Por que encerrei um canal no YouTube após uma semana do lançamento: uma conversa sobre excesso e exaustão

Começo esse texto às gargalhadas, imaginando a expressão das pessoas que me conhecem mais intimamente dizendo: “Tinha que ser a Vanessa mesmo! É muito geminiana!” Nessa hora a gente culpa a astrologia para não se sentir muito destrambelhada. Pois eis que após planejar e lançar um canal meu no YouTube, voltado à arte e ao entretenimento com pensamento crítico, desisti dele uma semana depois. Em alguns casos, desistir é, definitivamente, uma opção! Mas por que eu quero desistir? Será que é isso mesmo? Pensei durante toda a semana, tomada pela exaustão e uma pressão terrível de ter que fazer roteiros, gravar e editar vídeos com temas variados, muitos deles passando longe do meu tema de pesquisa atual, sendo que meu tempo já está tão ocupado. Inclusive, ocupado pelo dolce far niente, a doce alegria de fazer nada, algo que demorei muito para conseguir inserir na minha vida e que merece a minha dedicação. Venho descobrindo que fazer nada é tão necessário quanto fazer a coisa certa.

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Não analise, celebre! Uma reflexão sobre a série Wild Wild Country

Após o lançamento do documentário Wild Wild Country, Osho virou um dos assuntos mais comentados entre os viciados em séries da Netflix. E também nas redes sociais. Quanto a ele, as questões que fazem com que agora, de uma hora pra outra, estejam pipocando críticos ferrenhos em grau máximo de ódio, são as mesmas que motivam as brigas políticas no país, com um querendo provar estar mais certo e mais correto que o outro, enquanto a vida passa e o sistema político permanece o mesmo. Se tem uma coisa que aprendi com tudo o que cresceu em torno de Osho foi sobre o poder do coletivo para além de toda e qualquer polaridade. E muito mais. Apesar de não o defender como guru iluminado, sem dúvida, aprendi muito quando conheci sua obra e até mesmo com a sua vida totalmente disparatada.

Osho é um mito contemporâneo. Foi uma das figuras mais controversas do século XX, amado e odiado no mesmo grau. Considerado um falso guru por uns, verdadeiro e iluminado para outros, desde criança manifestava interesse pela verdade do Ser e até sua avó declarou-se discípula do jovem mestre que ele era na época. Formou-se em filosofia, foi professor, crítico dos dogmas religiosos, portador da bandeira da liberdade (e das responsabilidades que ela traz) e criador de um potente e profundo programa de meditação. E apesar de ter sido um capitalista, que soube muito bem usar, para disseminar sua criação, todo o recurso que os seus seguidores americanos e europeus doavam, o acesso à meditação dinâmica criada por Osho é gratuito. Você pode aprender e fazer sozinho em casa, através da Internet, se não quiser pagar para estar em uma vivência. E se tiver dinheiro para ir à Índia visitar o seu resort/comuna, verá que os preços são menores do que uma mensalidade de aula de yoga. Mesmo os preços de se hospedar no resort saem em conta em comparação aos hotéis. Está achando o nome resort estranho para um local de espiritualidade? Pois esse é Osho, alguém que saiu dos padrões e desafia as categorizações. Foi um místico libertário, feminista, independente e autônomo em seu pensamento e ação, para além das tradições, capaz de unir Oriente e Ocidente como poucos. O primeiro mestre espiritual com visibilidade global a não negar o mundo material e a deixar o circo pegar fogo. Digo em escala global porque na Índia há muitos mestres e mestras assim, que não separam espírito e matéria, luz e sombras. Para ele, a liberdade era o ponto principal da jornada de evolução da consciência, junto com a vida prazerosa e alegre, sem negação do corpo e da matéria, tudo implicado, claro, em responsabilidade. Osho sempre foi transparente em seus discursos e só não ouviu quem não quis ou o tomou como muleta, como muitas pessoas que procuram um guru ou um mestre fazem: Aceitar a sua responsabilidade irá transformá-lo e a sua transformação é o começo da transformação do mundo — porque você é o mundo. Seja lá o quão pequeno for, um mundo em miniatura, você carrega todas as sementes. Nada de novo no front. Todos os grandes mestres espirituais e muitos filósofos já disseram isso antes, e ele pertencia a essa mesma linhagem de mestres e filósofos. Seus livros, baseados em seus Satsangs (sat = verdade e sanga = em companhia, uma espécie de palestra espiritual), estão entre os mais vendidos no mundo todo desde a década de 1970. A comuna de Osho, em Poona, na Índia, é o lugar mais visitado do país, atrás apenas do Taj Mahal. No entanto, o momento mais explorado pelo documentário é justamente o momento mais trágico de Osho, na época chamado Bhagwan Shree Rajneesh. Não é ruim para aqueles que estão em um caminho de busca espiritual, pois nos alerta a mantermos a atenção plena em nossas ações. Pois se até alguém considerado um mestre está sujeito a falhas, que dirá os simples mortais. Mas é uma pena que tenha sido excluída do filme toda a vida anterior à ida de Osho e seus seguidores para os EUA. Pela importância da mobilização planetária que a existência de um homem como ele provocou e ainda provoca, goste você ou não, Osho merecia um filme mais à altura de seu impacto.

O que Wild Wild Country faz é explorar o momento mais conturbado de sua trajetória, que termina com uma condenação de Osho nos EUA por problemas com a imigração, e a condenação de sua secretária Sheela e do grupo dela por tentativa de homicídio e mais um monte de bizarrices, com as quais não se comprovou ligação direta de Osho. Tanto que ele não foi acusado de nenhum dos crimes de Sheela, mas por outros “menores”, já que o governo de Oregon e dos EUA queria mesmo era expulsá-lo do país, vendo nele o atrator de todo tipo de gente e todo tipo de liberdades. Tudo isso, no país da liberdade… O que vemos quando assistimos ao filme é um desfile de preconceitos e julgamentos dos chamados cidadãos de bem dos EUA, algo muito parecido com o que estamos vivendo hoje no Brasil. Mas não acho que estão errados, embora não os defenda. Porém, não se trata de uma questão de certo e errado. O que é diferente assusta mesmo. Especialmente se isso afeta a propriedade privada e a família, que é a verdade daquela gente e de muito mais gente no mundo. A instalação de uma gigante comunidade autogestora (de mais ou menos cinco mil pessoas) no meio de uma pequena cidade conservadora dos EUA formada por fazendeiros, seria no mínimo algo provocador. Afeta toda a cultura local. Porém, devemos lembrar que a cultura de Oregon já foi autogestora, quando quem habitava aquelas terras eram os povos nativos, que foram dizimados pelos antepassados dos fazendeiros de hoje. Sua história é marcada por conflitos culturais. Mas se não defendo os fazendeiros de Oregon, também não defendo os seguidores de Osho que eram responsáveis mais diretamente pela política da comunidade. Muito menos Sheela, que ultrapassou os limites de qualquer convivência em sociedade. Não vou fazer muitos spoilers, assistam ao filme. Mas em não defendendo, também prefiro não julgar. O tempo e a corte estadunidense já fizeram isso. A começar pelo fato de que estamos falando dos anos 1980, onde a realidade era outra. Depois, porque o ser humano, quando se sente ameaçado, age de maneiras que fogem à razão. Incluem-se nesse time eu, você, Sheela, Osho, Lula, Trump, Bolsonaro e todo o restante da humanidade. Gostemos ou não, em algum ponto da existência as nossas vidas sempre podem se espelhar. Fique um bom tempo sem se olhar no espelho da alma e veja o que terá se tornado. Figuras assustadoras como Hitler, por exemplo, estão sempre a espreita de nossos fascismos interiores. Por fim, recolho o julgamento porque Sheela, indiana formada na mais tradicional cultura de devoção da Índia, apenas fez o papel dela de proteger o seu guru, como todo e qualquer indiano devoto de um guru faz nos milhares de ashrams (comunidades espirituais) existentes no país. A questão é que os fins não justificam os meios. E é difícil defender os meios dela, como, por exemplo, ter armado a comunidade até os dentes, uma comunidade que antes de se sentir ameaçada, era pacífica. E isso sim, teve o aval de Osho. No entanto, defendo a existência da comunidade e a validade de toda a obra dele. A força dessa obra é algo que só aparece no filme nas falas emocionadas de alguns de seus amigos e seguidores, culminando num capítulo final muito bonito, que inclui perdão e redenção. Inclusive numa bela fala de Sheela ao ser presa, sobre não fugir às responsabilidades de suas escolhas feitas em liberdade, seguindo assim, os ensinamentos do mestre. Mas infelizmente essa não é a tônica mais explorada no restante dos capítulos, o que contribui para a disseminação do ódio a Osho por aqueles que não fazem ideia do que seja a cultura espiritual da Índia e a sua obra, e desconsidera que ainda hoje, exatos vinte e oito anos após a sua morte, ele é uma das figuras mais influentes no mundo, um guia espiritual globalizado que revirou os conceitos de espiritualidade, amor, capitalismo e anarquismo. Ou melhor, talvez esteja justamente em tudo isso a semente do ódio. Como o contrário também é verdade. Existe muito amor. Dá pra imaginar porque ele causa tanto rebuliço.

Mas antes de continuar a falar sobre Osho e explorar o fato de que ele se perdeu em seu caminho (e os motivos disso), como muitos de seus discípulos concordam, quero escrever sobre questionamentos fundamentais que aproximam Osho de muitas pessoas. Inclusive, que me levaram a ele também, motivos que me apaixonaram a escrever este texto, além do fato de que, há dezessete anos, pratico e estudo yoga e a espiritualidade indiana em suas diversas vertentes. Aprendendo com ele, assim como com toda a vida ao meu redor, sigo no caminho tortuoso que é viver a busca por Deus dentro de mim, atenta para não me considerar melhor do que ninguém por conta disso nem invalidar as demais formas de busca ou mesmo quem não se importa com isso, pois também já fui ateia. Hoje, considero Deus a energia primordial que une consciência e criação, luz e escuridão, nem masculina nem feminina, mas os dois, que contém toda a pluralidade do mundo e a potência de sermos o que quisermos, de não nos limitarmos pela sociedade e pela cultura. Somos todos um, e ao mesmo tempo que isso é divino não significa nada, não pode significar nada em termos de ego, essa instância controladora da psique que acha que já sabe tudo. Somos tudo, mas nada é nosso, muito menos sabemos a verdade. Temos apenas intuições e uma mente que cria a realidade. Logo, podemos ser qualquer coisa, ainda que a cultura e a sociedade nos diga que não. E isso não é só elemento para enredo de ficção, como a história do personagem da Marvel, Doutor Estranho. É de uma força real enorme e de grande responsabilidade também. Começa por aí o poder simbólico de Osho, que talvez estivesse à frente de seu tempo, mas não soube lidar com isso. Perdeu-se, como Nietzsche ao fim de sua vida.

O que mais move quem se aproxima das palavras de Osho e, acredito, a maior parte daqueles que viveram em suas comunas nos anos 1970 e 1980, e que vão à Poona hoje, é a liberdade de ser, de amar e o sentido de comunidade, tudo isso para além da propriedade, que é a grande questão do mundo em que vivemos. Embora Osho fosse capitalista, todo o dinheiro gerado pelo comércio de seus livros – a principal fonte de renda da comunidade – era utilizado em prol da própria comunidade e retroalimentava a divulgação de sua obra. Não vou aqui discorrer criticamente sobre sua coleção de Rolls-Royces. Osho era apaixonado por esse carro e ganhava vários de seus admiradores mais ricos. Cada um com as suas manias. O que importa é que a comunidade era e é totalmente sustentável. Todo o dinheiro era movimentado dentro daquele sistema anarquista. E, para quem não sabe, o anarquismo não é necessariamente socialista, pois existe a corrente anarcoliberalista. O anarquismo atravessa as duas correntes tanto quanto existe no meio, com várias nuances. Osho não falava em anarquismo, mas a essência de suas comunidades era anarquista. Ao menos, até Sheela implementar suas políticas de repressão. Mas a proposta ultrapassava a ideia de fronteira, de Estado-nação, e por isso também incomodou tanto a Índia quanto os EUA. Porque a força do coletivo tem um poder impressionante diante do poder centralizado. Wild Wild Country mostra o que essa força, movida de forma autônoma, sem imposição, apenas pelo amor a uma causa, é capaz de produzir. O anarquismo sempre me apaixonou, desde os meus primeiros contatos com propostas anarquistas, quando eu ainda era muito nova, aos quinze anos, a exemplo da Somaterapia de Roberto Freire, que une Reich e o Anarquismo. O livro Coiote, de Freire, é o romance que mais participou da minha formação política e emocional. Ele conta a história de um garoto que na lua cheia vira lobo e encanta quem o conhece, atuando como o Eros de nossa Pisque. Totalmente integrado à natureza, ama tudo e todos sem dedicar exclusivamente o seu amor a ninguém. A personificação do amor em estado maior, como um verbo intransitivo. Coiote era ainda um cara para quem a casa era o mundo todo. Para ele não havia fronteira. Tudo era humano, tudo era possível, tudo era nosso, de maneira livre e sem propriedade. A utopia libertária em forma de gente. Aquilo me marcou profundamente, pois me identifiquei. Algo dentro de mim dizia que o amor era assim, gigante e despersonalizado, e que a vida em sociedade seria muito mais harmônica se não existissem fronteiras ou centralização de poder, se todos tivessem a mesma oportunidade de demonstrar sua força criativa, de trocar, de ir e vir. Imagine there’s no countries, eu cantava e sonhava com um mundo sem Estado. Meu inconsciente já dava pistas de que o Estado centralizador também estava em mim, na minha alma, e por isso eu o negava. Então, fui estudar o anarquismo, que segue comigo até hoje como um guia da minha alma, embora como sistema macropolítico eu entenda que seja um caminho mais difícil. Talvez não tenhamos evolução espiritual suficiente para isso. Mas algo que sempre defendi foram as comunidades alternativas autogestoras. E sempre acreditei no poder do coletivo. Esse foi o primeiro aspecto que me atraiu em Osho, como a muitas pessoas. Suas comunidades foram e são experimentos bastante interessantes nesse sentido. Vamos ler o que o próprio dizia sobre isso:

MINHA VISÃO de um novo mundo, o mundo das comunas, significa nenhuma nação, nada de grandes cidades, nenhuma família, mas milhões de pequenas comunas espalhadas por toda a terra em densas florestas, exuberantes florestas verdes, nas montanhas, nas ilhas. A menor comuna viável pode ser de cinco mil pessoas e a maior comuna pode ser de cinqüenta mil pessoas. De cinco mil a cinqüenta mil – mais que isso se torna inviável, assim surge novamente a questão da ordem e da lei, e da polícia, e da corte, e todos os velhos criminosos são trazidos de volta. Uma comuna é uma declaração de uma vida não ambiciosa, de igual oportunidade para todos. Mas lembrem-se de minhas diferenças com Karl Marx. Não sou a favor de impor igualdade sobre as pessoas porque essa é uma tarefa psicologicamente impossível – e quando você faz alguma coisa contra a natureza, isso se torna destrutivo e venenoso. Dois homens nunca são iguais. Mas posso ser facilmente mal entendido, então tente entender meu ponto de vista muito claramente. Não sou a favor da igualdade, mas também não sou a favor da desigualdade! Sou a favor de criar iguais oportunidades para cada um ser ele mesmo. Em outras palavras: na minha visão, cada indivíduo é igualmente único.

