Os Anéis de Poder: quando a arte não cumpre a sua função e o poder sobe à cabeça

Em sua teoria das obras literárias e de arte, o pensador Umberto Eco explorou o conceito da verossimilhança. Uma obra de ficção cumpre seu papel de obra de arte e de cultura, que é espelhar a psique humana e a nossa realidade, quando se baseia na verossimilhança. Não importa se fala do “mundo real”, de uma galáxia distante ou de um mundo de alta fantasia, como é o mundo criado por J. R. R. Tolkien entre os anos 1930 e 1950 com O Senhor dos Anéis, O Hobbit e todos os apêndices que contam a história da fictícia Terra Média. Não havendo a verossimilhança, a obra perde sua importância psíquica e cultural, porque não cria conexão. Uma obra precisa nos convencer de que nada nela é gratuito, ou seja, de que estamos diante de algo que faz sentido naquela realidade e que, ainda, gere correspondência com a nossa, por mais fantasiosa que ela seja. Tolkien foi um mestre no domínio do princípio da verossimilhança. Também por isso, sua obra se tornou um fenômeno. Logo, adaptar obras literárias que cumprem esse princípio de forma magistral, o que dá a elas justamente a sua profundidade, é sempre um desafio. E nem sempre esse desafio se torna bem sucedido. Por esse prisma é que considero a temporada inaugural da série Os Anéis de Poder um fracasso na história da arte.

A série do Amazon Prime, inspirada na clássica obra de Tolkien, foi anunciada em 2020 e, desde então, a Amazon, que investiu 1 bilhão de dólares na produção da primeira temporada, fazendo desta a série mais cara da história, conseguiu criar grandes expectativas. Não era para menos! Depois de tantas séries incríveis de fantasia, ver o universo de Tolkien ganhar mais vida nas telas era realmente algo esperado pelos fãs do gênero e também de sua obra. Mas o “perigo” de gerar muito desejo é ter que encarar depois a frustração do outro caso não se cumpra o que foi prometido. Para além do marketing da própria série, ela viria ainda sob o peso de superar ou, ao menos, igualar a impecável trilogia O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson, sucesso no cinema no início dos 2000. Então, eis que veio o lançamento neste ano de 2022, mostrando que todo marketing do mundo não é capaz de sustentar um produto que não funciona.

