Os Anéis de Poder: quando a arte não cumpre a sua função e o poder sobe à cabeça

Em sua teoria das obras literárias e de arte, o pensador Umberto Eco explorou o conceito da verossimilhança. Uma obra de ficção cumpre seu papel de obra de arte e de cultura, que é espelhar a psique humana e a nossa realidade, quando se baseia na verossimilhança. Não importa se fala do “mundo real”, de uma galáxia distante ou de um mundo de alta fantasia, como é o mundo criado por J. R. R. Tolkien entre os anos 1930 e 1950 com O Senhor dos Anéis, O Hobbit e todos os apêndices que contam a história da fictícia Terra Média. Não havendo a verossimilhança, a obra perde sua importância psíquica e cultural, porque não cria conexão. Uma obra precisa nos convencer de que nada nela é gratuito, ou seja, de que estamos diante de algo que faz sentido naquela realidade e que, ainda, gere correspondência com a nossa, por mais fantasiosa que ela seja. Tolkien foi um mestre no domínio do princípio da verossimilhança. Também por isso, sua obra se tornou um fenômeno. Logo, adaptar obras literárias que cumprem esse princípio de forma magistral, o que dá a elas justamente a sua profundidade, é sempre um desafio. E nem sempre esse desafio se torna bem sucedido. Por esse prisma é que considero a temporada inaugural da série Os Anéis de Poder um fracasso na história da arte.

A série do Amazon Prime, inspirada na clássica obra de Tolkien, foi anunciada em 2020 e, desde então, a Amazon, que investiu 1 bilhão de dólares na produção da primeira temporada, fazendo desta a série mais cara da história, conseguiu criar grandes expectativas. Não era para menos! Depois de tantas séries incríveis de fantasia, ver o universo de Tolkien ganhar mais vida nas telas era realmente algo esperado pelos fãs do gênero e também de sua obra. Mas o “perigo” de gerar muito desejo é ter que encarar depois a frustração do outro caso não se cumpra o que foi prometido. Para além do marketing da própria série, ela viria ainda sob o peso de superar ou, ao menos, igualar a impecável trilogia O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson, sucesso no cinema no início dos 2000. Então, eis que veio o lançamento neste ano de 2022, mostrando que todo marketing do mundo não é capaz de sustentar um produto que não funciona.