O segundo aspecto derivado desse sentimento de liberdade, diz respeito às relações. Já vi muitas críticas de detratores de Osho afirmando que a sua filosofia em nada ajuda um buscador. Pois eu digo o contrário. É uma filosofia prática, que conforta aqueles que se sentem estranhos no ninho, os dá uma perspectiva de que é possível existir como se é. Lembrando mais uma vez que liberdade e responsabilidade caminham juntas. É aquela velha história: a nossa liberdade termina onde a do outro começa. Todo assunto relacionado ao amor na obra de Osho é ponto de polêmica, embora eu não consiga ver polêmica em nada. Mas porque, ao falar principalmente de relações íntimas para além da ideia de propriedade, ele toca no ponto mais espinhoso das relações: a fidelidade. Mas Osho vai além, e coloca o amor numa perspectiva espiritual. Basta ter disposição para olhar para a sua obra. Em relação à questão da propriedade do corpo, do desejo e do sentimento, Osho foi para mim e para muitos, libertador. Talvez esse seja um dos pontos pelos quais mais pessoas buscam suas palavras e as meditações dinâmicas, querendo sair dos padrões e das redes de cobranças que vivemos nas relações íntimas, que expressam o quanto somos uma sociedade neurótica e doente. Esse é também um ponto que sempre me movimentou. Hoje, aos trinta e oito anos, posso dizer que tenho claro para mim que há experiências que são só nossas, da nossa liberdade como indivíduo, e só pertencem ao nosso caminho de evolução. Ninguém deve (ou não deveria) legislar sobre isso, exceto quando a nossa liberdade passa a afetar a liberdade do outro. Mais uma vez, aqui está a responsabilidade. Nesse ponto, se não entra a ação correta do indivíduo, entra o coletivo. E nada disso fere a lealdade ou o amor, ou não deveria, pois são coisas diferentes. Desde que os relacionamentos se estabeleceram na relação de propriedade, o ser humano já sofreu muito. Especialmente as mulheres, que são as galinhas e vadias da história, enquanto os homens são os garanhões que não conseguem se segurar. Coitados. Tipo de pensamento que mata mulheres diariamente pelo mundo e que gera doenças sérias na psique dos homens. Vivemos em uma cultura doente, que culpa e pune as pessoas pelo prazer, desde o mínimo prazer em viver. Diariamente a gente mata nossa potência por nos permitirmos manter essa rede complexa de culpabilização. Não nos relacionamos com honestidade, porque temos medo e somos carentes. No aspecto da maioria de nossas relações, estamos socialmente ainda na fase da criança birrenta. No máximo, do adolescente inconsequente. E isso se aplica não apenas às relações íntimas de casal, mas a todas elas, como as amizades, as de trabalho e as delicadas relações familiares. No caso dos casais, em muitos as singularidades sequer são colocadas em pauta. Isso no dito mundo democrático. Estou desconsiderando as sociedades mais conservadoras. Preferimos viver mentiras que, um dia, explodem das formas mais dolorosas. Porque somos todos apaixonados pelo poder, para usar uma expressão maravilhosa de Michel Foucault sobre os nossos microfascismos, aqueles entranhados na alma. O Estado centralizador está mesmo dentro de nós. Adoramos exercer poder sobre o outro. E nessa conjuntura, é impossível o amor emergir em sua totalidade.

Antes de Osho, a psicanálise trouxe o assunto à tona com Freud. Reich foi o primeiro a unir tal pensamento com a política. E depois, Michel Foucault, Simone de Beauvoir, Sartre, Deleuze, Anais Nin, Hilda Hilst no Brasil, grande pensadores e escritores trouxeram a questão de forma mais enfática, tanto para a filosofia e a poesia quanto para suas vidas. Até o mundo pop teve seus expoentes questionadores das neuroses das relações, como John Lennon e Yoko Ono, que estavam muito além da rasa expressão amor livre. A diferença de Osho é que ele era considerado um líder espiritual. E dentro do universo da espiritualidade, esse era um assunto desconhecido dos ocidentais. Embora Osho não fosse ligado a nenhuma linhagem tradicional indiana, seu pensamento se alinha ao Tantra, tanto que há inúmeros discursos dele sobre o Tantra, onde a união masculino e feminino é o almejado, é o próprio samadhi (iluminação espiritual). Como tudo na vida é sujeito à interpretação e diferentes usos, no Tantra não é diferente. Há a corrente para quem a união entre os opostos se dá num caminho individual, de meditação, yoga, canto de mantras, e há o caminho que diz que o samadhi só pode acontecer através da união real entre duas pessoas. E o sexo seria o principal veículo. É daí que vem a associação do Tantra com o sexo, que faz com que se confunda uma coisa com a outra. Osho parecia unir as duas correntes. Há quem diga que não. Mas posso dizer que conheço bastante os discursos de Osho sobre o amor. O samadhi pode até ser vislumbrado pelo sexo, pelo orgasmo, numa relação de entrega e confiança entre as partes, mas é uma experiência individual muito além dos sentidos. E que só ganha densidade e profundidade na experiência meditativa. Mas o povo gosta mesmo é de polemizar, como dizem por aí. E Osho, por falar das relações afetivas para além da propriedade e na perspectiva da liberdade, acabou ganhando da mídia, apoiada pelas camadas conservadoras da sociedade, um título honorário pejorativo: o de guru do sexo livre. Mas ele nunca se nomeou desta forma ou estimulou orgias (como gostam de afirmar) ou infidelidades. Basta ler os relatos de seus seguidores, mesmo dos que deixaram de segui-lo. Não que fosse um problema também se estimulasse, não estou aqui como defensora da moral. Se assim tivesse feito, haveria os seus seguidores tanto quanto os detratores. Embora, ao ser um defensor da liberdade, sua comunidade tenha se tornado alvo fácil tanto daqueles que queriam um lugar pra pegar geral quanto dos que estavam interessados em atacar o que assusta. Sempre há os aproveitadores. E, além disso, sexualidade é tabu, ainda que o sexo esteja em toda parte. Porém, mais como mercadoria, difundindo preconceitos e machismos, e menos como algo natural. Por isso o tom pejorativo. Quem busca os ensinamentos de Osho de maneira livre de pré-conceitos e medos, verá que ele fala do amor e do sexo como algo espiritual. Esse para mim foi o pulo do gato: entender que o amor que a gente sente por alguém é a nossa grande chance de conhecer o amor maior de Deus. E que o sexo e o amor podem se encontrar, mas são coisas diferentes. É aí que caem por terra o ciúme, a posse, a carência. O entendimento de que, em suas próprias palavras, o relacionamento é uma estrutura e o amor é um fenômeno não estruturado mudou a minha vida. E a de muita gente. Assim, tendo tentado a conexão com inúmeras religiões e não alcançado o sucesso, encontrei no amor a minha religião, como a linda guru Amma. E no Yoga, a canalização de todas as energias neuróticas, para transmutá-las. Caminho que várias pessoas fizeram e encontraram em Osho uma das fontes de sabedoria. Em outro momento escrevo um texto apenas sobre Yoga e Tantra. Por ora, volto à Wild Wild Country.

Uma amiga de longa data, que leu Osho pela primeira vez no ano passado e disse ter sido impactante para ela como pessoa e como mãe (mais uma vez, aí está a filosofia prática), começou a fazer aulas de yoga há pouco tempo, com uma professora que tem muito mais experiência do que eu nesse caminho. Ao dizer para a professora que ela era iniciante, aquela respondeu como uma verdadeira mestra: somos todos iniciantes. Isso me tocou muito e me deixou muito feliz. Falei pra ela: “vai nessa aí”. Porque a verdade é essa, estejamos em qualquer parte do caminho, estamos todos no início da jornada, pois as armadilhas do ego são tantas que podemos sempre voltar pra estaca zero. Inclusive os mestres mais evoluídos na espiritualidade. Pois o ponto mais próximo de outro ponto é o seu oposto. Enquanto estamos no meio, onde tudo é tudo e nada é nada, as coisas caminham num certo grau de equilíbrio. Mas encontre a luz e terá mais clareza do que são as trevas, como o contrário também é verdadeiro. Se o universo se dobra, ambos se encontram. Cada vez que um guru se torna midiático, ele passa a ter que conviver com essas armadilhas do ego mais do que se vivesse recluso numa caverna nos Himalaias ou num ashram desconhecido. Eu respeito muito a coragem daqueles que decidem viver no mundo real e não numa caverna, a expor assim também as suas sombras. Pensemos em um ser muito iluminado como Jesus. Mesmo ele teve os seus tormentos e os seus momentos de sombritude. Não fosse assim, jamais teria entrado no templo arrasando com tudo. A ele não interessava se aquela era a cultura local ou o que mantinha o conforto das pessoas. Jesus, a personificação do amor e do perdão, entrou lá chutando o pau da barraca, literalmente, e afirmando, na base do grito, algo totalmente novo que a maioria não entendeu. Não estou comparando Jesus e Osho, não é isso. Sob muitos aspectos, se distanciam. O que quero dizer aqui, é que somos complexos ao sermos humanos. Ainda que Jesus seja um ser de luz, estava vivendo na matéria. A própria palavra guru, designada na Índia para seres que chegam ao samadhi e se tornam guias espirituais, traz essa dualidade complexa. Ela une duas sílabas em sânscrito que significam trevas e luz. Guru é aquele que encara as trevas para encontrar a luz. É uma capacidade divina presente em todos nós. Podemos encontrá-la em outros seres que consideramos mais a frente no percurso do que nós. Mas será um erro para todo aquele que se tornar devoto de um guru criar a expectativa de que ele está acima do bem e do mal. Estamos todos no mesmo barco e prontos a aprender uns com os outros. A devoção é uma grande “arma” de aprendizagem sobre nós mesmos e o cosmo, mas tem limites. Inclusive, Osho não se dizia guru. Para muitos poderia ser, mas ele falava justamente em quebrar o jogo entre guru e discípulo. Ele pode sim ter se iluminado aos vinte e um anos, sozinho como foi, sem a mediação de um outro guru, contrariando a maioria da tradição indiana e o ligando a dos grandes mestres. E criou práticas fantásticas de liberação de estresses, medos e angústias, usando ainda muito bem a palavra, como profundo orador e conhecedor de filosofia que era e de todas as tradições místicas, para ajudar outras pessoas a encontrar a verdade dentro de si. Mas era um ser humano, doente desde muito novo, fraco por uma fibromialgia que o tornou viciado em Valium e óxido nítrico, além de ter se tornado um viciado em drogas alucinógenas depois que levou para o seu círculo alguns produtores de Hollywood. Se já somos suscetíveis aos erros quando saudáveis, quando doentes e sob efeito de drogas de maneira não ritualística os canais se abrem e se tornam frágeis. O que me parece ter acontecido com Osho foi que ele não soube sustentar a atenção plena depois que se iluminou. Ou talvez nem tenha se iluminado, mas foi um homem que chegou perto de entender a verdade suprema da qual os Vedas (textos antigos da Índia) nos falam, que vemos em seres como Jesus Cristo ou Buda Shakyamuni. Talvez precisasse de alguém que o orientasse, um guru. Talvez, por negar toda e qualquer tradição, ao negar ter ele mesmo um guru, um ponto de apoio qualquer que fosse, um terapeuta ou sei lá o quê, tenha ele se perdido nos emaranhados da mente traiçoeira. Algo que talvez também ele tenha percebido ao fim da vida, quando se tornou mais compassivo, mesmo que dopado. O que não nos cabe é julgá-lo a torto e a direito como se Osho estivesse tão distante que não fosse um espelho de nós mesmos. Só que fazemos isso o tempo todo, pois somos formados na cultura da justiça, de acharmos que somos o certo e o outro é o errado. Mas por mais que queiramos controlar as forças sociais, a vida se equilibra por ela mesma, pois sempre há aspectos que fogem da nossa visão, que é condicionada por inúmeros fatores. Não que não devamos denunciar o que achamos errado e viver pelo que achamos certo, pois nesse jogo é que nos descobrimos, mas entendo que o mais interessante é trabalharmos todos em prol do autoconhecimento, do amor e do perdão. Mesmo quem busca vibrar nessa energia diariamente, escorrega o tempo inteiro. Lembro-me de uma vez em que me peguei julgando com muito ódio o bispo Edir Macedo e, ao perceber a loucura em que eu estava entrando, me coloquei um bom tempo em silêncio e meditação, para assentar em mim que eu não me sentia feliz com aquele sentimento e que ele era caminho fácil para a ruína. É a mesma coisa que fazem com Osho e é o que fazemos o tempo todo com tudo o que é diferente de nós. Temos sim que ficar atentos a todos que nos prometem o Paraíso. Mas se tem uma coisa que aprendi com as palavras de Osho e, antes disso, com mestres de altíssima vibração, e também na filosofia e no yoga, é que toda resposta está dentro de nós. Por isso não me tornei seguidora dele, como de nenhum outro mestre. Sou devota de todos e de nenhum. Porque a fé deve ser cega, a crença jamais. A fé é em relação à vida e ao universo, trabalhada apenas no âmbito individual e em vibrações altas, nascida da meditação, do amor, do serviço, da compaixão. Já a crença se dá em leis criadas pelos seres humanos. São elas que nos limitam, que dificultam as respostas nos momentos mais difíceis, colaborando para a propagação de doenças psíquicas e emocionais que nos destroem. Nenhum buscador espiritual, praticante de yoga que seja, salvo raríssimas exceções, pode ser dizer um iluminado de fato, um yogi liberto dos condicionamentos do mundo e da mente. Quem acha que chegou a esse ponto tem que arcar com enormes responsabilidades, como Osho teve que arcar.

Todos somos aprendizes, caminhantes no caminho. Até mesmo os gurus. Nossa experiência na Terra é para isso, para vivenciarmos toda a loucura que é a vida na matéria. Ela também é divina. Também é face de Deus, ou do Universo, ou de Paramatma, ou do nome que for. Por isso, acredito que mais do que propor revoluções sociais, temos que propô-las associadas à revolução que mais importa: a de dentro. Não se pode mudar o mundo sem mudar a si mesmo. Não se pode querer um mundo de mais luz sem olhar para as próprias sombras. Osho deu uma chacoalhada em nosso mundo de tantas faces fundamentalistas ao se colocar na vida com acertos e erros escancarados. Assim, ajudou a despertar a vontade de se autoconhecer em milhões de seres humanos em todo o mundo, direta ou indiretamente. Aprendamos com ele o que acontece quando somos levados pela sociedade sem atenção ao nosso interior, porque ele mesmo se deixou levar pelas seduções sociais que aprisionam.  Osho é o último nome que ele usou durante a vida, já próximo do seu falecimento. Trata-se de uma reverência em japonês, que significa algo como “consciência oceânica”. Nada mal para quem foi tão capaz de fazer da própria vida uma obra de arte, ainda que caótica e contemporânea como uma pintura de Pollock. Mas que, mesmo assim, chega a produzir luz. É assim que é a vida, precisamos das sombras para enxergarmos a luz, mesmo que isso seja doloroso. É um mistério ao qual nos cabe reverenciar sem a pretensão de que o conhecemos. Saber demais é perigoso demais, nos impede de encontrar a verdadeira paz, que não está na cessão das guerras pura e simplesmente. Mas a cessão da guerra só virá quando encontrarmos a paz dentro de nós, quando aprendermos a celebrar a vida ao invés de querer destruí-la. Quando passarmos a trabalhar mais para o fluir do amor maior. Isso é o amor fati do qual falava Nietzsche, amar tudo como é, apesar de. O pulo do gato para a humanidade. Como disse Osho certa vez, esqueça essa história de querer entender tudo. Em vez disso, viva. Em vez disso, divirta-se. Não analise, celebre!