A história contada na série se passa na era anterior à saga de Frodo em O Senhor dos Anéis e narra a história da ascensão do Mal na lendária Terra Média, com a criação de Mordor e o estabelecimento de Sauron por lá, e a criação dos anéis de poder, incluindo o famoso Um Anel. Só esse argumento já seria suficiente para fazer os fãs de Tolkien e da literatura de alta fantasia desejarem parar a vida toda sexta-feira para assistir à série. Mas não foi o que aconteceu para muitos de nós. Eu sou fã confessa do gênero. Mas depois do quarto episódio, vinham as sextas-feiras e eu simplesmente esquecia que tinha episódio novo. Além de assistir depois, quando dava, lá pelo meio dos episódios eu me pegava conversando, olhando o celular, levantando para alongar o corpo, e quando via já tinha perdido uns bons minutos sem me dar conta do que tinha acontecido. Como sou neurótica e não gosto de perder até mesmo o que não estou gostando (se estou assistindo algo, tenho que realmente assistir, até para poder criticar) eu voltava o que havia perdido e descobria porque me distraía. Era uma soma de tudo: roteiro, direção, atuação, cenários. A floresta da terra dos elfos parecia de plástico. Não tinha vida de verdade. Lembrou-me alguns cenários toscos de filmes dos anos 1980, quando os orçamentos eram bem menores e as condições de produção muito mais difíceis. O olho humano e o nosso psiquismo sabem reconhecer algo vivo e diferenciá-lo de uma cópia. Vi depois que algumas paisagens foram criadas em estúdio. Com tanta locação incrível pelo mundo e um orçamento bilionário, criar uma floresta em estúdio é aquele tipo de coisa que eu, como produtora, não consigo entender, a não ser como amadorismo ou preguiça. Alguns figurinos também passavam essa sensação, como armaduras que pareciam ter acabado de sair da loja, e não de voltar de uma guerra. Já as atuações não passaram de medianas e nenhum personagem conseguiu se destacar. Mesmo com grandes atores em cena. Até agora estou tentando entender o que fizeram com a Galadriel, que em tese seria a protagonista da série, mas que não passa por nenhuma jornada de transformação. Uma das personagens mais lendárias de Tolkien, a elfa milenar foi transformada numa menina mimada e ressentida sem nenhum tempero. Como alguém que tem mais de 10 mil anos e já passou por tanta coisa pode ter esse tipo de personalidade? Incompreensível. Li que a atriz Morfydd Clark sequer se deu o trabalho de ler os livros. Embora eu, pessoalmente, ache isso um absurdo para qualquer pessoa que entra numa produção adaptada, e um desrespeito à obra, isso até pode passar quando se tem uma boa direção de atores e, principalmente, um bom roteiro. E é justamente nesses dois quesitos fundamentais e basilares que Os Anéis de Poder peca e desperdiça o seu orçamento. Como encontrar elementos para desenvolver um personagem com um roteiro meia boca em mãos? Como atuar se não há uma direção real de atores? Não estamos por trás das câmeras para saber disso, claro. Mas não é preciso, pois o que é visível em uma obra audiovisual revela o invisível por trás dela. Mas mesmo o visível não convencia, como no caso dos cenários, dos figurinos e até dos figurantes. Além disso, havia cenas tão pobres em desenvolvimento e ação que é difícil acreditar que estamos vendo uma produção de porte, comprometendo totalmente o princípio da verossimilhança. Em algumas, faltavam personagens, em outras sobravam. Ou pior: havia cenas em que simplesmente se ignorava as emoções dos personagens, como se pessoas (ou orcs) fossem meros bonecos ocupando espaço no meio de uma explosão pirotécnica ou de um cenário grandioso. No geral, parece haver tanta preocupação com a paisagem (além da floresta de plástico) e com os efeitos especiais que a gente até esquece que aquele lugar é habitado. Impossível criar conexão dessa forma. Como fazer, então, a série cumprir sua função de obra cultural e artística com um roteiro e uma produção tão aquém da profundidade da obra de Tolkien? Sequer o tema central de sua obra, e que é o tema central dessa era da Terra Média, foi bem explorado: a ascensão do Mal.

A ascensão de um grande Mal deveria causar espanto, medo, raiva, revolta e, por fim, a aceitação de que é preciso encarar o seu olho para não sucumbir às ilusões. Afinal, a realidade não é um mar de rosas. É luz e sombra. O mal tem a sua função psicológica, como a arte tem a dela de mexer profundamente com as nossas emoções e nos fazer (re)considerar as nossas próprias ações no mundo. Mas a série, ao não cumprir suas funções básicas, nos faz indiferentes à ascensão desse Mal. Parece que tanto faz como tanto fez que tantas pessoas tenham morrido e um mal terrível tenha dominado a Terra Média. O tema central da obra de Tolkien é simplesmente um dos temas mais fundamentais da história humana: como enfrentar o mal que nos habita e deixar reluzir nossa luz sem que ela nos ofusque e se torne alimento do próprio Mal. Tolkien era um profundo conhecedor de mitologia, filologia, linguística, história e, claro, da alma humana. Criou uma obra que conversa com as raízes mais ancestrais do inconsciente coletivo e que, por isso, arrebata corações em todo o mundo há quase 70 anos. Daí vem o homo superioris do século XXI e destrói a sua profundidade, transformando-a em uma novela das seis, com cenários bonitos, mas limpinhos demais, falas forçadas que parecem declamações de poemas baratos, cenas sem nenhuma conexão entre elas, coisas mal explicadas e outras explicadas demais, e personagens zanzando de um lado para o outro sem saber o que fazer, munidos de um roteiro péssimo. Mesmo os diálogos mais toscos de George Lucas na saga Star Wars não superam essa falta de cuidado da bilionária Os Anéis de Poder. Mas Lucas foi mestre em captar o inconsciente e criar personagens com os quais a gente se conecta na alma. A comparação pode não ser a melhor. Porém, se eu for comparar com outras séries de fantasia mais atuais ou com os filmes do Peter Jackson, a situação de Os Anéis de Poder fica bem pior. Melhor deixar quieto e partir para o que a série tem de bom. Para mim, no entanto, tudo isso foi ótimo. Como escritora e produtora, aprendi como não criar personagens e desenvolver uma história, e como não fazer uma série, se um dia eu quiser me aventurar a ser showrunner de uma. Aliás, descobri assistindo a um vídeo no YouTube que os showrunners de Os Anéis de Poder não têm nenhuma experiência prévia com produções desse porte, o que parece aquele tipo de história que a gente vê muito no mundo da arte com financiamento privado: a do cara que tem o dinheiro, quer fazer algo grande e contrata o sobrinho que “quer ser artista” para dar uma chance para ele, ao invés de contratar profissionais gabaritados. Que coloque o sobrinho! Todo mundo merece uma oportunidade para começar. Mas como estagiário ou assistente, não como chefe. Qual a relação dos showrunners com o Jeff Bezos eu não faço ideia, mas que parece isso… Ah, parece!

