela crítica social, que bate pesado nas principais feridas da sociedade estadunidense, mas que são as feridas de todos nós que vivemos no chamado “mundo civilizado”: a misoginia, o machismo, o racismo, a imoralidade do capitalismo, a sujeira da alta política, os preconceitos e abusos de toda ordem.

Infelizmente, essa crítica é incompreendida por uma parte dos seus fãs, que apresentam o mesmo comportamento tóxico que vemos em vários personagens da série. O bullying desses fãs com a atriz Erin Moriarty, que representa Starlight, é um exemplo. A atriz sofreu constantes ataques nas redes sociais de homens que não aceitam o protagonismo de uma mulher em uma série repleta de personagens masculinos “heróis”. Esse é um ponto que merece a nossa atenção, pois ele nos revela que, por mais que a arte seja um importante e necessário espelho também das nossas sombras, o nível de inconsciência na sociedade ainda é grande demais para perceber isso. O que muitos veem nas telas não são a sua sombra, mas de fato os seus heróis. Enxergar a própria sombra, afinal, não é fácil. A sombra é aquela parte de nós que escondemos, seja do outro ou até de nós mesmos. O psiquismo humano tem os seus mistérios e subterfúgios. A sombra desafia a imagem que temos de nós e que queremos transmitir ao outro: a nossa idealização. Mas todos nós somos muito mais do que nossa imagem e nossos aspectos conscientes. Há muito mais mistérios sobre nós mesmos entre a consciência e o inconsciente do que supõe a nossa vã filosofia.

Encarar a própria sombra exige força. Por isso, comportamentos machistas, racistas, nazistas, fascistas, entre outros “istas” do mal, são uma fraqueza. Não se trata de força nem de longe. Quem não consegue olhar para a própria escuridão e culpa e violenta o mundo por não admirar suas pretensas qualidades acredita que é soberano de suas escolhas e opiniões quando, na verdade, é dominado e controlado por suas emoções, traumas e frustrações. É essa a história de Homelander, o super-herói fisicamente mais forte de todos, quase invencível, mas emocionalmente e mentalmente mais fraco. Um sociopata, narcisista, dependente da admiração alheia. No entanto, Homelander é também uma vítima. Isso, obviamente, não justifica seu vitimismo e o seu comportamento violento, mas precisamos compreender que os desequilíbrios mentais e emocionais de uma pessoa são também desequilíbrios sociais. São responsabilidade de todos nós quando validamos certos comportamentos na sociedade ou simplesmente os negamos e os ignoramos.

The Boys, série inspirada nos quadrinhos de mesmo nome, nada na contracorrente das histórias de super heróis para falar de nós: da vida real. Já no primeiro episódio, vivenciamos o mesmo choque de Starlight e de Hughie ao conhecer de perto os seus heróis. A realidade é que de heróis mesmo eles não têm absolutamente nada. Ela é violentada sexualmente pelo “herói” que a recebe: o intragável Deep, o Profundo, que tem esse nome porque tem guelras e consegue descer em mares muito profundos. Mas de profundo mesmo na vida ele só atinge a profundeza da sua mediocridade. Já Hughie se depara com a morte inesperada e absurda de sua namorada pelo viciado A-Train, um homem negro que encontra, de forma torta, o poder pessoal que lhe foi negado pelo racismo estrutural no poder como o super herói mais veloz do mundo.

Há na história a repetição de um tema: o masculino tóxico. O mais poderoso dos super heróis, Homelander, que tem o físico clássico do homem ariano, é a representação perfeita desse masculino em um nível muito violento. Por conta de suas ações, mas também por tudo o que cerca a sua criação. Quando criança, foi usado como cobaia de um experimento maquiavélico. Cresceu sem família e sem infância, violentado por aqueles que foram responsáveis por criá-lo. Criado para ser uma máquina de guerra sob o discurso do cidadão de bem. O mesmo pano de fundo – uma infância violenta – cerca a história de William Butcher, um simples ser humano, sem nenhum poder especial além da manipulação, sedento por vingança, que cresceu sendo ridicularizado e violentado pelo pai e que se sente culpado pelo fato do irmão mais novo ter tirado a própria vida.