"Tudo o que é criado é infinito": uma carta à Gabriel

Querido Gabriel,
se colocássemos o tempo que você está entre nós na escala de tempo do universo, poderíamos dizer que você passou a existir no tempo de dez elevado a menos quarenta e três segundos, ou seja, na menor das unidades de tempo da física. Eu espero que quando você crescer, as escolas já estejam ensinando algo sobre a física quântica… O que quero dizer é o seguinte: você mal chegou ao nosso planeta azul. Mas também faz uma diferença danada! E é isso que você vai descobrir sendo humano. 
Segundo os cientistas, o nosso planeta existe há 4,6 bilhões de anos. O universo onde ele existe e fica girando ao redor de si mesmo e ao redor do sol (o sol você já conheceu!), existiria há mais ou menos 13,4 bilhões. Tempo que você, como qualquer outro ser humano, jamais será capaz de conceber, porque a gente sempre pensa em termos de “o que eu faria se vivesse 13 bilhões de anos?” Porém, diferente do tempo que se mede, somos capazes de conceber o infinito, sem racionalizar e perguntar o que faríamos. É que o infinito cabe onde a gente menos espera e ele é sentido, não pensado. E essa é uma das maravilhas em ser humano. Além de pensar, refletir, analisar, chegar a conclusões, você vai descobrir que sente, que existem coisas que as palavras que você vai aprender nunca vão dar conta e que, mesmo tendo um corpo limitado e fazendo parte do útlimo segundo da história do universo, toda essa história está em você. E você vai descobrir que essa limitação do corpo foi uma invenção humana que oculta que cada um de nós contém o universo dentro de si. Por que a gente inventou isso só o tempo vai te dizer. Melhor eu não falar nada agora, porque nesse momento sua única preocupação é só ser. Nós podemos sentir o infinito várias vezes durante a vida. Aí, na tentativa de querer exprimir isso ou sentir mais, pode ser que você descubra a poesia, que é uma forma de libertar a palavra das prisões dos sentidos fixos que damos a elas no dia a dia e dizer este infinito. Ou pode ser que você descubra a música, e aí vai ser como mergulhar num oceano e se descobrir peixe – descobrir que você respira no universo do indizível. Pode deixar que a tia Vanessa vai se ocupar de te manter perto das duas! Mas pode ser que você descubra a poesia da matemática e da ciência. E se torne um grande pensador do cosmos e nos revele se, afinal, existe apenas um universo ou vários (dizem por aí que existem alguns, consegue imaginar?). Ou quem sabe, você descubra a meditação ou um sentido de espiritualidade que te conecte com esse cosmos pelo seu próprio corpo na sua solidão ou em companhia de outro. Ou tudo ao mesmo tempo. O passar do tempo tem feito a sua tia acreditar que tudo são variações de um mesmo tema. Como toda a vida no planeta também. Um dia você vai aprender sobre um tal de DNA, uma coisa que você não enxerga de tão pequena e que está dentro de você, como um hardware que carrega a programação de um computador (você vai crescer sabendo o que é isso), e que faz você ter o cabelo que tem tanto quanto metabolizar o açúcar da forma como você metaboliza (você vai estudar o que é metabolismo, não se preocupe com isso agora. Apenas mame.) A maior parte do nosso DNA é igual à de muitos seres vivos: árvore, cachorro, mosquito, barata, coruja, borboleta, flor de lótus e por aí vai. Na base, somos todos poeira de estrela e viemos todos da água. Fascinante isso, não!? E o nosso DNA de ser humano é 99% igual ao dos macacos, um dos bichos mais fantásticos desse planeta. Foi um cara chamado Darwin que descobriu isso. E a Igreja ficou doida, mas hoje já aceitou, porque ela dizia que um ser sozinho criou o mundo de repente e fez o homem a sua imagem e semelhança para dominar os outros seres. É fácil entender isso, não é? Você vai descobrir o quanto o ser humano é bom de criar histórias. Ah, o que é a Igreja? É uma longa história, mas resumindo, é uma instituição (infelizmente você vai lidar com essa coisa chamada instituição durante a sua vida) que tenta tomar para si e controlar uma coisa maravilhosa e singular que é uma tal de experiência mística. Mas isso é o que eu acho. Outras pessoas acham outra coisa e pode ser que você goste ou não da Igreja. Tem gente que se acha nela, tem gente que se acha em Buda (outro dia te conto dele) e tem gente que não se acha em nada. Isso, só pra te contar um pouco do que é o mundo em que você chegou. Embora uma coisa chamada sociedade tente moldar os seres humanos, nós somos muito diversos em nossas formas de existir, como a natureza é, ou seja, diversos nas formas de amar, de sentir, de entender uma coisa chamada política e de fazer desde planilhas até um bolo de chocolate. Você vai descobrir como é maravilhoso viver nesse mundo, mesmo e apesar dos muitos problemas com os quais você também vai se deparar. Mas não tem nada mais incrível que sentir que a vida é infinita, mesmo que a gente não seja. Ah, outra coisa que você vai descobrir… Um dia, todo mundo vai morrer. Essa tal de morte é uma coisa que dá uma tremenda solidão e é inevitável. Você vai ter que lidar com ela, faz parte do contrato da vida. Mas, ao mesmo tempo, se você colocar tudo na escala do universo, vai descobrir que é eterno. 
Essa coisa de sentir o infinito já existe junto de você desde que você foi gerado. Aliás, antes até. Você está aqui porque um dia a sua mãe e o seu pai sentiram isso em algum momento juntos e decidiram que iriam passar adiante essa sensação criando você – e eles só são capazes de sentir isso porque em algum momento da história do universo, o próprio universo achou por bem se tornar consciente. Foi então que nasceu o ser humano! Para perpetuar esta sensação, algumas pessoas meditam, outras rezam, outras fazem sexo (calma que um dia você vai saber como é isso!), umas escrevem livros, outras plantam árvores, fazem música, umas têm filhos e outras fazem tudo ao mesmo tempo. O ser humano é fascinante. Você vai ver quanta música a gente foi capaz de inventar e quantas combinações de cores e estampas, de sons, de palavras, de furos e engrenagens. Você é fruto desse sentir o infinito, sentir o universo e com o tempo vai descobrir que à nossa capacidade de conceber o infinito demos o nome de amor. Seus pais já passam isso pra você desde o momento em que souberam que você um dia teria essa carinha curiosa e tão bonita que você tem agora, com apenas pouco mais de um mês de vida sorridente fora da barriga da mamãe.  
Quando vi sua carinha pela primeira vez eu chorei. Não ria de mim, ok? Façamos um trato. Sua tia Juju riu. Mas vou te dizer uma coisa, nem eu entendi o que houve. Mas agora eu posso dizer que foi a tal sensação de infinito. Ver você e saber que você tinha vindo da minha grande amiga Lalá (é assim que eu e tia Juju chamamos sua mãe), foi sentir que a vida é eterna. Ela é eterna assim, quando passamos a frente nossa memória genética e em outro ser a memória inteira do universo. Nosso DNA carrega tudo (olha ele de novo!). Tem gente que deixa versos, tabuletas, notas, melodias, teorias. Isso também é dar eternidade à vida. Eu achava que eu seria um ser humano desses que iria manter a eternidade na criação de coisas. Mas quando eu te vi, algo mudou dentro de mim e exclamou com uma sinceridade que nunca havia existido antes: “acho que sim! Sim, é possível!” Talvez daqui a uns anos você tenha primos para pegar no colo, porque você já vai estar grandinho. Quando olhei pra você, Gabriel, e depois vi os olhos do seu pai e da sua mãe brilhando ainda na maternidade, apesar de todo o cansaço de uma noite pra fazer você sair do quentinho pra essa luz toda, eu senti profundamente o infinito. E ele cabe nos menores gestos e numa criaturinha tão pequena como você. Ele estava ali no olhar deles. Ele estava em você, na sua mãozinha e no seu choro. E ele estava na minha cara embasbacada com essa vidinha que chegava e que tem um mundo a percorrer ainda.
Com o tempo também você vai ver que o ser humano é dado a extravagâncias. Adoramos criar grandes coisas: pontes, navios, sinfonias, arranha-céus, odes, filmes de sucesso. Queremos ganhar prêmios, viajar o mundo, comprar terras, carros, casas. Tudo isso é muito legal e foi essa capacidade de ser extravagante que nos fez conquistar coisas incríveis, que deixou obras fascinantes e nos deu a capacidade de conhecer muita coisa. Ela também nos diz o quanto somos a consciência do universo (foi um amigo em comum meu e da sua mãe que me despertou pra isso, um dia você também vai conhecê-lo). Mas foi tudo isso também que deixou o ser humano doido. Não queria ter que tocar nesse assunto, mas a gente faz uma coisa chamada guerra, Gabriel. Quando a gente cisma de achar que é maior que o universo, a gente perde as estribeiras criando impérios e devastando outros, como grandes galáxias nascem e morrem. E matamos muita gente, como meteoros se colidem ou colidem com planetas. O problema é que tudo na escala do humano é complicado, porque nós somos conscientes. A natureza não é bonitinha, você vai saber. Ela é também, mas é cheia de coisas bizarras. Só que a grande diferença é que a gente faz e sabe que faz. E, ainda assim, fazemos em grande escala. É que existe uma coisa chamada poder também. Poder que se estabelece sobre o outro, e não sobre si. Você vai descobrir um dia que nada no mundo é ruim ou bom por si mesmo, como por exemplo, o poder. Poder sobre si é legal e desejável. O poder sobre o outro não é legal não. Torna tudo mais nebuloso, difícil, triste. Mas não vou entrar aqui em uma discussão moral, porque você está naquela fase que só o que importa é sobreviver e para isso você só precisa de carinho e leite e não de moral. Depois, quando você estiver maior, a gente pode conversar sobre uma coisa chamada ética. A tia não é muito fã da moral não, mas gosta bastante da ética. Normalmente as pessoas confundem os dois por aí. Mas é que eu enveredei por uma coisa chamada filosofia, de uns caras que andaram desafiando as regras de sua época. A história está cheia deles e delas. Mas muitos sofreram muito por contrariar as verdades que não eram assim tão verdades. Aliás, essa é uma palavra que vai te dar muito trabalho, já te aviso: verdade! Sabe pequeno, tem outra coisa que eu não queria te dizer, mas preciso. Tem muito preconceito nesse mundo. Na verdade, o problema nem é o preconceito. A gente tem pré-conceitos sobre tudo (sei que você será inteligente pra saber a diferença). O problema é quando o preconceito machuca a singularidade do outro. Ou seja, quando o que você não gosta impede o outro de ser livre, de ser quem ele é. É uma relação complicada essa. Outra palavra que vai te dar trabalho: liberdade. Essa já foi motivo de muita confusão. Mas também de poesias lindas. Liga não, esse mundo é confuso assim mesmo, Gabriel. Esse seu olhão curioso ainda vai ver muita coisa que ele não vai entender. Mas, como também diz um poeta, algumas coisas são para serem vividas e não entendidas. Mas seus olhos também serão capazes de ver as coisas mais lindas. Esse mundo é bonito que dói, preciso te dizer, embora a vida seja às vezes muito difícil. Sempre vai ser. Só espero que quando você tenha idade suficiente para ler e compreender esta carta, as pessoas estejam matando menos umas as outras e o planeta. A gente não anda sendo muito legal não. Chato dizer isso, mas é preciso. Mas uma coisa eu sei: você vai amar. Porque todo mundo ama. Quer dizer, dizem que os psicóticos não. Mas não sei… Duvido de tudo. E é o amor que faz a gente permanecer e aceitar as dificuldades da vida. E é a coisa mais fácil do mundo. Só que ele é tão poderoso que a gente às vezes tem medo. E o amor vai murchando conforme a gente cresce. Não me pergunte agora por que, eu prefiro não explicar. Só posso te dizer que é assim, infelizmente. Aí a gente tem que cortar um dobrado quando está grande pra poder recuperar isso que é tão fácil quando a gente é pequeno. Mas posso te garantir: vale a pena! Porque quando o reencontramos sentimos que o universo inteiro existe dentro de nós. O amor é tão, mas tão grande, que ele cabe num sorriso. Coisa louca isso não é? Mas é que tudo que existe no macro existe no micro, embora regidos por leis diferentes. Se você olhar uma galáxia e uma célula não vai saber reconhecer a diferença. Juro pra você! Esse tal de amor existe nos pequenos gestos: num cafuné, numa massagem, num olhar de cumplicidade, num sorriso repentino, num carinho desinteressado, no cheiro do café preparado pra si ou para o outro, quando a gente alonga o corpo, quando a gente sente a respiração, quando ficamos em silêncio e ouvimos o dia, quando nos deixamos tomar pela música e dançamos, quando o cachorro pede colo, quando entramos no mar. Amor é a coisa mais simples e mais fantástica do universo, ele é a própria sensação de infinito. E é por isso que vale a pena viver, mesmo diante de tanta confusão. Na verdade, como um poeta falou (o nome dele é Fernando Pessoa), “tudo o que é criado é infinito”. Tem um outro poeta que viveu no Brasil, nascido em Minas Gerais (que você vai conhecer), que disse que o amor é grande e cabe num breve espaço de beijar. Os poetas sempre sabem como dizer as coisas. E sabe por que a coisa mais simples é também a maior e a mais incrível? Porque não é tamanho que se mede nem tempo que determina a eternidade ou a força de algo. É intensidade. É presente. O passado e o futuro só existem enquanto presente. E o amor é presente em estado puro. Quando estamos nele não queremos estar em mais nada. Sentimos o infinito e descobrimos que somos eternos quando amamos. Pergunta pro seu pai e pra sua mãe.
Então, bem vindo Gabriel, amo você! E o mundo também, embora o tempo todo vão tentar te convencer que não. Mas não dê ouvidos, já disse: tem coisas que é melhor não entender… Seja quem quiser ser e permita-se amar! O resto vem.