Mas vamos falar de coisa boa, vamos falar da nova TekPix! O principal acerto da série é a representatividade, o que não compromete em nada o princípio da verossimilhança como alguns puristas argumentam. Já sabemos que os problemas da série são outros. É bonito ver, cada vez mais, pessoas negras, asiáticas, latinas, entre outros grupos que foram minorizados, ocupando lugares de destaque nas grandes produções hollywoodianas. Representatividade faz toda a diferença! Não tem nada que gere mais conexão em uma obra audiovisual do que uma pessoa se ver representada na tela. Outro acerto da série são as paisagens, as mesmas belas paisagens da Nova Zelândia usadas por Peter Jackson (ignorado na série, apesar de referenciado em vários momentos) em sua trilogia. Mas quem dera paisagens fizessem uma obra! A cena que mostra o reino de Númenor a primeira vez também é bem interessante e dá a dimensão da beleza e da grandiosidade dos sítios criados por Tolkien. Os orcs são legais, quando não precisam atuar sob uma má direção. No mais, alguns personagens quase chegam lá no quesito conexão. Os anões são maravilhosos. Amei! Elrond também. Comecei a série não gostando muito dele, ligada ainda ao Elrond do Hugo Weaving nos filmes, e terminei achando que ele foi um dos personagens mais interessantes, muito embora tenham deixado ele se perder no caminho. Os demais, só mesmo a esperança nas cenas dos próximos capítulos. Que consigam desenvolver bem o Isildur, que tem um papel fundamental na história, mas agora é só um garoto de expressão zero; o elfo Arondir, a humana Bronwy e o seu filho; a pé-peludo Nori; o Estranho, que todo mundo já imagina ser o mago Gandalf, embora não faça nenhum sentido Gandalf estar na Terra Média naquela época, segundos os livros; e, claro, o temível Sauron. Quanto de expectativa paira sobre ele, que é a própria encarnação do Mal! Haja trabalho para darem vida a esse que é o grande antagonista da história. Boa sorte para o ator Charlie Vickers! Quanto a Galadriel, para que ela convença algum ser humano lá dentro de sua alma haverá que ser feito um grande trabalho. Da atriz, dos roteiristas, dos diretores, dos showrunners e dos deuses da arte e da fantasia. Galadriel é a liga da história, mas parece que os donos dessa bola chamada Os Anéis de Poder se esqueceram disso. E de todos os seus personagens. Transformaram-se, eles, nos personagens principais. Deslumbraram-se, como se tivessem sido tomados pelo Um Anel de Sauron: quiseram fazer algo tão grandioso, caro e espetacular para chamarem de “my precious” que, ofuscados pelo poder, podem ter sucumbido à maldição que tomou Gollum e comprometido uma grande obra e a própria função de sua arte. Arte e poder não combinam. Mas parece que as cabeças de Os Anéis de Poder não entenderam isso. Ou seja, não entenderam a própria obra de Tolkien, que ainda bem que não está vendo esse apropriação capitalista selvagem de sua obra-prima.