É preciso estômago para assistir The Boys. A série pode funcionar como gatilho de emoções difíceis para algumas pessoas. Portanto, aprecie com moderação ou não aprecie se você tem algum trauma violento muito presente em sua vida. As histórias são duras. Violências, abusos, vícios de toda ordem. Nazismo, fascismo, capitalismo selvagem, burnout, ansiedade. Tudo é exposto com uma crueza terrível. Inclusive, as cenas de morte e violência. O tempo todo o sangue jorra na câmera. Mas, para mim, as cenas de sangue não são as piores. Elas beiram o absurdo e o caricato, tendo lugar numa linha narrativa e artística já antiga no audiovisual, que une desde filmes de terror às obras de Quentin Tarantino. Claro, também expressam a arte da HQ. Mas o que é uma cabeça explodindo de forma quase caricata diante do trauma de ser violentado durante toda a infância e adolescência pelo próprio pai? Essa é também a história de French, o Francês, um personagem apaixonante que, diferente de Butcher, que expressa a sua dor da infância repetindo o pai, ou de Homelander, que expressa a falta de pai e mãe e de infância na sede de poder, recorre ao vício. É triste, mas Francês é responsável por parte das cenas mais doces da série junto com a poderosa e igualmente doce Kimiko. Soma-se a eles Leitinho, que apesar do nome ridículo é um homem nobre, para mim, o mais nobre de todos na série (que tem uma história um pouco diferente da HQ). Na série, ele é um pai zeloso, perturbado pelo assassinato de sua família por um super-herói nos anos 80 e responsável por cenas bem engraçadas; temos também Hughie, com quem dá vontade de cantar Billy Joel junto e que dá vontade de abraçar o tempo todo nas suas trapalhadas e em sua insistência em fazer o certo, obviamente errando algumas vezes; e Starlight, que depois de abusada e explorada como sex symbol em seu papel de heroína, revela-se uma heroína de verdade, antes de tudo, da própria vida! A série também traz outros respiros nesse universo doloroso: Queen Maeve, cuja dor de quem só gostaria de ser feliz com Elena, o amor de sua vida, e ter um pouco de paz, nós sentimos dentro da gente; e o menino Ryan, para quem a gente torce que possa sair desse ciclo violento de uma cultura misógina, armada e que transforma pessoas em objetos.

O grande acerto de The Boys é mostrar que herói mesmo é quem consegue sobreviver com sanidade e, mais que isso, viver, apesar da crueldade da existência. Em seu Livro Vermelho, o psiquiatra e psicólogo suíço Carl Jung escreveu: “o herói precisa morrer por causa de nossa redenção, pois ele é exemplo e exige imitação”. Não podemos repetir o herói o tempo todo. O arquétipo do herói é ativado em nós sempre que estamos diante de desafios que nos pedem coragem. Nós precisamos dele. Mas uma vez que esses desafios passam, temos que deixar morrer o herói em nós, ou jamais seremos capazes de fazer nascer o mestre e a mestra interior que nos habita. O herói nos ensina que só podemos ser heróis para nós mesmos, antes de tudo. É isso que também inspira as outras pessoas. Quem insiste em fazer o papel de herói de um grupo ou de uma nação, corre sérios riscos de se apaixonar pelo poder. Homelander que o diga!

Voto útil: uma reflexão sobre o eu e o coletivo

Eleição chegando e venho aqui fazer uma reflexão sobre o voto útil. Não como uma simples opinião, mas a partir do que concluo com as minhas pesquisas sobre o inconsciente coletivo e a gênese da violência. Não a faço, no entanto, com a pretensão de convencer ninguém, pois eu respeito muito as liberdades individuais. Mas isso não significa que eu vá deixar de expressar minhas posições. Claro que nem toda posição precisa se tornar pública. Não sou obrigada. Faço esta reflexão porque o momento é crucial para o país, como um convite para que reflita junto comigo. Posso não ser obrigada, mas sou parte de um coletivo. Somos! E não podemos fugir à essa responsabilidade como crianças feridas que se escondem por medo de não receberem afeto.