Humano, demasiado humano…

Hoje, voltando para a casa, me peguei metafísica. Pensava na vida, como quem olha pra muito longe. E eu realmente olhava. Pela janela do metrô. De onde não se vê nada, a não ser dentro de si mesmo – um lugar longe… Por alguns instantes, fiquei tentando encaixar as peças de um nebuloso quebra-cabeças ao qual o meu desejo está profundamente vinculado. E esqueci que eu estava num vagão de metrô. Minha estação é a última e, às quase dez da noite, são poucos os que ficam para descer. Depois que o trem parou na penúltima estação, ficamos três naquele vagão. E, então, eu me vi de novo no mundo exterior. Lembrei haver um corpo que interage e que estava presente em um determinado lugar quando os meus dois companheiros de vagão me chamaram a atenção. Um homem e uma mulher, jovens como eu, caminhando ali pelos seus trinta e poucos anos. Sozinhos os dois, como eu estava. Ela chorava, com uma melancolia tão grande no rosto que chegou a partir meu coração. Olhava também para dentro, pois chorava aquele choro que pergunta. Ele fixava seu olhar num ponto fixo no banco da frente, imóvel, como quem quisesse também encaixar peças de um complexo tabuleiro onde a vida corre e não nos dá a chance de pararmos o tempo e decidirmos o que fazer. A gente simplesmente tem que decidir enquanto a ampulheta está virada e no meio de tudo o mais que não somos capazes de controlar – quase tudo. Por uns instantes, ele me olhou e eu retribuí, e ele balançou a cabeça como quem diz: é, estamos todos no mesmo barco!
Pois percebi que éramos três seres humanos que não se conhecem, mas estavam ligados naquele mesmo momento pela perplexidade que é viver – e, talvez, por um sentimento comum, aquele que existe na pergunta: mas o que foi que aconteceu mesmo? O silêncio, o choro, a introspecção, são formas que encontramos de tentar dar conta do inexplicável. Eu buscava ouvir a minha intuição, pois ela anda cada vez mais acertando o alvo direitinho. Eles, talvez. Mas estávamos, os três, impactados por isso que parece ser uma mistura de destino com livre arbítrio absolutamente misterioso: a vida. Meu cérebro tentava juntar tudo que compôs o dia, desde um sonho que me acordou assustada às 5 da manhã à curiosas conjunções; as mensagens surpreendentemente afetuosas que recebi e, por outro lado, uma bem hostil, que me lembrou que não tenho sangue de barata – e me fez perguntar porque, às vezes, somos tão reativos, como se tivéssemos que reagir sempre a tudo –; além dos silêncios, das fugas – as reais e, não, as musicais –, dos novos afetos e daqueles que insistem e apenas crescem e vão ganhando novos contornos. E tudo que me põe pra baixo e tudo que me põe pra cima. E me senti aliviada. Aliviada em perceber como, assim como disse o meu desconhecido amigo do metrô através do seu olhar, estamos todos no mesmo barco. 
Na vida, ninguém ganha nada, ninguém é nada, ninguém sabe de nada, mas podemos ser tudo, justamente por isso, ou seja, quando reconhecemos isso. Somos todos frágeis, entregues na mão do destino, à mercê da roda da fortuna. Mas também somos todos fortes, donos da própria escolha, conscientes de nosso valor, magos e dançarinos. Pena que o medo nos domine, ao invés de nos servir apenas para a preservação. Ele aprisiona e impede que muita vida seja vivida. E, assim, a gente não aceita bem a fortuna nem usa bem a chance de escolha. Por isso, penso cada vez mais como um grande amigo que, com sua sabedoria, diz que é preciso menos medo e mais cuidado. Penso também que é preciso mais loucura. Risco. Arriscar chegar perto do que nos assusta. Sempre achei que é aí que reside a maior libertação: quando a vida nos coloca dependurados de cabeça para baixo, perto do abismo. No Tarô de Marselha, uma das mais intrigantes e completas representações da jornada humana, depois do Enforcado vem a carta da Morte. Porque depois que a vida sacode seu ego e te coloca de cabeça para baixo, morre um monte de coisas que não serviam mais. Mas, para isso, não se pode lutar contra o destino de ser posto de cabeça para baixo. É uma escolha sábia aceitar, trazendo a tona o louco que ronda a nossa psique o tempo inteiro (a carta zero do tarô) – a tal ponto que se começa a dançar com o destino doloroso. Então, vem a morte para, finalmente, depois dela, vermos revelar-se diante de nossos olhos um caminho mais leve, mais fácil, mais nosso – iluminado até a dança final, a dança do mundo. Acho que, no fundo, todo ser humano tem os mesmos profundos desejos de viver com menos peso e mais amor. Isso nos conecta. Só que a gente leva tempo para descobrir que antes de encontrarmos leveza e amor em qualquer coisa fora da gente, eles existem dentro de nós. Alguns se perdem por isso, por não saberem como lidar com o fato de que é dentro da gente que tudo existe primeiro. E a nossa sociedade os condena por isso. Mas nosso louco está sempre pronto a nos ajudar a nos tornar sãos. E, na verdade, acho que era sobre isso o meu sonho. Na verdade, acho que é sobre isso que talvez pensasse o homem ou por isso chorava a mulher. Quando a vida mostra a cara, a gente só quer um pouco de alívio. Mas percebemos que ele não vem de um dia para o outro. É preciso uma longa jornada – que começa em uma franca conversa consigo mesmo diante do espelho mais cristalino em que possamos nos ver, que revela tudo: o que se quer e o que não se quer. Uma longa jornada. Já que insistimos em criar tantos muros, lanças e espadas…

Aos nossos contadores de história que se foram…

Ariano Suassuna, que nos deixou hoje, disse certa vez: “o homem nasceu para a imortalidade. A morte foi um acidente de percurso”. Em poucos dias, a morte chegou para três grandes pensadores e escritores brasileiros: João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e o próprio Suassuna. Tive a sorte de conhecer dois deles: João Ubaldo e Suassuna. E me deixar inspirar, como ser humano e como escritora. Talvez, seja mesmo a imortalidade que guie um criador a produzir sua obra. E não se trata de ego, mas de uma missão dada pelo universo. Desde o seu início, há alguns trilhões de anos, todo o universo conta a sua história e a mantém eterna. Meteoros carregam bactérias capazes de sobreviver por muito tempo, mais tempo do que nossa capacidade humana é capaz de imaginar. Cada semente conta a história da planta que lhe deu origem e da próxima que ela originará. Nós, seres humanos, contamos nossa história e nossas histórias de inúmeras maneiras: pela palavra, pela tecnologia, as ciências, as imagens, a música. Pelo amor que perpetua a espécie. Se tem algo que une tudo que existe no universo, além do fato de sermos todos poeiras de estrela, é o fato de que tudo o que existe é capaz de, à sua maneira, contar uma história, a história do cosmo, da vida e do planeta, e se manter imortal. Por isso, considero o ofício de narrador um dos mais bonitos. Ele nos torna eternos. Ele faz a vida humana se espalhar pelo tempo infinito do universo. Um brinde aos nossos grandes narradores!
Uma alegria:

Petrópolis, uma cidade de saudade


A minha Petrópolis e a Petrópolis de sempre
Petrópolis, cidade da serra fluminense conhecida como Cidade Imperial, é uma daquelas cidades brasileiras que costumam encantar pessoas em busca de uma experiência de Brasil mais europeia. Frio, neblina, pinheiros, casarões imponentes, catedral de arquitetura gótica, histórias de monarcas, jardins bem ornamentados, uma coroa incrustada de pedras preciosas, exposta para nos lembrar da riqueza dos soberanos e de sua posição privilegiada na sociedade. Cidade onde se pode alugar carruagens para conhecer seu centro histórico e visitar um local que foi um importante cassino e hotel que hospedou figuras como Getúlio Vargas e Walt Disney, o Quitandinha. Pitoresco! A Avenida Koeler, que começa na praça da liberdade e vai até a catedral, é uma das belezas de Petrópolis. De cada lado da avenida, vemos belíssimas mansões e, no Hotel Solar do Império, se pode tomar um típico café da manhã colonial, ainda que não se esteja hospedado, no Restaurante Imperatriz Leopoldina, um casarão tombado pelo Iphan com pinturas feitas à mão pela francesa Dominique Jardy; um salão que mais lembra os salões de baile das cortes do século XVIII. É só chegar e pagar. Sempre achei a expressão colonial curiosa para adjetivar um café da manhã. Nesta bela avenida, na esquina à direita de quem vem da praça em direção à Catedral São Pedro, tem uma casa que parece um castelinho que sempre foi um dos meus sonhos de consumo por lá. A Avenida Ipiranga, logo ali perto, também abriga casarões e a famosa Casa da Ipiranga, mais conhecida como casa dos sete erros ou casa mal assombrada, um lugar lindíssimo que hoje é um centro de artes e tem um restaurante concorrido. E, na Rua da Imperatriz, encontra-se o Museu Imperial, que guarda boa parte da memória do Brasil antes da República e tem um simpático café que eu adoro, especialmente quando está frio. Perto de tudo isso também, encontramos o Palácio Cristal, a Casa de Santos Dumont, alguns (poucos) bons restaurantes, a fábrica da Bohemia, a Prefeitura, a Casa da Princesa Isabel, a Casa do Barão de Mauá, o Theatro Municipal Dom Pedro e a Rua 16 de Março, que tem uma filial apertada da deliciosa Casa do Alemão, point do croquete e de bombas calóricas. Tudo isto poderia tornar Petrópolis uma cidade incrível, certo!? Mas não é bem assim que funciona.
Petrópolis é também uma cidade musical. O Instituto dos Meninos Cantores de Petrópolis, os Canarinhos, tem fama internacional e por ele já passaram grandes nomes da nossa música de concerto. O maestro Marco Aurélio é velho conhecido da minha família. Em Petrópolis é assim, todo mundo se conhece. E esta cidade é também a terra do grande maestro e compositor Guerra-Peixe – cujo centenário está sendo comemorado este ano – e, hoje, é a cidade onde vive o maestro Ernani Aguiar já há um bom tempo, ele que é criador do Coro Municipal da cidade. Guerra-Peixe tem uma obra chamada Petrópolis da Minha Infância, escrita para orquestra de câmara, que estreou sob a regência de Ernani na década de 80, quando eu ainda era uma criança. Mas embora os dois maestros tenham musicado e regido a cidade, sempre souberam muito bem que Petrópolis é um caso complicado de se entender… Num dia de tempestade no Rio de Janeiro, eu estava “presa” na Escola de Música da UFRJ e conversava com Ernani. Ele especulava como, com aquela chuva toda, iria subir a serra, tentando chamar um táxi, e eu lhe falava de minha infância em Petrópolis e de quando saí e fui morar em outras cidades. Foi quando ele me disse: “sair de Petrópolis foi a melhor coisa que te aconteceu”.
Petrópolis é uma cidade musical. Tem uma escola de música centenária, a Escola de Música Santa Cecília, mas não têm grandes orquestras – possui uma Filarmônica no Instituto dos Canarinhos. É também uma cidade com grande vocação cultural em geral, pelo menos aparentemente, mas não tem bons cinemas, não tem cias de dança, não tem uma cena expressiva de teatro, não tem casas de shows, nem grandes nem pequenas, não têm projetos de arte e cultura em nenhuma de suas favelas – hoje, muitas. Tem um grande museu, um dos mais interessantes do país, mas que como todo museu hoje é pouco ou quase nada frequentado pela população local. De toda forma, o Museu Imperial ainda salva a vida cultural de Petrópolis. É o melhor equipamento, com o melhor acervo, com a melhor organização. A programação cultural anual da cidade se resume ao Festival de Inverno, que acontece em junho, e à Festa do Colono Alemão, a Bauernfest. O Festival é realizado pela Dell´Arte, do Rio de Janeiro, e não pela cidade. Não sei o quanto contribui social e economicamente para a cidade ou mesmo para o turismo, já que se realiza numa época que normalmente já recebe muitos turistas. Culturalmente é um ótimo Festival, embora já tenha tido tempos melhores, e acredito que ao menos uma parte da população participe. No entanto, ainda assim, a cidade não consegue entrar no ritmo dele. Em determinados dias da semana, basta escurecer que, mesmo no centro histórico, Petrópolis se torna uma cidade fantasma. Depois do último concerto, não há o que fazer. Já a Festa do Colono é uma festa da cidade, e sobre ela não tenho o que dizer, pois não vou há anos. Sei que o patrocínio é da cervejaria Bohemia e, dizem os mais tradicionalistas, que ela já deixou de ser uma festa das tradições alemães. Meu avô foi químico da Bohemia. No casamento dele com a minha avó no final dos anos 40, não faltou barril de chopp. Ele me dizia que já naquela época a fórmula da Bohemia era bem brasileira…
Infelizmente – escrevo com tristeza no coração – não dá mesmo para esperar muito de Petrópolis, por mais linda que seja e por mais afeto que se tenha. A cidade vive a mesma realidade de muitas cidades brasileiras e fluminenses, onde o ser humano vem em segundo lugar e os cargos em primeiro. Nem mesmo o comércio local de malhas e lãs, que sempre foi forte por lá, anda bem das pernas. Várias lojas na Rua Teresa vêm fechando por conta da alta de preços dos aluguéis, enquanto os shoppings se espalham com lojas que se encontram em qualquer lugar, os locais de cultura e lazer fecham ou estão sucateados, as praças são abandonadas. Não sei como anda o Parque Crèmerie. Faz tempo que não vou lá. Fui muito na minha infância andar de pedalinho e brincar com os porquinhos da Índia. Até mesmo o centro histórico, que normalmente é privilegiado em cidades históricas em detrimento de todo o resto, está abandonado. As ruas estão cheias de buracos, o mato cobre a vista do rio que atravessa a Koeler, muitas casas parecem casas fantasmas. E se você já teve a experiência de pegar uma chuva forte nesta cidade, sabe o quanto é tenso. Tudo alaga e fica difícil distinguir o que é rua e o que é canal. Problema típico de cidades que crescem desordenadamente. Problema típico do mundo contemporâneo… Além disso, a qualquer hora do dia hoje é possível viver em Petrópolis uma típica experiência de grande cidade: o engarrafamento. Portanto, não se engane. A experiência europeia de Petrópolis fica reduzida ao frio de algumas épocas do ano, à história de uma família real cuja genealogia liga nobres de Portugal, França e Áustria e à comida da Casa do Alemão e do Pavelka. No mais, você não vai encontrar nada diferente de qualquer cidade brasileira. Ah sim, você vai encontrar lá um racismo bem “Europa no século XIX”… E quando você estiver no trânsito com todo mundo buzinando, pode até encontrar algumas semelhanças com Roma.
Pois esta cidade é também a minha cidade. Nasci em Petrópolis, vivi minha infância lá e até hoje mantenho contato permanente com este lugar, visitando a minha avó por parte de mãe e a família do meu pai. Estive agora no feriado de Páscoa para passar três dias na casa da minha avó. E fui com ela e minha mãe conferir a programação cultural de Páscoa, criada pela Prefeitura. Uma tristeza. Inexpressiva e sem nenhum impacto positivo para a cidade. Resumida a algumas barraquinhas genéricas no Palácio Cristal, que ainda resolveram chamar de Feira do Chocolate, o que menos havia. A barraca que parecia mais legal, com um cardápio de doces alemães, não tinha 1/3 do que prometia. Tudo era mal acabado, o público era pequeno. Fui até a organização perguntar qual seria o show da noite e só souberam me dizer o nome do grupo. Não sabiam do que se tratava. Já era tarde, estava tudo fechado na cidade. Voltamos para a casa para comer torta de bacalhau e aproveitei para ver as fotos da família, desde a época do Seu Chico Vieira, meu trisavô português que era dono de meia Cascatinha, segundo distrito de Petrópolis, onde eu cresci. O distrito mais dentro da cidade que já vi. E passei parte da noite ouvindo mais histórias da minha avó e vendo as dezenas de fotografias. 
Assim que cheguei à Petrópolis desta vez quis ir, com meu pai e minha mãe, à Estrada da Saudade. Este é o nome de uma rua da cidade onde moramos na minha infância. Sempre achei o nome da rua muito poético, e nossa casa ficava no alto e tinha vista para um céu enorme e grandes montanhas. Quis ir lá relembrar como era. Quando moramos em cima da casa dos meus avós, também havia vista para uma montanha. E acho que essas montanhas de Petrópolis, mais a introspecção que só os lugares frios nos proporcionam, foram o que me tornaram poeta. Além disso, morar num lugar chamado Estrada da Saudade é de uma beleza melancólica. Um pouco, poesia portuguesa… Depois, eu resolvi andar por Cascatinha e visitar os lugares onde brinquei e onde parte da história da minha família se deu, tanto do lado materno (pelos Vieira e os Rocha) quanto pelo lado paterno (pelos Pereira). Fui à igreja onde meus tios Lilian e Marco se casaram e eu fui dama de honra, que fica numa pracinha com um coreto, perto da antiga Estação de Trem Cascatinha, que faz parte da Estrada Real. De lá se vê a chaminé da fábrica de tecido, onde boa parte da minha família trabalhou. Passei pelo Bogari Clube, que hoje está desativado, mas onde vivi meus carnavais na infância, onde meus pais se conheceram, meus tios se conheceram, meus avós se conheceram. Ali, havia a Cia de Teatro em que meus avós atuaram e onde se apaixonaram. Foi no Bogari também que aconteceu a festa de casamento deles, dos meus pais e dos meus tios todos. E foi também em Cascatinha que eu soube, pela primeira vez, o que era ter interesse por um garoto, e nosso beijo aconteceu num carnaval no Bogari. Nossa vida acontecia entre o Bogari e a casa dos meus avós, a uns trinta passos do Clube. A casa de Ceny e Hernani sempre foi um ponto de referência no bairro. Todo mundo conhecia os dois. Minha avó foi mãe do ano (no Bogari), minha mãe foi Nice Girl (no Bogari) e toda a minha família era sempre premiada (no Bogari) por suas fantasias no tradicional, mas já extinto, Baile dos Fantasmas, um desfile de blocos bizarros com temas de terror que acontecia uma semana antes do carnaval. Eram famosas as festas (de Natal, Carnaval, Páscoa, aniversários) na casa dos Vieira e Rocha. A casa onde vivi já não era a antiga casa da família construída pelo pai de seu Chico Vieira, José, mas outra que meu avô construiu após derrubar a velha. Porém, guardava todas as histórias: do armazém do seu Chico ao lado da casa, que importava de Portugal tudo do bom e do melhor (vinho, azeite, bacalhau); dos seus dez filhos, cada um com uma história mais pitoresca que a outra; dos muitos velórios na casa e os gambás que andavam no telhado; do dia em que a família perdeu boa parte do dinheiro que tinha e teve que vender as maçanetas de cristal. E a história que ninguém acredita quando conto, mas é verdade: meu bisavô um dia saiu para comprar cigarro e sumiu. E é dele que carrego o sobrenome Rocha… Às vezes tenho vontade de colocar o Vieira, mas só de pensar na trabalheira que isso daria, eu desisto. Ele largou minha bisavó, a bela Julieta, grávida do meu avô. Só depois de muitos anos é que souberam tudo o que aconteceu, porque ele, ao saber que minha bisavó estava morrendo (dizem as más línguas, que de amor) voltou a Petrópolis. Mas meu tataravô e meu avô não quiseram recebê-lo. Ele ficou na casa de amigos e contou que se arrependia e que havia partido porque achava que o meu avô não era filho dele. Disse que morria de ciúmes da minha bisavó e não sabia conviver com aquilo. Depois, teve certeza que o filho era dele e que tudo não passava de um ciúme doentio. Covarde! Eu olho para a foto dele e repito essa palavra. Ou, vai ver era apenas um homem frágil, fruto de uma geração machista demais. Sei que depois ele quis conhecer o filho, mas meu avô não quis. A família soube que ele tinha ido para o EUA. Felizmente, depois minha bisavó encontrou um homem que a amava e fez tudo por ela e o seu filho, o meu avô. Mas, ela nunca esqueceu Horácio Rocha… E morreu jovem, aos 35 anos, do coração. Na minha família, há uma tradição de morrer do coração. É uma linhagem. Acho trágico e ao mesmo tempo poético: “morreu do coração!” Acho que estou fadada a morrer do coração, com duplo sentido. Além dos infartos, é uma família repleta de histórias de grandes e confusos amores. Pelo menos eu cresci ouvindo essas histórias, e não, contos de fadas, e acho que desde cedo aprendi que amor é mesmo conflito e que assim é muito mais emocionante que histórias de príncipes encantados.
Minha avó, quando casou com meu avô, foi morar nesta casa, com essa gente toda: muitas tias, o padrasto do meu avô, um primo esquizofrênico de quem ela cuidou até a morte dele e uma prima também com distúrbios psíquicos, de quem ela também cuidou a vida inteira. Quando os dois morreram, ela teve câncer. Minha avó é uma mulher incrível. Foi atriz quando isto era motivo para sofrer preconceito brabo. Passou por dois cânceres, cuidou de três filhos, abortou naturalmente outros, foi enfermeira, cuidou dos netos, dos primos do meu avô, do meu avô. E nunca deixou de pensar nela. Enfrentava o gênio leonino do meu avô sem medo, fazia o que queria. Viveu com um homem difícil por 63 anos e o amou profundamente, sem confundir amor com esquecimento de si mesma, como muita gente faz. Hoje, minha avó vive em um dos apartamentos de cima da antiga casa dela, que está alugada. Isto desde que meu avô faleceu. Eu não ia lá há anos, pois enquanto ele e ela estiveram doentes, ficaram em Juiz de Fora, perto da minha tia (outra cidade importante na história da família, onde nasceu a minha mãe). Quando eu cheguei lá desta vez, foi um impacto. A casa alugada me deu um nó no coração. Foi ali que cresci, que vi minhas irmãs nascerem, que inventei brincadeiras com os meus primos, que vivi minha primeira paixão, ou seja, foi ali que vivi minhas primeiras experiências de vida. E foi ali também que vivi minhas primeiras experiências de morte – a de uma amiguinha da escola, aos 6 anos de idade, de maneira trágica, e a do meu bisavô malandro, jogador do América, seu Arnô. Chorei um pouquinho, olhei o jardim que quase não existe mais e abracei a minha avó. Ela, quando voltou a morar ali, disse que passou o dia chorando. E ali, eu tive certeza do quanto minha avó e meu avô são referências para mim. Foi com eles que aprendi a amar a arte e aprendi primeiro a valorizar a sinceridade e a honestidade, o que depois os meus pais reforçaram; foi vendo a relação deles que hoje acredito no amor; e foi pela energia dos dois que aprendi a acreditar que tudo é possível, basta se mexer e fazer a vida acontecer. Meu avô era inquieto e fazia tudo. Acordava cedo e trabalhava o dia inteiro. Só dormia quando parava em frente à TV. Um sábio… Mesmo quando se tratava de jogo do Vasco, time para o qual torcia. Minha avó, de quem eu herdei a torcida pelo Fluminense (ela é a maior tricolor que já conheci, depois é que vem a minha mãe) é, como ela mesma diz, uma espevitada. Não para, nem nunca parou. Mesmo quando fazia quimioterapia. Eu digo que meu avô morreu de tristeza, e não das complicações decorrentes dos problemas do coração (olha ele aí de novo). Quando ele ficou dependente das pessoas e não mais podia fazer tudo o que sempre fez, ele entristeceu, e sabemos que isso acelerou sua morte. De uma forma ou de outra, morreu do coração… Um dia, minha mãe foi visitá-lo no hospital e ele reclamou que era tudo muito chato lá, que não havia nem uma cervejinha. Figura! No velório, quando abracei minha avó, ela me disse que havia perdido um pedacinho dela. Triste. Mas ela sacudiu a poeira e foi viver a vida, aos quase 80 anos. Hoje, faz questão de morar sozinha (e, por isso, a gente torra a paciência dela para manter o celular sempre ligado do lado da cama), porque ela é como eu, ou eu sou como ela: precisa do seu canto. Está reformando a casa inteira e vem pensando em viajar! Minha família tem uma característica pela qual agradeço: uma enorme capacidade de não se entregar e sempre recomeçar. Meu pai também é assim. Disse que já recomeçou a vida cinco vezes. Quando eu nasci, ele estava desempregado. E depois, saiu dessa condição para um cargo no banco onde só cresceu, até chegar à inspetoria e a gente viver se mudando de cidade, uma das experiências que me constitui. 
Pois esta é a minha Petrópolis. Repleta de histórias de uma família que fala sem parar, que ama sem medir, que vive a vida com tudo o que ela oferece e é capaz de se reconstruir de ruínas, quantas vezes forem necessárias. A Petrópolis que me fez poeta e escritora, pois numa família dessa e numa cidade como essa, tendo morando na Estrada da Saudade, eu posso dizer que fui condenada a ser sentimental, como o protagonista do filme A Grande Beleza.
Por isso, me entristece ir lá e ver o marasmo da cidade e a apatia do petropolitano médio. Petrópolis é uma cidade que não sai do lugar e, pior que isso, parece hoje andar para trás. Para mim, isto se explica, em parte, pelo provincianismo do petropolitano, porém, associado a um comodismo do brasileiro que diz sempre “ah, tá bom assim…” A gente aprendeu a acreditar, no Brasil, que funcionamos desta forma. Acho que esta é a frase que mais escuto por lá. Mas isto nunca foi motivo para as coisas mudarem. Falta, como bem sabemos, um governo com visão e menos corrupto (porque dizer nada corrupto no Brasil é ingenuidade). Mas isso, no país todo. Mas o que talvez falte mesmo à cidade, seja quem queira enfrentar tudo isso. Na área da cultura, ninguém fica. Não tem o que fazer por lá. A não ser que se tenha disposição para mover montanhas diariamente. Como todo mundo acaba saindo de lá para estudar, quando a gente vê o mundo não quer mais voltar. Uma pena… Fazer um Festival de Inverno é legal, mas isso não muda uma cidade. Não da forma como ele acontece, pois conheço casos de festivais altamente impactantes. Foi o que estudei na Espanha no curso de Economia da Cultura. Quando eu estava na faculdade, meu trabalho de política cultural foi para Petrópolis. Estudei a cidade de cabo a rabo e as suas potencialidades, inclusive a tecnológica – para quem não sabe, lá tem um pólo de tecnologia que às vezes é chamado de Silicon Valley brasileiro, o Petrópolis Tecnópolis. Desde aquela época tenho vontade de fazer mil coisas pela cidade e, se eu tivesse dinheiro pra valer, já teria ao menos comprado a fábrica de tecidos abandonada no centro da cidade e transformado em um super espaço cultural. Mas sempre que penso na realidade cultural brasileira e de Petrópolis, eu me desanimo. Não porque eu tenha aceitado o comodismo, mas porque saí de lá há tanto tempo – pois era impossível ficar -, que isto significaria abandonar o que venho construindo. Petrópolis faz isso com a gente. Nos expulsa da cidade. Talvez, um dia, quem sabe, quando eu já tiver rodado o mundo e feito tudo o que quero fazer, eu tenha mais energia e sabedoria para fazer alguma coisa por lá. Por enquanto, isso não é possível. Porque Petrópolis ainda é uma sociedade de corte (leia-se côrte, e não aquilo que uma tesoura faz).
Aliás, o Brasil é um país onde a sociedade de corte nunca deixou de existir. Nossa democracia é terrível, como a própria família real reconhece, ao defender, em seu site (que eu descobri outro dia) uma monarquia parlamentarista. Dá Google aí na Casa Imperial do Brasil. Mas eles esqueceram que a monarquia permanece, com a diferença de que se tornou rizomática, e não mais é privilégio de uma família. Está em toda a estrutura de governo, nas universidades, dentro de casa e nas empresas. Essa gente deixou o seu legado por aqui. No Brasil, temos o tempo todo que confrontar a corte e sua lógica, que o tempo inteiro força a desenrolar tapetes vermelhos para os soberanos e não para de os enriquecer (vide os salários dos nossos deputados). Somos uma república sub-democrática de corte. Quem sabe, um dia também, isso acabe, e Petrópolis, e todo o Brasil, possam ser lugar de gente fina e elegante por toda a parte, sem que se precise ter sobrenome e genealogia nobre para isso; e sincera, sempre. Utopias de quem morou na Estrada da Saudade.
 Casarão na Avenida Koeler

 Casas típicas de Cascatinha
 Igreja de Cascatinha e chaminé da Fábrica de Tecidos
 Coreto da pracinha da igreja

 O atestado de que a estação faz parte da Estrada Real

 Antiga estação de trem de Cascatinha
 O famoso Bogari Clube das muitas histórias dos Rocha, Vieira e Pereira…

 A casa onde cresci, já alugada, quase sem plantas, com uma escada nova e estranhamente pintada de azul…
 Minha bisavó Julieta, a que morreu de amor…

 Foto clássica na ponte com vista para a catedral. Tios, avós, mãe e pai na década de 70
 Meu avô, lindo e estiloso nos anos 40
 A velha casa da trupe do seu Chico Vieira

 O tal que foi comprar cigarro e sumiu… meu bisavô Horácio Rocha

 Minha avó na casa antiga com o meu tio

“seu” Chico Vieira Christo, primogênito do patriarca dos Vieira Christo, José, da Ilha Terceira de Açores

Entre medianeras e amores líquidos, é carnaval!