O mal não tem uma resposta fácil! A série Dahmer: um canibal americano traz mais perguntas do que respostas.

Hoje eu vou falar sobre uma série que entrou para a lista das 10 séries mais assistidas da história da Netflix – Dahmer: um canibal americano – que conta a história, ficcionalizada, do serial killer Jeffrey Dahmer. E não contente em produzir esta série, a Netflix ainda lançou hoje, dia 7 de outubro, um documentário sobre o caso.

Para mim essa foi uma série bem difícil de assistir, pois ela fala de uma história real e intragável que nenhuma história de terror de ficção chega perto. Até hoje, o mais perto que eu cheguei de sentir um asco profundo com uma ficção de terror foi lendo o livro “A narrativa de Arthur Gordon Pym”, que é o único romance de Edgar Allan Poe e até tem uma questão semelhante a de Dahmer, num ponto bem específico do livro. Ainda assim, a história não se aproxima de Jeffrey Dahmer e por uma razão muito simples: a de Dahmer é real e nos leva a questionar os limites da nossa humanidade.

De fato, como o nome da série em inglês nos diz, Dahmer foi um monstro. O primeiro episódio é bem incômodo. Depois dele eu achei que eu não ia conseguir assistir, mas eu queria muito chegar ao final porque o tema do Mal, das sombras e da violência é o meu tema atual de pesquisa – e eu gosto de ver também como a indústria cultural lida com o tema, porque isso revela muito da nossa sociedade e do inconsciente coletivo. Como a mente tem lá as suas formas de criar filtros e lidar com as coisas, depois de uma noite de pesadelo eu consegui aos poucos engrenar e os últimos episódios eu já assisti de uma vez só.

Mas a série não tem muitas cenas explícitas de violência. Muita coisa é sugerida. Só que isso torna tudo ainda mais tenso, porque a capacidade da mente de imaginar é infinita e poderosa. E isso pode ser uma armadilha. Então, se você não tem um estômago muito forte, sinceramente, melhor não assistir. Mas fica aqui comigo, porque mesmo falando sobre a série, na verdade, a série é um pretexto para uma reflexão sobre esse mal avassalador e sobre a violência da nossa cultura.

A série é uma produção de Ryan Murphy, muito conhecido e celebrado na indústria cinematográfica, e que tem o horror e as mentes perturbadas como um de seus temas de trabalho preferidos. Os outros temas são a homossexualidade, os excluídos de todo tipo, as histórias de superação. Entre seus sucessos estão Glee, Ratched, Hollywood e Comer, rezar, amar. Murphy é conhecido ainda pela lendária série de horror American Horror Story, e é de lá também que saiu Evan Peters, ator que interpreta Jeffrey Dahmer, e que disse que esse foi o papel mais difícil da sua vida. Dá para entender o porquê assistindo à série… E olha que ele já interpretou outros serial killers na carreira dele. Eu espero sinceramente que Evan nunca largue a sua terapia, porque eu não sei como alguém consegue mergulhar tanto assim na escuridão da alma de uma forma tão visceral sem pirar. O trabalho de Evan Peters na série é fenomenal! Eu confesso que eu precisei assistir algumas entrevistas com ele depois, com a cara dele mesmo, pra tirar da minha mente a imagem dele como o Dahmer, porque eu fiquei muito impressionada e até esqueci o rosto do próprio Dahmer real. Se tem um motivo para assistir à série, é esse, a atuação de Evan Peters. O outro motivo são as questões sociais abordadas, muito embora não seja realmente necessário contar a história de Jeffrey Dahmer para falar desses assuntos. Um outro ponto é a explanação do mal que nós, seres humanos, somos capazes de dar vida e o qual não podemos ignorar. Mas quanto a isso, a gente pode até questionar a existência da série. Embora séries de true crime sejam interessantes, e eu acho que elas devem ser produzidas porque mostram aspectos importantes da nossa sociedade e da nossa psique que a gente não pode fingir que não existe, tudo depende: por exemplo, de como a história é contada, em que momento e contexto. O contexto do caso Jeffrey Dahmer é o da exploração excessiva da sua história e é delicado revisitá-la o tempo todo. Há uma infinidade de livros e documentários sobre ele, e cada um com o seu ponto de vista, revivendo de tempos em tempos essa história sem dar grandes explicações. Há outros contextos em que uma história de crime é revisitada de maneira mais cirúrgica, na tentativa de explicar o nascimento de um serial killer, o que é uma proposta bem interessante.