Ao meu ver, o momento é crucial especialmente no que diz respeito à diversidade que se expressa na vida humana, que vem sendo ameaçada tanto quanto a diversidade do meio ambiente. Essa diversidade, mesmo que haja quem não a aceite, é uma manifestação natural. Observe a Natureza e verá! É a diversidade que mantém a vida em seu estado de equilíbrio. Quanto mais rígidos e unilaterais nós somos, mais desequilibramos a balança e mais a violência se propaga. Toda história de violência no mundo é a história de uma cultura ou psique rígida que não aceita o que é diferente dela e se considera portadora da verdade universal. Tal diversidade, porém, tanto a humana quanto a da natureza em si, está ameaçada no Brasil por práticas discursivas que se apoiam na pauta nacionalista e no que consideram valores cristãos. Mas esse é um tipo de cristianismo mais diabólico do que em consonância com a mensagem de Cristo. Diabo vem da palavra latina diabolus que, por sua vez, vem do grego diábolos, sendo aquilo que gera caos e desunião. Diá é um prefixo que, neste caso, significa “o que separa”, assim como sym (de sýmbolos) é o que une. Diabólico é o oposto do simbólico. Não é o que temos visto? Quanto à pauta nacionalista que se diz a favor do país, a questão é: que país? Ser a favor do país eu também sou. Mas se estamos tendo o mesmo entendimento de país é que é o ponto. Um país que desmata as suas florestas, que favorece o latifúndio e o grande capital, que violenta os povos e saberes originários, que deixa o pobre mais pobre e que nega a diversidade é um tipo de nação que não se sustenta mais. Tentar mantê-lo é forçar a barra para manter o passado, como se isso fosse possível. A vida mostra o tempo todo que não. A vida é um ciclo eterno de vida-morte-vida. Só não percebe quem está em negação. Esse discurso reacionário reapareceu no mundo não foi à toa. Emergiu como uma necessidade da própria psique coletiva. Quem sabe, para vermos que ele não tinha morrido como ingenuamente acreditamos. Mas para vermos também que ele não se sustenta mais. Isso fortalece a gente como coletivo para os enfrentamentos necessários. A reação a essa tentativa de inserir o novo na caixinha do velho ficará cada vez mais forte. Esse modelo de nação e de realidade pertence a outro tempo. As singularidades emergiram e irão emergir cada vez mais, contra a vontade dos que têm medo da diversidade e da mudança. Isso é uma necessidade psíquica coletiva. Não há como controlar. Quanto mais eu estudo como se comporta o inconsciente coletivo, mais percebo isso. Quem tentar forçar o contrário, vai sofrer e provocar dores que poderiam ser evitadas. Tanto como Nação quanto como pessoa. Máscaras estão caindo para ganharmos consciência, e quanto mais consciência ganhamos, mais as máscaras caem. Treinemos nossa força interior para aceitar o imponderável e reagir à vida com menos violência e mais compreensão, inteireza e coragem. Só isso já muda o mundo. É esta, aliás, a principal tarefa de todos nós: o autoconhecimento! Sem ele, corremos o risco de ascensão de todo tipo de totalitarismo, inclusive os nossos próprios. No fundo, temos medo não do outro, mas de nós mesmos. Não sejamos ingênuos.

Vamos agora ao voto útil. Antes, um pequeno preâmbulo curioso. Já achei uma bobagem esse tal de voto útil. Até mesmo o voto, durante um bom tempo da minha vida. Inconsciente de mim mesma e da complexidade da realidade, defendia o Anarquismo. Não mudei totalmente, ainda acredito que esse é o sistema social mais interessante. Minha utopia foi cantada por John Lennon: Imagine there’s no countries. Mas nesse caso também, vale o meu estudo sobre os movimentos do inconsciente coletivo. Através dele, mais e mais eu venho saindo do mundo da fantasia delirante que acredita na perfeição e no consenso universal. Estudar psicologia analítica (tanto teoricamente quanto em mim mesma, no meu processo de autoconhecimento) tem sido um constante “cair na real”. O nível de inconsciência é tão grande na sociedade que tão cedo não vejo como seria possível nos sustentarmos socialmente pela autogestão, que é o princípio mais fundamental do Anarquismo. Nesse momento, ainda precisamos do Estado. Que seja então o Estado Democrático de Direito.

Mas a verdade é que há muito mais mistérios na vida do que supõe as nossas crenças, mesmo quando a gente estuda bastante. “Só sei que nada sei” é o princípio que vem me guiando, pois quanto mais a gente estuda, mais descobre que não sabia de nada. Estudamos, ouvimos, reagimos, agimos, mas não sabemos de fato quais serão as consequências das nossas ações. Portanto, ao falar em voto útil, falo sobre um ponto de vista, que é sempre a vista de um ponto, como aprendi há alguns anos com Leonardo Boff. Mas tento fazê-lo com responsabilidade e com um mínimo de embasamento. Não quero simplesmente emitir uma opinião, algo que só serve para encher o mundo de mais palavras perigosas por um lado e vazias por outro.