A história contada na série se passa na era anterior à saga de Frodo em O Senhor dos Anéis e narra a história da ascensão do Mal na lendária Terra Média, com a criação de Mordor e o estabelecimento de Sauron por lá, e a criação dos anéis de poder, incluindo o famoso Um Anel. Só esse argumento já seria suficiente para fazer os fãs de Tolkien e da literatura de alta fantasia desejarem parar a vida toda sexta-feira para assistir à série. Mas não foi o que aconteceu para muitos de nós. Eu sou fã confessa do gênero. Mas depois do quarto episódio, vinham as sextas-feiras e eu simplesmente esquecia que tinha episódio novo. Além de assistir depois, quando dava, lá pelo meio dos episódios eu me pegava conversando, olhando o celular, levantando para alongar o corpo, e quando via já tinha perdido uns bons minutos sem me dar conta do que tinha acontecido. Como sou neurótica e não gosto de perder até mesmo o que não estou gostando (se estou assistindo algo, tenho que realmente assistir, até para poder criticar) eu voltava o que havia perdido e descobria porque me distraía. Era uma soma de tudo: roteiro, direção, atuação, cenários. A floresta da terra dos elfos parecia de plástico. Não tinha vida de verdade. Lembrou-me alguns cenários toscos de filmes dos anos 1980, quando os orçamentos eram bem menores e as condições de produção muito mais difíceis. O olho humano e o nosso psiquismo sabem reconhecer algo vivo e diferenciá-lo de uma cópia. Vi depois que algumas paisagens foram criadas em estúdio. Com tanta locação incrível pelo mundo e um orçamento bilionário, criar uma floresta em estúdio é aquele tipo de coisa que eu, como produtora, não consigo entender, a não ser como amadorismo ou preguiça. Alguns figurinos também passavam essa sensação, como armaduras que pareciam ter acabado de sair da loja, e não de voltar de uma guerra. Já as atuações não passaram de medianas e nenhum personagem conseguiu se destacar. Mesmo com grandes atores em cena. Até agora estou tentando entender o que fizeram com a Galadriel, que em tese seria a protagonista da série, mas que não passa por nenhuma jornada de transformação. Uma das personagens mais lendárias de Tolkien, a elfa milenar foi transformada numa menina mimada e ressentida sem nenhum tempero. Como alguém que tem mais de 10 mil anos e já passou por tanta coisa pode ter esse tipo de personalidade? Incompreensível. Li que a atriz Morfydd Clark sequer se deu o trabalho de ler os livros. Embora eu, pessoalmente, ache isso um absurdo para qualquer pessoa que entra numa produção adaptada, e um desrespeito à obra, isso até pode passar quando se tem uma boa direção de atores e, principalmente, um bom roteiro. E é justamente nesses dois quesitos fundamentais e basilares que Os Anéis de Poder peca e desperdiça o seu orçamento. Como encontrar elementos para desenvolver um personagem com um roteiro meia boca em mãos? Como atuar se não há uma direção real de atores? Não estamos por trás das câmeras para saber disso, claro. Mas não é preciso, pois o que é visível em uma obra audiovisual revela o invisível por trás dela. Mas mesmo o visível não convencia, como no caso dos cenários, dos figurinos e até dos figurantes. Além disso, havia cenas tão pobres em desenvolvimento e ação que é difícil acreditar que estamos vendo uma produção de porte, comprometendo totalmente o princípio da verossimilhança. Em algumas, faltavam personagens, em outras sobravam. Ou pior: havia cenas em que simplesmente se ignorava as emoções dos personagens, como se pessoas (ou orcs) fossem meros bonecos ocupando espaço no meio de uma explosão pirotécnica ou de um cenário grandioso. No geral, parece haver tanta preocupação com a paisagem (além da floresta de plástico) e com os efeitos especiais que a gente até esquece que aquele lugar é habitado. Impossível criar conexão dessa forma. Como fazer, então, a série cumprir sua função de obra cultural e artística com um roteiro e uma produção tão aquém da profundidade da obra de Tolkien? Sequer o tema central de sua obra, e que é o tema central dessa era da Terra Média, foi bem explorado: a ascensão do Mal.

A ascensão de um grande Mal deveria causar espanto, medo, raiva, revolta e, por fim, a aceitação de que é preciso encarar o seu olho para não sucumbir às ilusões. Afinal, a realidade não é um mar de rosas. É luz e sombra. O mal tem a sua função psicológica, como a arte tem a dela de mexer profundamente com as nossas emoções e nos fazer (re)considerar as nossas próprias ações no mundo. Mas a série, ao não cumprir suas funções básicas, nos faz indiferentes à ascensão desse Mal. Parece que tanto faz como tanto fez que tantas pessoas tenham morrido e um mal terrível tenha dominado a Terra Média. O tema central da obra de Tolkien é simplesmente um dos temas mais fundamentais da história humana: como enfrentar o mal que nos habita e deixar reluzir nossa luz sem que ela nos ofusque e se torne alimento do próprio Mal. Tolkien era um profundo conhecedor de mitologia, filologia, linguística, história e, claro, da alma humana. Criou uma obra que conversa com as raízes mais ancestrais do inconsciente coletivo e que, por isso, arrebata corações em todo o mundo há quase 70 anos. Daí vem o homo superioris do século XXI e destrói a sua profundidade, transformando-a em uma novela das seis, com cenários bonitos, mas limpinhos demais, falas forçadas que parecem declamações de poemas baratos, cenas sem nenhuma conexão entre elas, coisas mal explicadas e outras explicadas demais, e personagens zanzando de um lado para o outro sem saber o que fazer, munidos de um roteiro péssimo. Mesmo os diálogos mais toscos de George Lucas na saga Star Wars não superam essa falta de cuidado da bilionária Os Anéis de Poder. Mas Lucas foi mestre em captar o inconsciente e criar personagens com os quais a gente se conecta na alma. A comparação pode não ser a melhor. Porém, se eu for comparar com outras séries de fantasia mais atuais ou com os filmes do Peter Jackson, a situação de Os Anéis de Poder fica bem pior. Melhor deixar quieto e partir para o que a série tem de bom. Para mim, no entanto, tudo isso foi ótimo. Como escritora e produtora, aprendi como não criar personagens e desenvolver uma história, e como não fazer uma série, se um dia eu quiser me aventurar a ser showrunner de uma. Aliás, descobri assistindo a um vídeo no YouTube que os showrunners de Os Anéis de Poder não têm nenhuma experiência prévia com produções desse porte, o que parece aquele tipo de história que a gente vê muito no mundo da arte com financiamento privado: a do cara que tem o dinheiro, quer fazer algo grande e contrata o sobrinho que “quer ser artista” para dar uma chance para ele, ao invés de contratar profissionais gabaritados. Que coloque o sobrinho! Todo mundo merece uma oportunidade para começar. Mas como estagiário ou assistente, não como chefe. Qual a relação dos showrunners com o Jeff Bezos eu não faço ideia, mas que parece isso… Ah, parece!