Vou dar um exemplo do próprio Ryan Murphy que eu acho muito feliz: a série American Crime Story. Ele é um dos produtores da série e esteve bastante envolvido com a segunda temporada, “O assassinato de Gianni Versace”, que conta a história de outro assassino em série, o Andrew Cunanan, que ficou famoso por sua última vítima, o estilista Versace. Na série, Ryan une todos os seus interesses e conta uma história muito coesa, numa produção incrível, sobre como a obsessão e outros desequilíbrios psíquicos são agravados e, em alguns casos, gerados por uma cultura preconceituosa e violenta contra os mais diversos modos de viver. A série costura muito bem essa relação entre a sociedade e o nascimento de um serial killer.

Embora o caso de Jeffrey Dahmer guarde uma semelhança ou outra com o de Andrew Cunanan, por exemplo, no fato de ambos serem homossexuais e matarem apenas homens, ele é diferente. O nível de monstruosidade, que envolvia mutilação, esquartejamento e canibalismo, é o que assusta e nos deixa sem respostas sobre qual a origem desse mal, embora se possa especular muita coisa. Talvez seja por isso, por essa falta de uma resposta conclusiva, que não nos cansemos de revisitar essa história. Eu sinto que a série tenta uma explicação, ainda que a única explicação possível seja complexa, mas fica passeando e tateando, como se fosse encontrar uma resposta que nunca chega. Vai na infância de Jeffrey, nos dramas familiares, no alcoolismo, na pressão que homossexuais sofrem em uma sociedade heteronormativa e na permissividade de uma sociedade branca e racista. Mas nada disso explica a monstruosidade de Dahmer, pois se assim fosse produziríamos serial killers como ele em massa, ainda que serial killers sejam um fenômeno que não podemos ignorar.

No caso de Dahmer, não é possível saber qual foi o gatilho que despertou nele um desejo mórbido e sombrio de matar, e ainda mais, do jeito que ele matava. No entanto, se não é o drama familiar e a sociedade que criam monstros como Dahmer, não dá para desconsiderarmos que os desequilíbrios familiares e coletivos estimulam que uma monstruosidade latente possa se expressar externamente. Uma das cenas mais interessantes para mim, nesse sentido, é a que ele tenta conversar com o pai, Lionel Dahmer, alguém em quem ele confiava e a única pessoa com quem ele teve uma relação próxima de amor, ainda que de formas um pouco tortas: ele se dobrava sempre aos comandos do pai, mesmo que não sustentasse suas decisões depois. Quem sabe fazia isso numa tentativa de nunca perder esse que era o único amor que ele tinha… Ele sempre se disse muito solitário, tinha uma ferida de abandono, que muitas pessoas têm, mas isso não faz de ninguém um monstro. Na conversa com o pai, numa tentativa de pedir ajuda, Jeffrey tenta falar sobre suas fantasias, porque ele tinha medo do que poderia vir a fazer e do que já havia feito, segundo ele, sem querer. A primeira morte não parece ter sido premeditada. O pai, assustado com o início da conversa, não sabe o que fazer e muda de assunto, espelhando a nossa incapacidade de lidar com os tabus e os assuntos mais sombrios da natureza humana. Simplesmente porque, ao invés de falarmos sobre eles, nós os tememos e fingimos que eles não existem. Fingimos ainda que sabemos quem é o outro. Queremos que nossos filhos, pais, irmãos e irmãs, parceiros e parceiras sejam a nossa projeção sobre eles. Mas a verdade é que não os conhecemos. Nem sequer conhecemos muito de nós mesmos. E essa é a nossa culpa coletiva: o medo da nossa própria natureza atrasa o nosso desenvolvimento como pessoas e como sociedade. Talvez se o pai tivesse tido coragem e estrutura para ouvir o seu filho, a história poderia ter sido bem diferente, embora, ainda assim, pudesse esbarrar em contextos perigosos, como na biologia do crime, que traz dilemas éticos profundos. O que fazer com alguém que diz ter vontade de mutilar pessoas e matar, especialmente se esse alguém for o seu filho? Estamos preparados para dar uma resposta pela perspectiva da saúde mental e coletiva, ou nosso impulso será sempre o de punir e matar? Mas como esse pai poderia ter tido força interna para ouvir o filho e fazer essa pergunta, se somos ensinados não a lidar com a complexidade da vida, mas a fechar os olhos para ela, a nos sentir culpados por ser quem somos e a cumprir os papeis esperados de nós!? Como!?