Como muitas pessoas, eu não gostaria de votar em Lula desta vez, mas vou votar nele. Digo que não gostaria não porque eu seja antipetista. Tenho mais o que fazer do que gastar o meu tempo atacando um partido e transformando pessoas e instituições em bodes expiatórios. O buraco do Brasil é muito embaixo. No meu caso, isso acontece porque eu gostaria de votar em uma mulher negra com a gana e a coragem de uma Marielle Franco e a capacidade de articulação e governabilidade do Lula. Mas essa mulher ainda não existe como candidata à presidência. Logo, meu voto é em Lula nesta eleição e por uma razão: é o único com capacidade de derrotar Bolsonaro e toda a velha e perigosa política que esse representa e põe em prática. Você pode argumentar: mas Lula é a velha política também! Sim, sob vários aspectos. Não vou negar o óbvio. Porém, ele carrega um discurso que olha para o futuro e pensa as suas parcerias da mesma forma. Além disso, eu vivi a era Lula quando estava na faculdade e começando a trabalhar. Foi um período incrível. Sinto que vivi em um país mais diverso, mais alegre e colorido e que crescia economicamente. Foi também um país que me desafiou, ao me fazer olhar para as minhas sombras. Pode não parecer, mas isso é maravilhoso! Foi naquela época que, por exemplo, as discussões sobre o machismo e o racismo estruturais começaram a ganhar força, e eu tive que começar a encarar duras realidades internas e externas, como o meu privilégio branco e tudo o que vivi sendo mulher em uma sociedade machista. Esse tipo de sociedade que encara de frente os seus males e a sua história violenta é a sociedade que irá reduzir a violência, promovendo mais respeito e entendimento. Não se lida com as sombras jogando-as para debaixo do tapete. Isso é idealização da vida. Muito menos, fazendo piadas tóxicas com a vida alheia, como o ainda atual presidente faz, e estruturando políticas de medo, morte e controle. O estudo da psique humana e o autoestudo nos revela com muita clareza que o que negamos nos possui como um demônio, o que se manifesta de muitas formas: desde crises de raiva, inveja e ciúme aos ódios coletivos.

Voltando ao país solar que já tivemos, respeitado internacionalmente, e não motivo de chacota, penso que não sabemos se teremos esse país de volta e, mais do que isso, andando para a frente com suas pautas progressistas realmente em atuação, melhor ainda do que já foi. Mas precisamos acreditar que sim. A esperança, que eu já ataquei tanto também em minha antiga rebeldia sem causa, é o que mantém o ser humano vivo, atuante e com energia para levantar da cama todos os dias. O voto útil me parece hoje o voto de esperança na humanidade. Apenas isso. Mas isso já é muito. Para quem não é da turma bolsonarista, entendo que não votar em Lula hoje é abrir espaço para Bolsonaro crescer nas eleições. As eleições estão polarizadas sim, precisamos aceitar esse fato. Não é desta vez que as coisas vão ser diferentes, pois temos muito capim ainda para comer e digerir até que grandes e boas novidades na política se apresentem. Quem sabe não será na próxima eleição!? Agora, ou ganha Lula ou ganha Bolsonaro. Mas, claro, não sejamos tolos acreditando que só o voto resolve tudo. É depois das eleições que começa, de fato, a principal atuação política. Essa é a prova dos nove. Ninguém, especialmente os políticos, deve ser encarado como herói eterno e salvador da pátria. Isso é lavar as mãos. Eles são nossos funcionários e precisamos cobrar deles as promessas de trabalho. São todos humanos, falíveis, burros e inteligentes, bons e maus, coerentes e incoerentes. Como todos nós! Tolo é aquele que acredita em heróis sem ser um herói da própria vida, depositando neles toda a sua salvação. Já quem se vende como herói salvador, esse é um perverso. Sejamos inteligentes: nem tolos nem perversos. Como nos alertou Nilton Bonder em seu livro A Alma Imoral, é por medo de sermos tolos e perversos que deixamos de fazer o que precisa ser feito, e acabamos sendo um ou outro. Mas também não podemos simplesmente agir de forma inconsequente, nos deixando levar pelas emoções como ovelhas que seguem o outro incondicionalmente só porque ele desperta uma paixão. O amor deve ser incondicional, mas não a estupidez. O irracional em nós precisa estar em equilíbrio com a razão. Quando um deles se sobrepõe, não é bom. No Brasil, temos deixado as emoções falarem alto demais. Precisamos equilibrá-las com o discernimento e traçar, assim, o caminho do meio que irá fazer nascer a lótus no meio da lama.