É noite de domingo. Um domingo de carnaval e Oscar. Resolvi escrever sobre relacionamentos. Nada a ver? Tudo a ver! É um bom tema para o carnaval. E também para o cinema. De fato, este é um bom tema para um texto a qualquer hora. Garante leitores e boas tiradas! Mas, diria uma amiga ligada nos 220 volts: nada a ver é escrever no carnaval…
Brincadeiras a parte, a vontade de escrever esse texto surgiu quando eu estava assistindo ao filme Medianeras, há algumas horas atrás. E, claro, juntou-se à importância que tem essa palavrinha na vida de todo mundo, inclusive na minha, e que sempre tira o sono da galera: relacionamentos!
Desde que o filme foi lançado no cinema eu quis assisti-lo. Mas as oportunidades não apareceram. Até hoje, quando liguei minha smartv, acessei o tal do Netflix e lá estava o filme entre as sugestões. E veio muito bem a calhar. Permita-me um prelúdio: na sexta-feira, decidida a não querer ver carnaval na minha frente, eu arrumei uma mala e parti para Niterói, disposta a ir ao Rio apenas em um dia deste carnaval, e para um único motivo somente. Nesta mesma sexta, a noite, tive uma crise nervosa e não parava de tossir. Graças a uma irmã que estuda acupuntura, dormi em paz e acordei outra pessoa. Isto não é muito difícil de acontecer em se tratando desta que vos escreve, mas eu acordei – pasmem – com vontade de brincar o carnaval! Então, ontem à noite, peguei a mala que mal desfiz e voltei para o Rio, enfrentando um engarrafamento enorme e levando algumas horas para chegar em casa. Meus amigos sempre me dizem: só você, Vanessa! Quantas vezes já cheguei em festas e quis voltar… Quantas vezes eu já disse “não vou” e logo depois eu mudei de ideia. Penso: isto é péssimo quando se tem um relacionamento. Ou não! Diria um amigo: até que se encontre alguém como você. Digo eu para ele: desde que esta pessoa entenda que o mesmo direito dela é direito do outro. E por aí vai… Realmente, relacionar-se não é nada fácil. Mas quem foi que disse que a vida é fácil, certo? A vida é a vida. Somos o que somos. E para tornar tudo mais leve e fácil, primeiro a gente deveria se aceitar um pouco mais e, depois, aprender a ser menos dono do outro. Fora a carência, ansiedade etc etc etc etc. Só que tudo isto é vida, e eu poderia parar esse texto por aqui. Mas vamos lá, posso fazer melhor, eu acho…
De volta ao Rio de Janeiro, sendo motivo de piada de todos os amigos que não acreditaram que eu ia fugir do carnaval (isso porque não tive carnaval a maior parte da minha vida, mas a memória das pessoas é sempre curta… desculpem amigos, sofro do mal de ser sincera…), eu tive que improvisar uma fantasia de última hora. Afinal, carnaval sem fantasia não tem a menor graça. Já era bem tarde e o bloco seria pela manhã, mas eu abri o armário, fui experimentando o que eu tinha e, voilà, o momento poético-musical de uma recém-chegada de Viena definiu: eu seria a amada imortal de Beethoven. Catei um vestido branco, colares de pérola, uma flor preta e sóbria para adornar os cabelos, peguei o livro com as cartas de Beethoven e fiz uma cópia das páginas da carta para a amada imortal. Tema da minha fantasia: o amor! Nada mais clichê… Domingo de manhã, lá fui eu, entre amigos super empolgados e outros nem tanto. Se a brincadeira durou cinco horas, foi muito. Cheguei, chapei, cansei e parti. Encontrei uma amiga no metrô, fomos almoçar, falamos da vida. Assunto? Dou um doce se você adivinhar. Assunto principal nos bares e no WhatsApp nos últimos meses? Dou mais um doce se você adivinhar. Assunto quente no WhatsApp hoje no grupo das amigas? Muito bem! Bingo! 
Estou rodeada de amigos casados, descasando, em crise no casamento, terminando namoros de longa data. Parece que todo mundo resolveu entrar em crise ao mesmo tempo. Eu, a amiga solteira, que já dividiu as escovas de dentes por um bom tempo, teve paixões intensas e passou por poucas e boas até decidir que iria parar de sofrer, fico fazendo aquele papel de ouvido e de conselheira. Este último, às vezes, é risível. Mas, comecei cedo no assunto vida a dois, após uma adolescência complicada… Depois perdi a linha. Aí voltei para a vida a dois. E vi que não era para ser. E me apaixonei. E vi que não era para ser. E resolvi ficar sozinha. Aí me apaixonei de novo. E morri de medo de sofrer tudo de novo. E me atrapalhei por conta da minha ansiedade. Até me dar conta de que eu tinha comigo algo muito mais precioso e que merecia cuidado. Assim, já mais envelhecida em barris de carvalho, comecei a me acalmar. Não vou dizer que estou tirando nota dez nos quesitos harmonia e evolução, mas o júri está ligado que as coisas mudaram e que estou muito mais inteira. É que, finalmente, descobri que posso ser feliz sozinha. Claro que para um ansioso do signo de gêmeos, isso não basta. Porque eu quero ser feliz sozinha, com o outro, com os amigos, em todas as cidades que amo, comendo todas as comidas que gosto, bebendo todos os vinhos. Mas eu descobri também que a minha ansiedade já deu o que tinha que dar e que é chegada a hora de dar um chega pra lá definitivo nessa história. Ansiedade crônica é um dos grandes entraves ao bom fluir dos relacionamentos. Este conselho eu posso dar para os amigos em crise!
Relacionar-se é mesmo algo complicado. Mas não deveria ser, afinal, somos seres relacionais. A gente sempre diz que não deveria ser… É ou não é? Acredito que complicamos porque temos dificuldades de realmente aceitar o outro como outro, porque nossos traumas fazem das relações situações em que acabamos repetindo padrões, porque dá trabalho mudar e assusta se revelar (e relações sempre nos transformam e nos revelam), porque queremos que o outro seja nosso e seja como gostaríamos que fosse… Enfim, motivo não falta. Complicar é uma especialidade humana! Mas descomplicar também! Amém! E parece que quando a gente ama, queremos nos fundir no outro. Reconheço que esta é uma sensação maravilhosa. Mas, alto lá minha gente, o outro será sempre o outro, um grande mistério. Às vezes, nós mesmos somos um grande mistério pra gente, que dirá o outro… Querer se fundir no outro deveria vir separado de querer controlar o outro. Façamos essa gentileza ao planeta! Eu, você e todos. Além disso, essa sensação também traz toda a carga das experiências passadas, e a gente inevitavelmente associa uma coisa à outra e tende à repetição de padrões. Quando o padrão não se repete, a gente chega a estranhar. Outro dia mesmo eu vivi uma situação dessas. Eu estava super achando que ia sofrer (e sem muitos motivos, devo confessar a mim e a outra parte da história) e, como não me vi sofrendo, a primeira reação foi: tem alguma coisa errada. Depois eu percebi que tinha, na verdade, alguma coisa muito certa.
Medianeras é um filme que fala sobre os relacionamentos no mundo contemporâneo. Um mundo altamente conectado e, ao mesmo tempo, um mundo onde se multiplicam solitários. Zygmunt Bauman diz que vivemos a era do amor líquido, das relações rasas e mediadas. Bauman poderia ter escrito o roteiro do filme. Outro dia, estava eu na casa de um amigo muito especial. Alguém com quem é inevitável não tocar no assunto relacionamentos. Era madrugada, ele dormia e eu tinha perdido o sono. Havia um silêncio profundo. Eu estava sentada com o olho arregalado olhando para as paredes, os quadros e a fresta na janela por onde entravam os primeiros sinais de claridade. Olhei para o lado, sem muita emoção e um pouco de enjoo e vi um livro: Amor Líquido. No auge da minha insônia eu me pus a pensar sobre o livro, sobre as relações, cheguei a algumas conclusões, depois desfiz, depois cheguei a outras, o dia clareou e eu estava confusa. Este foi o primeiro livro do Bauman que eu li. Na época, discordei. Até concordei, mas sempre achei o Bauman um alarmista e, grosso modo, achava que ele estava exagerando. Hoje, já não penso mais assim e não sei muito bem de mais nada. Só sei de uma coisa: que eu acredito no amor. A forma como o vivemos é que parece ter mudado muito. Se existem relações rasas? Muitas. Como sempre existiram, embora eu concorde que a tecnologia facilite a multiplicação de relações superficiais e produza muitas inseguranças. A questão é: isto é um problema, como Bauman coloca? Talvez, pensando no sentido de comunidade que, segundo ele, se perde na modernidade líquida. Mas talvez seja cedo para dizer. Talvez seja romântico dizer que sim. Talvez seja frio dizer que não. Mas, se é problema, a pergunta traz outras perguntas mais importantes, genealógicas. Problema por quê? Para quê? O que o torna um problema? E trazendo para o âmbito da pessoa: é um problema para mim? Por quê? 
Não vou desenvolver este assunto em um texto de carnaval, mas minha pseudofilosofia não me deixa outra alternativa a não ser refletir um pouco mais. Parece-me interessante pensar sobre isso a partir do ponto de vista da expectativa. Em tudo na vida a gente põe expectativa. Disto é difícil fugir quando não se é monge budista. Na carreira, nos filhos, na repercussão de um trabalho ou estudo, nas amizades e, claro, nos amores. Conheci um gerente de marketing que disse uma vez que a vida se tornava mais fácil quando a gente gerenciava as expectativas. Na hora eu ri por dentro e minha vontade foi perguntar para ele se ele tinha tesão ou se ele sabia o que era se arrepiar ao ouvir uma música. Hoje eu prefiro dizer que ele não está certo, mas também não está errado. Não sei se é bem uma questão de gerenciar expectativas, mas sei que precisamos aprender a nos desapegar das grandes expectativas que criamos. E quando o assunto é relacionamentos, elas podem por tudo por água abaixo ou criar aqueles malditos duplos vínculos. Este sim me parece um aprendizado para nos tornamos seres menos neuróticos. Nossas neuroses e psicoses matam as relações. E, com elas, é muito fácil ficarmos presos em emaranhados que nada mais são que suas construções, que vamos desenvolvendo conforme o tempo vai passando, conforme vamos nos amoldando à cultura – sempre achei o melhor texto de Freud O mal estar na civilização… Acho que a maior parte do que a gente acredita, imagina e tem convicção é pura invenção. Nossa vida é nossa maior ficção. Mas posso estar enganada…
Pois bem, o carnaval está aí, época em que muitos relacionamentos começam, muitos terminam e multiplicam-se as relações rasas. Mas relações rasas podem gerar impactos profundos… Porém, eu sou uma moça que gosta mesmo é de relações que se aprofundam. As rasas têm o seu valor, mas acredito que só vivemos plenamente o humano e a vida quando vivemos relações profundas, inclusive com nós mesmos, porque é no mergulho que a gente se conhece mais e consegue ter mais vivência, mais contato com os mistérios e as maravilhas da vida. Claro que o conceito de profundo também é um problema, e não é com todo mundo que a gente consegue manter relações profundas. Profundas mesmo acho que dá para contar nos dedos. Mas, dizia Paul Valéry que “o mais profundo é a pele”. Para Deleuze e Guattari, deslizar na superfície, multiplicar-se, é que tem uma conexão com a plenitude, e o conceito de profundo muda de figura quando o espaço liso, a superfície, ganha importância. Porém, acredito que o profundo não necessariamente é uma descida. Pode-se mergulhar para cima e para os lados. O profundo me parece mais uma abertura a se deixar tocar e modificar. De toda forma, rasa ou profunda, que seja uma relação sincera e desejada por todas as partes envolvidas, é o que eu desejaria. Talvez esta seja a questão mais importante. E, em sendo uma relação profunda, que não precise ser uma relação pesada. Parece que a gente andou por alguns séculos associando uma coisa com a outra. Culpa dos românticos? Não sei. Eu não sou romântica, embora eu seja a amada imortal de Beethoven, e serei para sempre. Eu também acredito em para sempre, assim como acredito no amor. Enquanto a gente está vivo, a vida é eterna e tudo o que sentimos também pode ser. O para sempre é circunstancial. Mas nem por isso deixa de ser o que é e de ter a força e a potência que tem de unir pessoas e criar mundos. Complicado? Quero acreditar que pode ser diferente. Afinal, é sempre isso que move os corações, acreditar que pode ser diferente. E pode! Enquanto estivermos vivos e houver desejo de diferença, sempre poderá ser diferente. Basta estarmos dispostos. 
Assim, vou chegando ao fim deste texto, feliz por ter um relacionamento sério com a palavra. Está aí o que é a minha grande companhia! E feliz por ter conseguido escrever em pleno carnaval. Eu que desisti dele, voltei atrás e desisti de novo, cá estou: vidrada no computador há algumas horas, este que se tornou uma extensão de mim, rodeada por uma purpurina que não deveria estar aqui, um copo de cerveja vazio, uma cama grande, livros, música e um espelho. Olhei nele agora, vi minhas olheiras, percebi que é preciso trocar o piercing porque o meu está abrindo toda hora e lembrei o quanto eu preciso voltar a cuidar da minha ansiedade, e que já sei o que devo fazer pra isso, basta apenas começar… Olhei também para a cama e constatei o quanto ela é grande e pensei que, grande desse jeito, merecia ter alguém sempre ali com quem eu pudesse “disputar o espaço”. Mas penso também que o amor acontece quando tem que acontecer e que a cama voltará a ser compartilhada na hora certa. E lembro o quanto eu gosto de me esparramar nela sozinha, tanto quanto eu gosto de ter alguém do lado. Mesmo que eu não saiba dormir de conchinha – embora eu tente, mas dura poucos minutos. Gostaria era de dormir com mais facilidade, mas eu também já sei o que fazer para isso. E não é tomar Rivotril… Bem, mas como concluir um texto sobre algo que não dá para se chegar a nenhuma conclusão num ensaio, no carnaval, quiçá, na vida? Vamos lá, vou tentar.
Acho que bom mesmo é acordar, se olhar no espelho e cantar para si mesmo o refrão delicioso do Ultraje a Rigor: “eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim”. Mas, tão bom quanto é ter também para quem cantar Fogo e Paixão do Wando. Dure o amor uma semana, um mês, um ano ou a vida inteira. Comece rápido, devagar, de forma fácil ou aos solavancos. O que importa é que ele exista e que nos deixemos tocar por ele. E aceitemos que tudo dura o tempo que tem que durar. É fácil. Só é complexo. Mas a vida não teria a menor graça se não fosse assim. É o que a gente sempre diz também…