Dito isso, um outro aspecto que merece a nossa maior atenção na série é como ela expõe o racismo. A trajetória de Jeffrey Dahmer deixa claro que se ele fosse um homem negro, muito provavelmente teria ido parar na prisão antes mesmo até que matasse alguém. Mas o fato de ser branco livrou a cara dele várias vezes, inclusive em momentos em que a polícia esteve muito perto de pegá-lo. Os muitos avisos à polícia de que havia algo de muito errado no apartamento de Jeffrey, pela vizinha Glenda, interpretada maravilhosamente pela atriz Niecy Nashe, são angustiantes e reveladores dessa realidade do racismo. Em um dos episódios, ouvimos ao final a gravação real de um telefonema da Glenda real para a polícia, polícia essa que se mostra racista e homofóbica, logo, conivente com Jeffrey Dahmer. E depois esses policiais ainda ganham um prêmio. Acreditem!

Entre 1978 e 1991, Dahmer violentou, matou e esquartejou 17 homens e garotos. Apenas os 2 primeiros, que ele dizia ter matado acidentalmente, eram brancos. Os demais eram negros, em sua maioria, mas também indígenas e asiáticos, todos homens gays. Além de ter exercido a torto e a direito o seu privilégio branco, Dahmer teria ódio de homens? Não se aceitaria como homossexual? Em uma de suas entrevistas ele disse que tinha vergonha de ser gay. O que revela não necessariamente uma característica pessoal, mas a nossa incapacidade como sociedade de acolher e aceitar as diferenças. Essa hipótese do ódio aos homens, e de si mesmo, é apenas uma das hipóteses possíveis, mas que também não explica ele ter se tornado o que se tornou.

A série traz como objetivo expor essa realidade do racismo, do privilégio branco e da homofobia, e sinto que ela faz um esforço sincero para focar uma parte da história nas vítimas. Acho que consegue até certo ponto. O episódio do julgamento e o episódio 6 são exemplos disso. O episódio 6 conta a história de Tony. Para mim, foi um dos episódios mais bonitos e mais tristes também, porque a gente vê não apenas um vislumbre de luz no Jeffrey Dahmer, quando ele tenta lutar contra o que ele dizia ser a compulsão dele, mas principalmente porque conhecemos a história de um garoto muito luminoso, talentoso e cheio de sonhos, que teve a sua vida interrompida pelo seu encontro com o serial killer.

Há na série também uma outra denúncia, se é que podemos chamar assim, bem interessante e necessária, que é sobre o tratamento violento dado às mulheres em nossa sociedade. A medicalização excessiva da mãe de Dahmer durante a gravidez lembra os primeiros estudos sobre a histeria, que naturalizava a loucura na mulher. A mãe de Dahmer tinha depressão, tentou se matar algumas vezes e não teve apoio familiar e social necessário para lidar com isso. A forma ainda como o pai de Jeffrey tratava a sua esposa era agressiva, misógina e acusativa. Foi nesse ambiente que cresceu Jeffrey Dahmer. Por mais que isso não tenha gerado a sua monstruosidade, pois o seu irmão cresceu no mesmo ambiente e não é um serial killer, pode ter disparado dentro dele, ainda criança ou na adolescência, algo já latente nele, um mal para o qual toda explicação parece ser insuficiente.