Será que um dia conseguiremos reduzir a violência?

Texto publicado no Medium em 15/03/2021

Essa tem sido a pergunta que não quer calar na minha mente já há algum tempo. Ela me levou ao meu atual objeto de pesquisa, por ser ele as origens da violência: o ódio. O título é provocador: eu insiro todos nós no dilema. Portanto, se você chegou a esse texto se perguntando “por que o mundo está tão violento”, “por que o grupo tal é tão agressivo”, eu te convido a ir além. Não é sobre o mundo que falamos, como se o mundo fosse uma abstração fora do nosso olhar e ação sobre ele. É sobre você, sobre mim, sobre todos nós. Trata-se de responsabilidade compartilhada.


A violência é uma resposta ao ódio. Esse, por sua vez, é um sentimento extremo que envolve desprezo, nojo, aversão por pessoas, grupos e até objetos, desejando o afastamento desse outro e, às vezes, a sua aniquilação. Nem sempre a violência é física, mas o tempo todo ela está presente. A começar pela linguagem. Quando estamos tomados pela raiva, uma emoção primária que pode provocar ódio, o que mais tendemos a fazer é xingar ou acusar o outro, até mesmo um objeto. Um exemplo: se o seu celular trava justo quando você ia mandar uma mensagem importante, você pode ter um ataque de ira, a depender do seu humor naquele dia, e jogar o celular longe chamando-o de imprestável, xingando o criador do Android, odiando todos que têm um Iphone, podendo estender o seu ódio até a alma de Steve Jobs por ter criado um sistema pouco competitivo e altamente elitizado. Tenha como certo que se houver alguém perto de você, pode sobrar para essa pessoa também. Isso pode acontecer com qualquer um de nós, a qualquer momento. Segundo Marshall Rosenberg, psicólogo e criador da Comunicação Não-Violenta, que é uma proposta de transformação interna e externa, a violência é resultado de uma necessidade não atendida. O ódio se produz a partir dessa necessidade que não foi suprida e se expressa na resposta violenta.


Desde Freud, sabemos que nosso aparelho psíquico, ou seja, nossa estrutura mental e emocional, busca se satisfazer através do outro. Há ainda um prazer que se volta ao próprio sujeito, o narcisismo. O ódio seria, assim, uma profunda quebra inconsciente da expectativa colocada no outro ou em si mesmo. Expectativa que também é inconsciente. Passado mais de um século do advento da psicanálise, hoje sabemos, apoiados também na psicologia, que o ódio começa com o ódio a si mesmo. E por que isso acontece? Sigamos com Freud. Para ele, as bases do nosso “mal-estar”, das nossas dificuldades de convivência, estão nas repressões a que a nossa psique, e o nosso corpo, precisaram se sujeitar para que a civilização fosse possível. A primeira delas, obviamente, a repressão sexual, que começa com a proibição do incesto e ganha contornos castradores na repressão da liberdade sexual na sociedade. A segunda, a repressão da agressividade, um instinto tão formador do ser humano quanto o erótico. Com tanta repressão que carregamos em nossa memória genética e da psique coletiva, associada às repressões pessoais que todos vivemos, fica difícil imaginar um mundo sem violência e sem autoviolência. Por um mecanismo do nosso aparelho psíquico, tendemos a nos punir inconsciente pelas repressões que também sequer conhecemos. Reprimir, em si, já é uma violência, e sempre gerou mais violência. Escreveu Carl G. Jung, criador da Psicologia Analítica, algo como “o que você resiste, persiste”. Mas não apenas persiste, como cresce e se torna um monstro. Ao mesmo tempo, se não houvesse a repressão inicial, não teria havido história humana. Será que chegamos a um impasse?