Mas vamos falar de coisa boa, vamos falar da nova TekPix! O principal acerto da série é a representatividade, o que não compromete em nada o princípio da verossimilhança como alguns puristas argumentam. Já sabemos que os problemas da série são outros. É bonito ver, cada vez mais, pessoas negras, asiáticas, latinas, entre outros grupos que foram minorizados, ocupando lugares de destaque nas grandes produções hollywoodianas. Representatividade faz toda a diferença! Não tem nada que gere mais conexão em uma obra audiovisual do que uma pessoa se ver representada na tela. Outro acerto da série são as paisagens, as mesmas belas paisagens da Nova Zelândia usadas por Peter Jackson (ignorado na série, apesar de referenciado em vários momentos) em sua trilogia. Mas quem dera paisagens fizessem uma obra! A cena que mostra o reino de Númenor a primeira vez também é bem interessante e dá a dimensão da beleza e da grandiosidade dos sítios criados por Tolkien. Os orcs são legais, quando não precisam atuar sob uma má direção. No mais, alguns personagens quase chegam lá no quesito conexão. Os anões são maravilhosos. Amei! Elrond também. Comecei a série não gostando muito dele, ligada ainda ao Elrond do Hugo Weaving nos filmes, e terminei achando que ele foi um dos personagens mais interessantes, muito embora tenham deixado ele se perder no caminho. Os demais, só mesmo a esperança nas cenas dos próximos capítulos. Que consigam desenvolver bem o Isildur, que tem um papel fundamental na história, mas agora é só um garoto de expressão zero; o elfo Arondir, a humana Bronwy e o seu filho; a pé-peludo Nori; o Estranho, que todo mundo já imagina ser o mago Gandalf, embora não faça nenhum sentido Gandalf estar na Terra Média naquela época, segundos os livros; e, claro, o temível Sauron. Quanto de expectativa paira sobre ele, que é a própria encarnação do Mal! Haja trabalho para darem vida a esse que é o grande antagonista da história. Boa sorte para o ator Charlie Vickers! Quanto a Galadriel, para que ela convença algum ser humano lá dentro de sua alma haverá que ser feito um grande trabalho. Da atriz, dos roteiristas, dos diretores, dos showrunners e dos deuses da arte e da fantasia. Galadriel é a liga da história, mas parece que os donos dessa bola chamada Os Anéis de Poder se esqueceram disso. E de todos os seus personagens. Transformaram-se, eles, nos personagens principais. Deslumbraram-se, como se tivessem sido tomados pelo Um Anel de Sauron: quiseram fazer algo tão grandioso, caro e espetacular para chamarem de “my precious” que, ofuscados pelo poder, podem ter sucumbido à maldição que tomou Gollum e comprometido uma grande obra e a própria função de sua arte. Arte e poder não combinam. Mas parece que as cabeças de Os Anéis de Poder não entenderam isso. Ou seja, não entenderam a própria obra de Tolkien, que ainda bem que não está vendo esse apropriação capitalista selvagem de sua obra-prima.