Pois há um mal que não possui explicação psicológica, sociológica ou qualquer outra que dê conta. É tudo e mais um pouco que desconhecemos. Talvez tenhamos que simplesmente lidar com essa angústia, essa ausência de uma resposta satisfatória. Essa é a própria hipótese de Jeffrey Dahmer em uma conversa muito interessante que ele tem com um padre, dentro da prisão, que a gente vê no penúltimo episódio. Ele pergunta para o padre se ele acredita que há algo como simplesmente ser mal, sem explicação. O padre diz que sim e eles têm uma conversa bem curiosa sobre os vilões do cinema. Mas há outra pergunta que Dahmer faz ao padre que parece ser uma pergunta que devemos nos fazer: porque há tantos serial killers atualmente? Ele pergunta isso ao ver na TV a história de John Gacy, outro serial killer famoso dos EUA, conhecido como O Palhaço Assassino. Dahmer questiona ao padre: porque há tantos outros como eu hoje? Não temos a resposta facilmente, mas a pergunta precisa ser feita, e a resposta talvez esteja nessa combinação explosiva de medo de nós mesmos com uma cultura opressora, segregadora e segregativa, somados à nossa dificuldade em lidar com essas manifestações sombrias da nossa psique. Quem espera uma resposta fácil, parece ser um pouco ingênuo.

É curioso perceber uma clareza em Dahmer quando ele faz essa pergunta. Ele também queria se entender. Parece que sempre esteve muito consciente de que o que fazia era errado, o que ele mostra nas suas entrevistas. Quando foi preso, pediu para ser morto. Só não foi porque o estado de Milwaukee não tem pena de morte. Ele não era um psicopata, diferente de algumas análises que estão sendo feitas por aí. Psicopatas seduzem aos poucos, não estabelecem vínculos mas fazem o outro acreditar que esse vínculo existe, e não se arrependem ou sentem culpa alguma. Jeffrey Dahmer parecia sentir culpa, tinha dificuldades de se relacionar e se apegava ao extremo aos outros. Queria literalmente devorá-los para que fizessem parte dele. Drogava as suas vítimas antes de mutilá-las e matá-las, segundo ele, para que não sentissem dor. Mas afirmava também não conseguir parar de fazer o que fazia, como uma compulsão. Pesquisei pelo diagnóstico psiquiátrico dele e encontrei que ele foi diagnosticado com borderline em um alto grau, que é um transtorno que deixa a pessoa extremamente instável, além de transtorno psicótico e esquizoide. Mas mesmo que esse diagnóstico traga alguma explicação, ainda fica a questão: como lidar com isso e como esses fatores podem levar a uma expressão radical daquilo que chamamos de Mal?

A questão do mal é uma das mais antigas da humanidade. Nos intriga como nós, seres humanos, podemos carregar um nós um potencial de destruição avassalador, que produz verdadeiros monstros. O mal aniquila. Destrói não apenas a vida, mas a própria morte como expressão natural da vida, ao desejar controlar e subjugar tanto a vida quanto a morte. Não há uma resposta fácil para o Mal. E é a curiosidade por essa parte da natureza humana que faz com que séries como essa tenham sucesso. Somos tentados não apenas a querer saber, mas a ver imagens, como uma forma de dar vazão a algo muito primitivo da psique humana. Somos todos, afinal, crias de uma história civilizatória sangrenta e feitos de uma carne que sangra e se deteriora. Por mais que não lidemos com isso diariamente, a nossa memória genética sim. Acredito ainda que o nosso interesse por essas histórias passa também pela própria necessidade da nossa psique de se conhecer – isso é natural em nós. Ao olhar para o outro, nos perguntamos, ainda que de forma inconsciente, se nós seríamos capazes ou não de fazer o que o outro faz, avaliamos nossos desejos mais íntimos, nos aliviamos por descobrir que temos asco de certos comportamentos.