Essa construção da cultura se deu com os assentamentos, o que se revelou mais vantajoso para a sobrevivência da espécie ao permitir um domínio maior do ser humano sobre a natureza. Passamos de caçadores-coletores a sedentários. Com o tempo, assentamentos que eram pequenas vilas foram crescendo, se tornaram cidades, alguns viraram grandes reinos. Assim, cresceu e se tornou ainda mais complexo um comportamento determinante para a nossa história e para entendermos também o presente: o tribalismo. O comportamento tribal se expressa na lealdade ao grupo a que se pertence ou se sente pertencido. Surgiu nas primeiras aglomerações humanas e foi fundamental para a sobrevivência da espécie. Mas é justamente o tribalismo um dos principais motores do ódio. Atualmente, podemos observar esse comportamento nas torcidas de futebol, na política, na religião e até quando torcemos por participantes de reality shows. Tudo isso, amplificado pelas redes sociais. Esse é um comportamento que está marcado na nossa memória genética. Por mais que queiramos fugir dele, arrisco dizer que é quase impossível. Tenderemos sempre a nos associar a grupos por ideais ou qualquer outra coisa, e esses grupos, sem nenhuma romantização, excluem outros. É natural. A questão que fica é: diante disso, é possível reduzir a violência? Mas estamos tão inconscientes de nós mesmos que a tarefa parece árdua…


Um exemplo dessa inconsciência é, em pleno século XXI, haver quem acredite que a Terra é plana e ainda defenda isso com o peito estufado. Para essa pessoa, argumentos científicos não dizem nada. Não adianta provar para ela que a própria lei da gravidade faz cair por terra a sua crença. O que a move é o tribalismo, o sentimento de pertencimento a um grupo com o qual ela se identifica por algumas necessidades não satisfeitas. Arrisco dizer que, nesse caso, são necessidades de aprovação, pertencimento, acolhimento. O mesmo se dá com um torcedor fanático de algum time. Tente provar a ele que esse fanatismo pode levá-lo a enfartar. Não é possível. Enquanto ele mesmo não tomar consciência da violência que está cometendo consigo, isso será gasto inútil de energia. No caso da crente da Terra plana, ela pode não saber, mas sua crença é motivada por alguma repressão na infância, fruto da forma como as grandes repressões da cultura se desenvolveram dentro da família dela, na escola ou em outros lugares importantes que ela frequentou e que moldaram suas crenças, como igrejas e afins. Dependendo do nível de inconsciência dos sentimentos e dores das pessoas que a criaram, essa crente pode ser alguém com uma casca muito grossa que a torna incapaz de acessar os seus sentimentos de dor e rejeição, ao ponto de precisar provar para todo mundo que ela é “do contra”, uma sensação que alivia o seu sofrimento oculto e a faz se sentir vencedora, superior, assim como os seus colegas que compartilham da mesma crença. E todos “se ajudam” nessa necessidade de pertencimento. Tal sentimento de superioridade em relação ao outro, de negação cega das verdades científicas, é, no fundo, uma carência gigantesca que a pessoa não consegue enxergar. É sendo essa pessoa “do contra” que ela consegue atenção e satisfação ilusória da sua necessidade. Mas tais satisfações ilusórias, o próprio nome diz, não satisfazem verdadeiramente, e uma bola de neve se forma dessas muitas ilusões, levando ao ódio, que leva à violência. A começar pela autoviolência inconsciente, já que ela está tomada por uma crença que a controla, e não o contrário, como uma forma de se punir pelas repressões aceitas, como já dito no parágrafo anterior. Essa violência atua sempre pela linguagem (julgamentos e autojulgamentos) e por gestos e atitudes (como ignorar alguém ou ignorar o que se sente). Muitas vezes, o sofrimento é tão profundo que a violência escoa pela via física. É por isso que precisamos ter muito cuidado em quem votamos e para quem damos muito ibope, porque o nível de carência e insatisfação do ser humano, assim como de não conhecimento de si, é tão grande que torna o comportamento de manada o mais provável de acontecer. É assim que se explicam desde as aglomerações na pandemia aos extermínios em massa e o terrorismo. Portanto, eu acredito que se tem algo que pode mudar tudo, essa coisa se chama autoconhecimento. Mas para que se promova autoconhecimento, é preciso uma mudança também estrutural. E isso nos traz o famoso dilema do ovo e da galinha. Quem vem primeiro, afinal?