Felicidade e nada mais

É sexta-feira à noite, e estou em casa, cansada e feliz, alegre por que amanhã, sábado, não terei hora pra acordar, o que não significa que não terei o que fazer… Como tenho! E por isso também me sinto feliz. São coisas que eu escolhi, porque elas me escolheram. Amor! E algumas (menos) que não escolhi, mas que já entendi que é necessário vivê-las porque elas têm algo a me ensinar. E uma coisa me anima nesse instante: escrever sobre a felicidade. Venho refletindo bastante sobre essa coisa que persegue a humanidade, e que perseguimos como um tesouro e, de tanto perseguir obsessivamente, acabamos por encontrar qualquer coisa, menos a tal da felicidade.
Mas hoje estou sentindo algo que se aproxima ao que chamo de felicidade. Então é sobre isso que minha mente inquieta junto aos meus dedos frenéticos a procura das teclas do computador estão querendo escrever. Não realizei nesta vida o que já foi um dos meus sonhos, ser pianista (sonho que talvez nem exista mais, já que outros falam tão mais alto), mas posso me considerar uma pianista das palavras. Gosto de pensar assim. Isso me faz feliz.
Como foucaultiana que sempre fui, acredito que felicidade não é um conceito dado e, a cada época, se reconfigura de acordo com os interesses e relações de poder estabelecidos. Já houve tempo em que a felicidade estava muito longe, na promessa da salvação, no paraíso, num plano etéreo que definitivamente não era a Terra. Mas acho que ela nunca esteve tão longe quanto hoje. Busca-se a felicidade incessantemente, e o que vemos cada vez mais são pessoas infelizes. A felicidade passou a depender de tanta coisa que se tornou um mundo “ideal” que não existe. Colocamos essa coisinha tão longe e demos tanta importância pra isso que ela simplesmente desapareceu. Sempre achei muito curioso como a sociedade ocidental contemporânea foge da dor como o diabo da cruz. O discurso da segurança é nosso discurso mais poderoso. O medo de envelhecer, um dos nossos grandes medos. A “perfeição” do corpo, uma obsessão. A perfeição como figura social também. Não pode fumar, não pode errar, não pode comer fritura, não pode brochar, tem que ter dentes brancos, pele lisinha, cabelos com brilho e sem frizz. Há que ser excelente em tudo: como profissional, amante, amigo, filho, marido, mulher, e o tudo o mais. Conceito de excelência que vem do conceito de eficiência empresarial. Culto da performance, como o nome de um livro excelente anuncia. Que saco… Bem, deixo claro que não estou aqui defendendo a esculhambação, mas falando contra essa doideira coletiva de achar que existe perfeição. 
Perfeição absolutamente não existe. Só posso acreditar na perfeição que considera o seu contrário, o imperfeito. Acho a imperfeição tão perfeita! Assim como me alegra saber quão imperfeita é a perfeição…  Será que é tão difícil entender algo tão óbvio? É! Primeiro, porque a gente cria mundos perfeitos na nossa cabeça. Segundo, e o que torna o primeiro grave, é que os criamos deslocados da realidade. Felicidade, se existe, tem a ver com realidade. Sonho tem a ver com realidade. Sonhar o impossível não é para os fracos (risos). Sonhar o impossível só faz sentido se você põe o impossível no plano do possível, e corre atrás, mas aceita que, em suma, nada controlamos e que o impossível é imperfeito, e que isso é perfeito…
Felicidade, então, para mim, tem a ver com dor. Que mania essa de fugir da dor… Que mania também de alguns de se afundar na dor e querer se tornar mártires. Acho que felicidade tem a ver com a aceitação da dor. Mas, indo mais além, com a aceitação do convite que a dor proporciona: o do autoconhecimento e do contato fundamental com os mistérios da vida. O mistério é tão necessário a nossa saúde mental! A obsessão científica em tudo querer explicar acaba gerando uma angústia que também coloca a felicidade nesse lugar inexistente… Felicidade tem farpa, tem espinho, tem espelho, tem ponto de interrogação. E ponto de interrogação tem maravilhar-se! Felicidade tem aspereza. Felicidade tem a ver com descobrir que, melhor do que as coisas acontecerem do jeito que você imagina, é a surpresa. Aceitar o tempo das coisas, o tempo do outro, o seu tempo, e deslizar nesse universo de tempos sobrepostos e em colisão ou comunhão, é felicidade. É felicidade ainda saber que tudo passa, tanto a tristeza quanto a alegria. Felicidade é ser agradecido tanto pelos momentos em que houve desespero e nada saiu como esperado, quanto por aqueles em que houve só a alegria daquela calma que sentimos nos momentos em que dizemos: eu não queria estar em mais nenhum outro tempo e lugar do mundo, mas exatamente aqui e agora. Felicidade é isso tudo, que é nada. É só viver sabendo que tudo é transitório. Não consigo negar parte da minha formação budista…
Infelizmente, nossa cultura parece não nos ajudar muito a aceitar a vida, que é caos. É uma cultura da culpa, do medo, da diminuição da coragem, da inflação do ego, da ideia de que ter (inclusive pessoas) é que traz felicidade. Uma cultura do “perfeito”… Impossível não lembrar de Nietzsche nessa hora e dos quatro grandes erros de “Crepúsculo dos Ídolos”, que talvez tenham movido Zaratustra a subir e descer a montanha, porque a felicidade se encontra nos dois atos, e na descoberta trágica do eterno retorno. 
Hoje, nesse exato momento, eu digo “estou feliz” e isso me soa sincero. E sabe por quê? Porque eu sofri. E porque eu ri. Porque eu levei mais de dez anos praticando yôga para começar a entendê-la. Porque eu tive coragem de ir pra onde deveria ir e tive coragem de voltar pra onde deveria voltar. Porque eu rompi, mesmo com medo. Porque eu conectei, mesmo com medo. Porque eu olho no espelho. Porque eu errei e aprendi com o erro. Porque eu sei que vou errar mais, diante do novo, e isso não me assusta, porque o novo é absolutamente o que move a vida. Cada dia que passa é um novo dia. E acho que é tudo isso, essa movimentação, que me proporciona experiências e conexões incríveis. O universo se move, tudo no universo se move. Tem um amigo que diz que somos a consciência do universo. Se a gente não se move, o universo nada faz por nós, já que somos uma coisa só. Então, no fundo de tudo o que eu poderia listar como “segredo” da felicidade, talvez esteja esta simples, mas não simplista, ação: movimentar-se! É jogando a bola para o universo que ele joga de novo pra você, como diz um outro amigo. E como diz um outro ainda, quando o desejo é sincero, e não interesseiro, as coisas acontecem. Talvez isso nem seja desejo, mas simplesmente existir conforme o que te move. Ser o próprio universo, simplesmente. O infinito está dentro da gente… Logo, a felicidade também. Tem coisa mais fácil de entender e mais difícil de viver? Óbvio que agora cheguei num ponto daqueles altamente complexos: será que é mesmo só uma questão de movimento? Pois algumas pessoas parecem ter sorte enquanto outras parecem ter um azar danado… Mas sei lá. Isso é mistério, e ainda bem. Se já estivesse tudo resolvido, que graça haveria em continuar? É como aquela música do Moska: “então me diz qual é a graça, de já saber o fim da estrada, quando se parte rumo ao nada…” Nenhuma. O bom da vida é que ela é uma aventura! 

Do desejo e do desapego

Pequenos momentos podem ser grandes momentos, quando capazes de ampliar a vida, de torná-la mais bonita e mais leve. E talvez sejam os pequenos momentos os que mais deem sentido à vida. Um abraço, um cafuné, um bom café, uma boa noite de sexo, encontros, reencontros, olhares, fazer uma comida pra quem se gosta, oferecer e receber ouvido, atenção, colo, flores, ter aquela conversa, beber um vinho, conseguir fechar um trabalho, iniciar um, pegar um avião, saltar do avião, chegar num lugar desconhecido, chegar num lugar que se ama. É no dia a dia que as coisas se consolidam, que a intuição tem espaço, que se constrói e se destrói. É no cotidiano, na necessidade de viver o que a vida nos coloca como nosso, que temos a chance de aplicar conhecimentos, teorias, juntar práticas, organizar, reorganizar, desorganizar. É no dia a dia que dimensões fundamentais da vida ganham espaço, como o cuidado, a atenção, a relação entre o que somos e o que é o outro e o mundo. Os grandes acontecimentos são importantes, como as celebrações ou os ritos de passagens, mas é no dia a dia que os processamos, criamos sentido para eles e, de fato, fazemos a vida acontecer. Infelizmente, quando há um desequilíbrio das forças, a gente perde muito como ser humano. Ao menos, acredito nisso. Observo que vivemos numa sociedade que privilegia o grande acontecimento, a imagem, e suprime um pouco a dimensão do cotidiano. Há pouco tempo, dei uma entrevista sobre indústria da música para o Jornal Valor e falei sobre isso, quando me perguntaram se a valorização da imagem do músico em detrimento da música tinha relação com a cultura. Claro que tem, desde que entendamos a cultura como a expressão de um tempo. Dei a seguinte resposta: 
“Isto é a nossa cultura hegemônica hoje, entendendo cultura como a expressão e produção de um povo, país, grupo ou de um tempo. Neste sentido, tem a ver com cultura sim. Mas quando isso acontece, de fato a arte fica em segundo lugar. Valoriza-se muito mais a casca que o conteúdo. A cantora até estuda pra não ficar mal na fita, mas ela está mais preocupada com a escova no cabelo do que com a voz… A imagem tem um peso enorme hoje em dia, de uma maneira descolada da ética. A estética é uma dimensão fundamental do humano, mas descolada da ética é somente aparência. Acho triste isso como cultura de um tempo. E está presente em tudo. Quantos casamentos infelizes existem por aí, mas que a festa foi incrível, o papel foi assinado, e todos saíram satisfeitos por cumprirem seu dever social? E vamos vivendo histórias de mentira… Assim como amor é uma coisa que se vive no dia a dia, muito mais do que na mise en scene, cultura e arte também. É uma ralação diária pra se fazer uma coisa consistente, para não descolar a estética da ética…”
Nessa imbricação da estética com a ética, para mim, reside uma das questões fundamentais da vida. Mas isso traz uma fatalidade. Não no sentido daquilo que é ruim, mas no sentido do que é inevitável. Ou nos confrontamos com isso ou viveremos pela metade. Em algum momento, a vida vai se encarregar de nos mostrar que ela não é o que a gente desejaria que fosse. E leva-se tempo para aceitar isso. No entanto, quando se aceita, a vida parece se tornar muito mais interessante, porque infinitamente surpreendente. Pois nos deparamos também com a limitação do nosso desejo, e com a limitação do nosso entendimento da vida, sempre pautado pelo que queremos, e isso exclui uma série de possibilidades. A questão é que lidar com isso não é fácil, e parece bem mais fácil fechar os olhos e fingir que está tudo resolvido. Nada está resolvido. A vida é processo. Claro que algumas coisas precisam começar e terminar, ciclos se abrem e devem ser fechados no tempo de fechar. Mas em termos de sentido, da pergunta “quem sou eu, o que faço aqui e o que quero, e o que é a vida”, o processo é permanente. Aqui, entra outro componente fundamental: a relação com o desejo e o apego. 
Primeiro, começa pela confusão com o conceito de desejo, por isso esse é também um componente fundamental. É preciso que entendamos o peso que certas práticas têm na cultura para relativizarmos as coisas e ganharmos leveza. A psicanálise consolidou muito bem um determinado conceito de desejo na cultura ocidental, de tal forma que ele se tornou a verdade sobre esse conceito. Desejo passou a ser aquilo que queremos e do qual nos tornamos escravos, conceito que, depois de algumas décadas de psicanálise, Deleuze e Guattari vieram combater, afirmando que desejo é uma força que, em linhas bem gerais, move o ser humano e qualquer coisa viva. Não vou aqui filosofar sobre o desejo, porque eu precisaria retomar estudos e discussões que estão enferrujadas na minha vida, para relembrar algumas coisas e ganhar mais consistência, mas quero chamar atenção para uma coisa: o desapego como forma de tornar o desejo algo mais leve. Sendo desejo algo que se quer, tendo esse peso que a psicanálise colocou nele, deduzo que uma questão importantíssima para se viver bem é como desejar, se movimentar, em suma, viver, sem depender daquilo que se deseja ou, até mesmo, do desejo que te move. Não sei muito bem a que caminho eu vou chegar com essa especulação, porque isso é mesmo uma especulação. Mas entendi o que para mim significa o desapego, depois de tantos anos intrigada com isso, fazendo meditação, pesquisando o budismo, entre outras práticas. 
Fala-se aos quatro ventos e nas redes sociais da vida que o desapego é fundamental. Sempre que vejo isso me pergunto se as pessoas pensam sobre aquilo que elas falam, e se dispõe algum tempo de suas vidas a tentar entender o que está circulando de fala por aí. Porque o que mais tenho visto são falas apressadas. Não que as coisas não possam acontecer rápido. Acontecem, e eu que o diga. Mas vejo uma necessidade de fala desesperada hoje, uma pressa em querer opinar. Lança-se, assim, a “opinião” de qualquer maneira, e muitas vezes ela é tão somente um desabafo ou a expressão de alguma vontade, ou uma carência, carregada da história da pessoa, suas conquistas e frustrações, lançada sem o menor cuidado nas redes e nos espaços coletivos. A galera está mesmo com pressa hoje em dia. Talvez porque tanta coisa esteja entalada na garganta, claro. Só acho que se precisa ter cuidado, pelo outro e por si. Fica-se vulnerável diante da fala apressada jogada sem parcimônia nestes espaços coletivos, e fazemos, a partir dela, muitos julgamentos pré-conceituosos. Muitas vezes, a fala apressada é também uma defesa e, em alguns casos, uma vontade de aparecer, de mostrar que se tem opinião, de provar alguma coisa qualquer pra sei lá quem. Um medo de ser só mais um, uma fragilidade… Mas cuidado também não é ficar quieto. Um grande amigo vem colocando, nestes espaços coletivos, uma questão importante e que tem me feito pensar muito: menos medo e mais cuidado. Tomei isso pra mim como um mantra, pelo menos por um tempo. Temos muito medo de viver; medo do outro, medo de sair do nosso lugar de conforto, medo de não ter o que dizer, medo de não saber. E o medo, embora um recurso de sobrevivência, quando alimentado, mesmo que de forma subconsciente, paralisa a inteligência plena. E nos jogamos diante do mundo de forma reativa, buscando sempre “culpar” algo ou alguém pelas nossas incapacidades, ou de maneira individualista diante de questões que merecem foco no coletivo, ou de maneira rasa quando precisamos mergulhar em nós mesmos, com medo, talvez, do que vamos encontrar. Mas, enfim, tudo isso pra dizer que o desapego me parece não aquele desapego utópico da supressão do desejo, mas a não dependência daquilo que se deseja. Um cuidado com si mesmo e um cuidado com o outro. Desejar, no sentido de querer, causa uma grande ansiedade, e a ansiedade, quando exagerada, torna os processos confusos e altamente individualistas, e daí surge essa exacerbação do ego que vemos hoje em dia, expressa, inclusive, nas falas apressadas. Fato é que a ansiedade também move, mas como nada na vida é, me deve ser, simplificado, embora simples (e o simples é complexo…), ela também tira a nossa capacidade de relaxar e de observar o outro, para que a troca se torne efetivamente uma troca. 
Sou uma pessoa muito ansiosa, desejo demais. E esse desejar demais me move, o que é ótimo, porque sempre realizo coisas incríveis. Mas quando a ansiedade chega ao ponto de me exaurir, e hoje eu já consigo identificar minimamente esse ponto, eu sei que me entregar a ela é uma cilada das mais terríveis. Por isso, respiro, medito e lanço para o universo. Desapego. Não que eu deixe de me movimentar, mas eu deixo de depender dos resultados do movimento para me sentir em paz. Você poderá se perguntar se eu realmente consigo isso. Bem, muito mais que ontem, e muito menos que amanhã. É um constante aprendizado, puro fluxo e movimento. Nesse sentido, o desapego tem relação direta com o cuidado. É um cuidado de si e um cuidado com o mundo e o outro, na busca de encontrar o ponto onde você não se anula e não sufoca o outro, onde você age com o coração na hora que tem que agir, e onde você recua na hora que tem que recuar. Estar atento é um cuidado. Atento a si, atento ao outro, atento ao que se passa ao seu redor. Isso é cuidar. E o cuidado é fundamental para ampliarmos nossa visão de mundo, da vida e para acalmarmos o coração. Nunca fui uma pessoa muito cuidadosa, mas é impressionante como a gente muda nessa vida. Hoje, o cuidado se tornou uma questão fundamental pra mim, talvez porque, cada vez mais, o desapego também seja.
Acredito que é preciso deixar-se levar pelo desejo e se movimentar, tanto quanto é preciso saber a hora em que somos movimentados. É preciso confiar. Isso é desapego. Isso é cuidado. A gente confia muito pouco na vida e até na nossa própria capacidade quando somos tomados pela ansiedade de querermos que a vida seja de tal ou tal jeito. E confundimos muito essa entrega com ficar parado, simplesmente aceitando as coisas como elas são. Falo justamente do contrário. Assim como Deleuze e Guattari, acredito que o desejo move o mundo, e é o que me move, e é o que deve mover. Mas também, é o apego ao desejo que produz as coisas mais bizarras, como a paixão pelo poder, por exemplo. O poder é um desejo de poder sobre o outro. Apaixonar-se pelo poder é uma cilada e tanto do ego. Eu posso estar fazendo uma confusão com esse conceito de desejo aqui, mas como eu falei, são especulações ainda. E escrevendo eu vou arrumando as pecinhas na cabeça. Assim como, às vezes, o que mais preciso é abandonar as palavras para entender algumas coisas. Tenho tentado equilibrar essas duas formas de conhecimento e construção da realidade…
Mas sei que nesse momento a questão do desapego se tornou uma grande questão. E pensando nessa sociedade apegada, e tão apegada a imagem, que dá tanto mais peso ao espetáculo que ao que se vive e se sente de verdade, não tenho como não pensar em mim, sendo que vivo neste tempo. E vice-versa. Pensando em mim, também penso no mundo.
Ontem, voltei da minha aula de canto muito pensativa. Já era tarde da noite, fazia muito frio, e caía uma garoa. Eu caminhava me sentindo leve, e pensava na vida e nos últimos acontecimentos. Joguei para o universo os meus anseios. Venho num processo de fazer isso já há algum tempo; o processo de me movimentar no cenário entre o meu desejo e o que preciso fazer, e quando confiar e entregar para o mundo. Não sei precisar há quanto tempo, pois sei que é uma questão de anos. Mas de forma mais enfática, como uma questão que realmente faz sentido, faz pouco mais de um ano. Então, eu andava por aquelas ruas arborizadas da Tijuca, cheias de casinhas legais, perto da montanha, sentindo a chuva fina sobre mim, e me veio a memória, totalmente afetiva, de Petrópolis, cidade onde nasci, vivi minha infância e passei boa parte da vida visitando por conta dos meus avós e tios. Acho que aprendi a gostar da Tijuca, especialmente da área onde moro, perto da montanha, por conta dessa sensação que me traz aquele cantinho do bairro. Quando começa a esfriar no Rio, parece que lá é o primeiro lugar a sentir o efeito do frio (no caso do calor vale o mesmo). Vai baixando uma neblina montanha abaixo, e o vento logo fica gelado. Gosto disso. Ou foi o que escolhi para aprender a gostar da Tijuca e fazer do bairro um lar, depois de 12 anos morando colada ao mar, coisa da qual sinto muita falta. Mas nada que um deslocamento rápido não resolva! Pois bem, eu ia passando por aquelas ruas bonitas, cheias de casas, prédios baixos e árvores, ouvindo músicas que ampliam a vida, repleta de uma boa nostalgia, e me sentia certa; muito certa, de que lancei para o universo tudo o que vinha me amarrando em insônia, angústia, e outras coisas que me destroem. Se eu consigo? Como falei, mais que ontem, menos que amanhã. Mas a sensação é de conquista.
O fim de semana foi emocionalmente intenso, me exigiu, e comecei a segunda-feira já com sensação de sexta. Precisei me desligar na segunda, como às vezes eu preciso para recarregar as baterias, e deixar o mundo desabar sem a minha intervenção. Sei que isso, quando se tem compromissos, é algo complicado. Mas como muito do meu tempo está hoje nas minhas mãos, outra conquista fundamental, eu me dei esse luxo, pois eu sabia que poderia resolver tudo a partir de terça. Sumi do trabalho, pois o cansaço, físico e emocional – uma mistura de ressaca, falta de sono e excesso de gente e suas inúmeras questões –, me impedia qualquer discernimento, e ainda havia uma raiva de ter que fazer uma coisa que eu não estou nem um pouco a fim de fazer: uma produção que não fala ao meu desejo e que chegou de forma atropelada, enquanto tantas outras falam e para as quais também preciso dar atenção. Dormi a tarde inteira, com a pressão baixa e, quando acordei, alguma coisa me disse que eu devia me mandar pra São Paulo no fim de semana. Não sei por que razões lógicas, mas eu atendi a esse chamado interno, até porque faz mais de um ano que não vou lá. Eu sequer pensei se eu poderia ir ou se teria dinheiro. Simplesmente acordei, me veio a ideia e eu comprei uma passagem. Vai entender… E nem consegui resolver tudo pra ficar tranquila por lá. Não sei até agora onde vou dormir no sábado, por exemplo, nem o que vou fazer no fim de semana. As únicas coisas que sei são o dia que chego, o dia que volto, e que tenho onde ficar e o que fazer na sexta. De resto, eu ainda vou descobrir. Mas é isso, estou confiando que tudo vai dar certo. Porque sempre dá. Uma amiga disse que sou louca, brincando, claro, porque ela me conhece há 13 anos. Mas pra mim, louco (no sentido, aqui, daquele sem noção do que faz) é quem vai vivendo a vida na mesmice, sem risco e sem movimentação. A vida é curta demais pra se ficar com a bunda no sofá, pra se fazer o que não se quer, para se estar com quem nada tem a ver com você, pra não dormir o tempo que se quer dormir (créditos desse último pra um amigo com quem conversei hoje no almoço). É preciso jogar para o universo e confiar. E jogar para o universo é se movimentar, porque nada cai do céu. Acredito que mesmo que a gente não saiba pra onde ir, devemos escolher um ponto e ir. A vida sempre se encarrega de nos fazer chegar a algum lugar interessante quando a gente se põe em movimento. E nesse caminhar, a gente vai ajustando, avaliando se é isso mesmo e, às vezes, podemos nos desviar completamente do caminho, o que pode ser ótimo, pois é sinal de que alguma coisa falou alto ao nosso desejo, ou pode ser ruim, mas isso vem pra nos fazer crescer. É como aquele verso: não há caminho, o caminho se faz ao caminhar. Portanto, é preciso ir. Aquela metáfora que compara a vida a andar de bicicleta é linda e, para mim, super verdadeira: para se ter equilíbrio é preciso estar em movimento. Então, uma coisa se tornou certa na minha cabeça: movimente-se, mas confie. O apego é um bichinho sedutor, mas completamente traiçoeiro. Por isso, joga pro mundo e vai tranquilo, desapegado! E coisas maravilhosas serão possíveis. Observemos no nosso dia a dia essas questões. É nele que a vida dá pistas de que é incrível!