Mas sempre que se aborda histórias reais como essa na indústria do audiovisual, há que se lidar com a fragilidade do limite entre a luz e a sombra. Uma coisa é dar vazão à essa necessidade humana na ficção. Outra coisa é ficar remexendo nas histórias reais. No caso da série Dahmer, mesmo que Ryan Murphy e sua equipe tentem chamar a atenção para necessários temas sociais e para a dor das vítimas, eles acabam fazendo também o que toda série que conta histórias de serial killers fazem: espetacularizam o assassino. Na época em que estava vivo, Dahmer se tornou uma verdadeira celebridade. Recebia carta dos fãs na prisão e virou até personagem de quadrinhos. É o que vemos nos últimos episódios da série, onde quase vemos também uma redenção de Dahmer. Eu achei essa sequência final bem complicada em termos de edição, porque ela pode despertar dubiedades. Ele é morto espancado por um outro homem dentro da penitenciária, um homem negro. Até aí, tudo bem. Essa é a história real. Mas a cena acontece depois dessa tentativa de redenção, quando Dahmer pede para ser batizado e diz que está se esforçando para mudar. Entendo que a cena tem um caráter de vingança, mas é delicada porque coloca um homem negro matando um homem branco depois que ele estava tentando se redimir. Uma distração do espectador já pode fazê-lo reiterar o racismo e esquecer tudo o que Dahmer causou aos 17 homens que matou e às suas famílias. Enfim, esses episódios finais são complicados.

Atualmente, Jeffrey Dahmer é também um dos assuntos mais procurados nos mecanismos de busca online e é claro que a Netflix sabia que seria assim, e que seria sucesso a primeira versão romanceada da sua história. Transformar o mal em espetáculo é uma especialidade da indústria cultural. E o fato de ficarmos falando sobre isso, eu inclusive e todo mundo que vem falando sobre a série, já nos mostra que estamos todos enredados na sombra. Juntos. Não parece importar que tipo de consequência negativa – psíquica e social -, revisitar muitas vezes essa história pode trazer. O que isso revela senão o fato de que, no fundo, por mais que a gente ame filmes e séries, o que move a indústria cultural é a imoralidade? Uma cilada do capitalismo dos anéis da serpente, como diria o filósofo francês Deleuze, um capitalismo descentralizado, onde o “centro” está por toda parte, que tudo controla porque tudo absorve como válido. Ao mesmo tempo, há que se considerar que talvez essa imoralidade pode nos trazer respostas para os dilemas sociais, diante do peso que a indústria do audiovisual tem hoje em nossa vida e em nosso imaginário. Quando as histórias polêmicas vêm à tona, podemos lidar com os seus temas. Do contrário, sem mexer nelas, a gente fica sem saber o que pode emergir debaixo do tapete.

A série foi duramente criticada pela família de uma das vítimas, que está cansada de ter que se esquivar dos inúmeros programas, filmes, livros e séries sobre o caso. Não basta terem que lidar com o trauma na própria vida e memória, precisam lidar com toda uma indústria explorando a história que causou o seu trauma. É fácil compreender a perspectiva das famílias. Mas eu também compreendo o lado dos pesquisadores e de todas as pessoas que se interessam pela história de Jeffrey Dahmer, porque ela é tão radicalmente monstruosa que produz em nós um questionamento profundo sobre quem somos nós. E eu acredito que a gente precisa conhecer essa história, saber o tamanho do mal de que um ser humano é capaz. Repito: é por fingir que essa escuridão não existe, que ela pode se tornar cada vez maior.

Ao mesmo tempo, explorar em demasia uma mesma história para a qual todo mundo tem um ponto de vista, mas nenhum deles é conclusivo, pode ser apenas mais uma das armadilhas desse capitalismo hiperconectado e imoral que nos dá a ilusão de que estamos no controle e sabemos exatamente o que estamos fazendo. Só que não. Lembremos uma máxima de Freud: não somos senhores em nossa própria casa! Mas como escapar? Como ignorar as ondas coletivas? Como não se deixar seduzir? Como falar dos temas difíceis, abordá-los, sem cair na espetacularização vazia que apenas se alimenta do gosto mórbido pela violência? As perguntas seguem em aberto e Dahmer: um canibal americano, pode ser uma das séries mais intrigantes e interessantes de true crime e vir a alavancar ainda mais a carreira de Evan Peters, merecidamente. A questão é: a que custo? Fica essa pergunta também no ar, pra gente pensar. Respostas fáceis são tão perigosas quanto evitar o assunto.