Vamos levar o olhar para as condições do meio. No primeiro capítulo da série Por que odiamos, de Steven Spielberg, realizada pela Discovery, conhecemos um antropólogo evolucionista que estudou os chimpanzés e os bonobo, dois grupos de primatas praticamente idênticos, sendo eles o grupo geneticamente mais próximo de nós. Nossa genética é 99,9% igual a desses dois primatas e, por isso, eles são bastante estudados. Separados somente pelo rio Congo, a sociedade dos chimpanzés se desenvolveu de forma bastante diferente da sociedade dos bonobo. O primeiro grupo, uma sociedade patriarcal, é mais violento, o segundo, uma sociedade matriarcal, é mais pacífico. A conclusão do antropólogo? O meio foi determinante. Os chimpanzés se desenvolveram num meio de escassez de recursos, enquanto os bonobo, num meio de abundância, jamais precisando competir. Tudo isso, apesar de muito interessante e de fornecer pistas preciosas sobre como podemos nos organizar de forma menos violenta, ainda deixa um vazio em nossa busca por respostas, já que seres humanos vivem sob leis culturais que, como já vimos, só existem em função das repressões dos instintos, diferente dos nossos amigos primatas. No caso dos humanos, será que a abundância de recursos faria desaparecer os traumas das repressões sexuais e da agressividade? Ou mesmo uma sociedade matriarcal? Se é possível reduzir a desigualdade social e ampliar o poder das mulheres, como é possível reduzir o estresse da rejeição pessoal, que começa sempre no núcleo familiar e se expressa de alguma forma, ou da competitividade por um parceiro ou parceira?


Quando me deparo com a questão sobre como diminuir a violência, percebo que o buraco é muito embaixo. Ele chega até a educação, por exemplo. Porém, como implementar uma educação libertadora, que promova autonomia e, o que é mais importante, que nos ofereça ferramentas para o autoconhecimento, se as nossas instituições estão enraizadas na própria violência? Quem educa o educador é sempre a grande pergunta. Observe seu ambiente de trabalho ou de estudo como um exemplo desse enraizamento e veja como ele é violento. A violência se expressa em relações desiguais, e por vezes tóxicas, o tempo inteiro. Em sistemas de opressão e de obrigação de lealdade que não são apenas materiais, mas psíquicos. Muitas vezes estão ocultos em atitudes até consideradas “boas”. E como aprendi com o rabino Nilton Bonder, o bom nem sempre é o correto e vice-versa.


Pensemos: como uma pessoa que acredita na Terra plana e briga com todo mundo por isso, gerando mais violência, pode se tornar mais consciente de si? Começaria com o governo? Mas como, se um presidente e os congressistas são seres humanos crescidos no mesmo sistema violento que nós, eleitores, e se nós, humanos, somos tão múltiplos? Se os governos são reféns dos grandes conglomerados financeiros? Seria, então, o caso de uma revolução? Entendo que a questão é muito maior do que simplesmente mudar o sistema econômico e social. É de filosofia e de psicologia, é de representação e de símbolo. A história já nos mostrou que nenhuma revolução com boa intenção se sustentou no sentido de promover a prosperidade para o maior número de pessoas. Elas geraram violência física e psíquica e não resolveram as desigualdades de forma a satisfazer tanto o material quanto o psíquico, promovendo bem estar e minimizando o ódio. E por quê? Porque o ódio está enraizado em nós e poucos conseguem ver e integrar em sua personalidade essa informação. Essa discussão começou ontem na história humana. É um olhar bem recente. O buraco parece sem fundo. Há quem diga que a possível solução começa na mudança do sistema político, outros, do sistema econômico, outros, do sistema educacional, e outros, dentro de cada um de nós. Para mim, é tudo ao mesmo tempo. Mas ainda me inquieto com a questão: haveria o melhor ponto de partida?


Eu desconfio que precisamos não deixar de olhar para a cara “do mal”, como se fosse possível criarmos uma ecologia para negociarmos com o diabo para que não sejamos tomados por ele como Fausto, o que passa por uma nova representação do mal em nossa sociedade. O mal sempre foi o outro. O diabo sempre foi a tentação de fora, nunca de dentro. Mas isso foi apenas uma interpretação. E interpretação muda tudo. Já disse o personagem Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “o diabo não há, existe é homem humano”. Com uma conclusão dessa, ainda há quem discuta, até academicamente, se houve ou não pacto com o diabo no livro, o que só demonstra como preferimos ver que o mal não vem de nós, mas de um outro. Aqui eu retomo a psicanálise e a provocação do poeta Rimbaud: “o eu é um outro”. Logo, o outro é também eu. Basta nos sentirmos minimamente ameaçados que nosso monstro aparece. Não à toa, a literatura e o cinema sempre exploraram esse duplo “médico e monstro” que todos somos. Talvez a gente precise olhar com mais carinho para as nossas sombras, para o nosso Darth Vader interior, sabendo que podemos ser tomados por elas a qualquer momento se deixarmos de olhar para elas. Assim, me parece necessário mantê-las muito evidentes, trabalhando para não cair em tentação. Afinal, se não vemos o monstro, parece que ele não existe ou existe apenas no outro, longe de nós. Voltando a Riobaldo, ainda em fala sobre o diabo, “a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo”. Tenho pistas sobre onde possa estar uma resposta satisfatória à questão que expressei no título, mas isso é assunto do meu futuro doutorado e precisarei de pelo menos quatro anos para compreender se a minha hipótese faz algum sentido. Por ora, deixo essa reflexão.