O tempo

O tempo é uma das questões que mais me me tomam tempo nessa vida, como questão prática e simultaneamente filosófica. E a relação com o tempo, é sempre uma relação conflituosa para mim (mas que relação não é conflito, me pergunto… conflito é bom!). Tudo o que faço, ou melhor, tudo o que escolhi para me dedicar (ou que me escolheu) faço com intensidade, e fico sempre com aquela sensação de que me falta tempo, porque, teoricamente, eu precisaria de mais tempo para fazer mais e melhor (neurose minha). Mas essa é uma sensação de quase todo mundo hoje, pois vivemos bombardeados por informações, ofertas e convites. Achar que vamos dar conta de tudo é um erro para o sistema nervoso, e para a consolidação do que deve ser feito. Pois o que não nos falta é tempo. Talvez falte é concentração, foco naquilo que escolhemos como prioritário na vida. No entanto, embora tempo não seja desculpa quando queremos alguma coisa de verdade, não há tempo a perder. Porque a vida passa rapidinho… O ruim é quando sequer sabemos o que queremos, o que desejamos. Aí é assunto pra outro texto. Nesse aqui, vamos supor que já sabemos, ao menos um pouquinho…
Saber que o tempo está passando é uma sensação que às vezes me angustia. É por isso que acredito que manter-se em movimento é extremamente importante e, mais que isso, no movimento do desejo. O quanto deixamos de nos dedicar àquilo que realmente importa pra gente na vida? Essa pergunta deveria ser básica no nosso dia a dia. Acredito que uma sociedade neurótica e violenta é fruto das inúmeras repressões do nosso desejo. Nada novo na psicologia, ok. Mas só para enfatizar que falo de um desejo de ser o que se é, que é o que se quer. De assumir o que é sincero dentro da gente. É assim que nascem os grandes artistas, cientistas e outros istas. Quando a gente faz o que ama, ou algo que passamos a amar porque nos conduz ao que acreditamos, e porque o que a gente ama nos organiza, nos constitui e dá sentido a nossa vida, a gente vive melhor e a vida em sociedade parece fluir melhor. Ao menos, é nisso que acredito. Claro que há uma série de questões sociais aí, mas é por isso que acredito nas políticas (coletivas e individuais) da multiplicidade – papo para outro texto também. E para isso não há tempo a perder, e há tempo para nos dedicarmos. Certo!? Hoje entrei no site da Armazém Cia de Teatro, e ao clicar para ler sobre o espetáculo A Marca da Água, eis que me deparo com a seguinte frase no início do texto de Paulo de Moraes, nesse meu momento em que tanto tenho pensado sobre o tempo: “não há tempo a perder”; e que termina lindamente com a frase “não podemos ter medo de morrer afogados”. Como isso soa familiar pra mim, uma pessoa de mergulhos…
Este mês, me peguei ainda mais interessada pelas questões do tempo, pois tenho tido vários insights sobre a minha vida, como se estivesse vivendo um daqueles momentos em que a gente começa a pensar em se dar alta da terapia. Eu realmente tenho resolvido muita coisa internamente, e atribuo isso a toda a série de movimentos de rupturas que comecei no ano passado, mas, especialmente, aos movimentos de reconstrução que iniciei neste ano. É como na história. Depois da queda, o recomeço. Depois das trevas, a luz. Trevas são necessárias, não nos enganemos achando que a luz deva ser eterna. Mesmo porque sequer sabemos se alguma coisa pode ser eterna, a não ser enquanto dure. Eterno é tanto tempo, que não faz sentido nos preocuparmos em descobrirmos se ele existe. É perda de tempo…
Trevas são necessárias… Tristeza, dor. Tudo isso, além de inevitável, é necessário pra gente dar valor ao que temos e, para mim, principalmente, ao que podemos realizar ainda. Porque na vida tudo está sempre por vir, e tudo o que quisermos pode ser possível. É questão de probabilidade. Se é provável, é possível. Por isso, depois de ter vivido mais uma das minhas trevas na vida, eu comecei a ver a luz de novo (no fim do túnel ela sempre existe, é só sair andando pra frente). E nesse movimento, percebi como eu havia deixado de lado uma série de coisas que me constituíam, me organizavam, me faziam olhar no espelho e dizer: sim, é você Vanessa! Certo, era preciso passar por isso. Sempre é. Mesmo que não seja. E se a gente aceita o tempo do crescimento de cada planta, a colheita é incrível! 
Eu agora estou num momento de replantar minhas plantas favoritas, coisa que o tempo fez por mim. E, de uma vez por todas (expressão dramática para enfatizar), colher aquilo que nasci pra fazer, entendendo que a pessoa é para o que nasce… Mesmo que nada esteja escrito nas estrelas, eu sei que nasci para algumas coisas (eu defini assim por desejo e por paixão). As principais delas consigo descrever da seguinte forma nesse momento: 1. investigar os mistérios do corpo, e suas possibilidades e potencialidades; 2. ajudar pessoas a concretizarem ideias/projetos/sonhos dos quais compartilho, e construir belas ações conjuntas; 3. investigar os mistérios da vida e, em suma, compartilhar a vida. 
Dentre as muitas formas de realizar tudo isso, eu fui escolhida por algumas. Uma delas, a que está mais evidente para os outros e que me ocupa bastante tempo, é a produção cultural. Acho que ela dá conta dos pontos 2 e 3 lindamente, e até hoje continuo nessa porque posso realizar, com pessoas incríveis, coisas incríveis, e estar em contato profundo com o ser humano. Isso me faz feliz, e também me situa nas relações de trabalho. Penso que quando não está bom produzir, é porque estou produzindo a coisa errada e devo mudar o rumo das coisas. Felizmente, tenho sido uma produtora de sorte, ou, que sabe procurar o que produzir… Definitivamente, sou uma produtora que precisa estar envolvida em todo o processo da produção. Desde a criação, entenda-se. Se assim também não for, eu vou buscando a forma de ser, ainda que isso implique em mudar de local de trabalho, abrir uma nova empresa, ir pra fora do país, essas coisas… Ainda bem que no campo da produção podemos sempre estar em movimento. Eu morreria se tivesse que bater ponto em um escritório todo dia fazendo um trabalho mecânico. Sorte? Acaso? Destino? Inteligência? Política? Tudo junto? Sei lá…
Já no campo um, foi com o yoga e o canto (como pilar de uma performance artística) que mais me realizei. Mas, por um bom tempo, eu os deixei de lado. E essa foi uma das principais questões que me lançaram na reflexão sobre o tempo neste ano. Por que os deixei de lado… Medo da potência? Já tentei de tudo (risos): teatro, piano, bodyboard, natação, corrida, mergulho de apneia. Tudo isso está em mim ainda, e algumas dessas atividades ainda são interesses, mas, de alguma forma, hoje elas se sintetizam no yoga, pela linhagem do tantra, e no canto (as atividades que escolhi para me aprofundar e que são sagradas na minha vida), e vão fazendo parte da construção das minhas performances artísticas, para as quais retornarei em breve. Pensar o retorno ao que me alegra e ao que faço com prazer é uma questão e tanta sobre o tempo na vida… E a elas vão se somando novas, e outras repaginadas. No momento estudo dança também (apenas como um plus na condição de performer, e não para ser bailarina) e, mesmo tendo passado um bom tempo numa relação complicada com a corrida (que já tentei várias vezes emplacar), eis que, por força das circunstâncias, eu a redescobri, embora ainda prefira a bicicleta… Mas preciso liberar adrenalina intensamente (vício de quem faz isso há anos), e correr é algo que posso fazer perto de casa. Andar de bicicleta na Tijuca não é nada divertido. Mas foi preciso resignificar essa atividade. Então, redescobri a corrida como meditação, ou seja, como yoga também. Coisas que só o tempo faz.
Especificamente no campo três, acho que viajar e escrever é o que mais me faz, embora cantar, quando é para o outro, também seja uma forma de compartilhar a vida. Mas escrever é, sem sombra de dúvida, uma das minhas formas primeiras de investigação da vida (no ato da escrita, para mim, fica claro como razão e emoção se confundem e se misturam) e de compartilhamento (porque eu gosto de ser lida). Não tenho esse papo de que escrevo só pra mim. Escritor que escreve só para si não publica. Já viajar é uma das mais deliciosas formas de se estar em movimento. Gosto, e muito! Além disso, compartilhar é também o motivo de eu gostar tanto de estar com as pessoas em relações profundas, mesmo sendo uma geminiana com Vênus em Gêmeos, o que me faz ser mal interpretada sempre (mais risos). Mas eu tenho um mapa denso em seu conjunto, e gosto mesmo é das relações que se aprofundam. Sou daquelas pessoas que prefere dar festa em casa a sair pra uma festa qualquer. Entende?
Mas porque eu falei tudo isso? Bem, porque também escrevo pra mim (risos de novo). E em um momento da minha vida em que autoconhecimento é prioridade, falar de mim tem sido inevitável nos meus textos. Mas também pra me ajudar a contextualizar a questão do tempo, e relacionar o ser com o fazer. É pensando em tudo isso, que sei que não há tempo a perder para realizar o que preciso realizar. E o que preciso realizar deve ser trabalhado com precisão, como navegar, já que a vida, não é nada precisa. Assim a gente equilibra e faz bonito!
E você, sabe o que te constitui, o que te organiza, o que te faz você? Dizem que não é o que a gente faz que nos torna nós mesmos, mas o que sentimos, ou somos. Eu não tenho esse talento de separar as coisas. Para mim, o que somos é o resultado do que praticamos. E o nosso caminho prático é também o nosso caminho espiritual. Por isso, é bom observarmos o que falamos, e se o que falamos é o que fazemos (na relação com o que temos de mais verdadeiro). Seja o que for, que seja o que tiver que ser. Mas que seja mesmo! Que tenhamos sempre a coragem de viver o que acreditamos. Para isso, deve haver tempo, e não há tempo a perder. Chronos e Kairós…