Humano, demasiado humano…

Hoje, voltando para a casa, me peguei metafísica. Pensava na vida, como quem olha pra muito longe. E eu realmente olhava. Pela janela do metrô. De onde não se vê nada, a não ser dentro de si mesmo – um lugar longe… Por alguns instantes, fiquei tentando encaixar as peças de um nebuloso quebra-cabeças ao qual o meu desejo está profundamente vinculado. E esqueci que eu estava num vagão de metrô. Minha estação é a última e, às quase dez da noite, são poucos os que ficam para descer. Depois que o trem parou na penúltima estação, ficamos três naquele vagão. E, então, eu me vi de novo no mundo exterior. Lembrei haver um corpo que interage e que estava presente em um determinado lugar quando os meus dois companheiros de vagão me chamaram a atenção. Um homem e uma mulher, jovens como eu, caminhando ali pelos seus trinta e poucos anos. Sozinhos os dois, como eu estava. Ela chorava, com uma melancolia tão grande no rosto que chegou a partir meu coração. Olhava também para dentro, pois chorava aquele choro que pergunta. Ele fixava seu olhar num ponto fixo no banco da frente, imóvel, como quem quisesse também encaixar peças de um complexo tabuleiro onde a vida corre e não nos dá a chance de pararmos o tempo e decidirmos o que fazer. A gente simplesmente tem que decidir enquanto a ampulheta está virada e no meio de tudo o mais que não somos capazes de controlar – quase tudo. Por uns instantes, ele me olhou e eu retribuí, e ele balançou a cabeça como quem diz: é, estamos todos no mesmo barco!
Pois percebi que éramos três seres humanos que não se conhecem, mas estavam ligados naquele mesmo momento pela perplexidade que é viver – e, talvez, por um sentimento comum, aquele que existe na pergunta: mas o que foi que aconteceu mesmo? O silêncio, o choro, a introspecção, são formas que encontramos de tentar dar conta do inexplicável. Eu buscava ouvir a minha intuição, pois ela anda cada vez mais acertando o alvo direitinho. Eles, talvez. Mas estávamos, os três, impactados por isso que parece ser uma mistura de destino com livre arbítrio absolutamente misterioso: a vida. Meu cérebro tentava juntar tudo que compôs o dia, desde um sonho que me acordou assustada às 5 da manhã à curiosas conjunções; as mensagens surpreendentemente afetuosas que recebi e, por outro lado, uma bem hostil, que me lembrou que não tenho sangue de barata – e me fez perguntar porque, às vezes, somos tão reativos, como se tivéssemos que reagir sempre a tudo –; além dos silêncios, das fugas – as reais e, não, as musicais –, dos novos afetos e daqueles que insistem e apenas crescem e vão ganhando novos contornos. E tudo que me põe pra baixo e tudo que me põe pra cima. E me senti aliviada. Aliviada em perceber como, assim como disse o meu desconhecido amigo do metrô através do seu olhar, estamos todos no mesmo barco. 
Na vida, ninguém ganha nada, ninguém é nada, ninguém sabe de nada, mas podemos ser tudo, justamente por isso, ou seja, quando reconhecemos isso. Somos todos frágeis, entregues na mão do destino, à mercê da roda da fortuna. Mas também somos todos fortes, donos da própria escolha, conscientes de nosso valor, magos e dançarinos. Pena que o medo nos domine, ao invés de nos servir apenas para a preservação. Ele aprisiona e impede que muita vida seja vivida. E, assim, a gente não aceita bem a fortuna nem usa bem a chance de escolha. Por isso, penso cada vez mais como um grande amigo que, com sua sabedoria, diz que é preciso menos medo e mais cuidado. Penso também que é preciso mais loucura. Risco. Arriscar chegar perto do que nos assusta. Sempre achei que é aí que reside a maior libertação: quando a vida nos coloca dependurados de cabeça para baixo, perto do abismo. No Tarô de Marselha, uma das mais intrigantes e completas representações da jornada humana, depois do Enforcado vem a carta da Morte. Porque depois que a vida sacode seu ego e te coloca de cabeça para baixo, morre um monte de coisas que não serviam mais. Mas, para isso, não se pode lutar contra o destino de ser posto de cabeça para baixo. É uma escolha sábia aceitar, trazendo a tona o louco que ronda a nossa psique o tempo inteiro (a carta zero do tarô) – a tal ponto que se começa a dançar com o destino doloroso. Então, vem a morte para, finalmente, depois dela, vermos revelar-se diante de nossos olhos um caminho mais leve, mais fácil, mais nosso – iluminado até a dança final, a dança do mundo. Acho que, no fundo, todo ser humano tem os mesmos profundos desejos de viver com menos peso e mais amor. Isso nos conecta. Só que a gente leva tempo para descobrir que antes de encontrarmos leveza e amor em qualquer coisa fora da gente, eles existem dentro de nós. Alguns se perdem por isso, por não saberem como lidar com o fato de que é dentro da gente que tudo existe primeiro. E a nossa sociedade os condena por isso. Mas nosso louco está sempre pronto a nos ajudar a nos tornar sãos. E, na verdade, acho que era sobre isso o meu sonho. Na verdade, acho que é sobre isso que talvez pensasse o homem ou por isso chorava a mulher. Quando a vida mostra a cara, a gente só quer um pouco de alívio. Mas percebemos que ele não vem de um dia para o outro. É preciso uma longa jornada – que começa em uma franca conversa consigo mesmo diante do espelho mais cristalino em que possamos nos ver, que revela tudo: o que se quer e o que não se quer. Uma longa jornada. Já que insistimos em criar tantos muros, lanças e espadas…

Autor: Vanessa Rocha

Escritora ensaísta, de ficção e de poesia. Palestrante, pesquisadora e professora. Doutoranda em Ciência da Religião, especialista em Psicologia Analítica, Mestra em Comunicação e Cultura, Produtora Cultural e Artística. Quatro livros publicados e contando...

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