Depois da conversão da noite

Espreguicei no silêncio,
A alma repleta de sábado.
Respirava fundo,
Sentia o cheiro de luz.
A madrugada, úmida,
Tinha som de marolas
E de grilos preguiçosos.
Lá, extasiada, fui convertida
À igreja do corpo
E das memórias perdidas.
Acharam-se, elas, numa lua escondida
Num céu de nuvens-bálsamo
Encoberto pela escuridão.
Cresci um tanto de centímetros
Nos sonhos.
Hoje, eles alcançam
O longe das planícies.
Atravessam montanhas,
Correm junto aos rios,
E se metem a querer ser o oceano.
Tão largos, sagrados e santos!
Vez em quando fingem ser coqueiros
E deixam suas folhas serenas balançarem
Como se fossem os cabelos de Deus.

Alonguei no horizonte.
Estava escuro.
Eu via tudo…
A alma repleta!

Planeta Mar

Quando me apresentaram a ti
Eu era uma criança
E tu já eras uma entidade:
Aquela que deveria nomear o planeta,
Planeta Mar.
Desde então,
Eu que nasci nas montanhas,
Te ouço chamar meu nome.
E tuas infinitas cores,
Conchas, ondas, corais,
E a vida marítima toda que se agita
Sobre ti e dentro, em tua musculatura azul,
São poesia que me levam a acreditar.
Basta que eu venha contigo falar
E luzes acendem, no centro de mim,
Aquele estranho sentimento desertoso:
Amar! Palavra que te contém,
Temor e céu,
Oceano meu.

Bahia
janeiro/2020

Poema para renascer

Foi antes da madrugada da vida
Que ficou a minha luminosidade
E as borboletas se tornaram sombras
Por muito longo e tortuoso tempo
Voando ao redor dos segredos

Mas no agora o sol reluz
Como nasce atrás das montanhas
Na plenitude dos dias azuis
E se põe no mar aos olhos
Estupefatos dos adoradores do verão

Só no agora, neste instante presente,
No qual o passado nada mais é
Que o que ficou rabiscado num livro solene
Para ser estudado quando convier,
E o futuro, apenas a promessa da luz,
É que vive a pulsação mais quente

Como guelra de peixe, ovo de lagarto,
Asas de pássaro e cio de fêmea.
O meu!

Neste instante: o presente.
Em que me jogo vendada nos braços da vida
Com coragem, veemência e sorte
Como quem se lança de uma pedra no meio do mar
Imitando as aves em seus voos certos,
A seguir um corpo pleno da paixão pela vida,
Apenas porque segui-lo é encontrar a mim mesma.
Renascida!

Revisitei a madrugada
E com ela conversei longamente.
Ao abrir o baú das estradas dolorosas
Lá eu encontrei a verdade:
Eu era a menina de sempre,
A que sonhava e remava longos mares.
A pus no colo e a embalei
E, assim, as sombras voltaram
A ser borboletas, como nos ciclos do planeta,
E meu coração se encheu de paz novamente,
Uma janela aberta para o sempre.

Revelação

Escrevo poesia quando menos espero
No aguardo da poesia mesma
Ou flertando com aquela
Que brota do concreto
Todo o tempo ela assopra no meu ouvido:
vai, Vanessa, me revela!
E as palavras me saem
Como vazamento
No bueiro da calçada
Invadindo a arquitetura
E toda a forma muito bem estruturada
Suja, bela, inesperada
Palavra amorfa que se amolda
Ao que transborda
Nessa hora eu poderia ser qualquer coisa
Chão, parede, janela
Qualquer densidade com cheiro de musgo
Todas as vigas e varas do teto
Para saber como é ser permanente
E preparada com cimento para o acaso
Porque a poesia me ensinou
Que ser humano se prepara mesmo
É no despreparo