O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudade

Saudade deve ser uma herança que carrego dos antepassados portugueses. Sinto saudades de tudo, até do futuro. Ao menos é o nome que dou a uma certa ansiedade que se mistura a um sorriso bobo de quem gosta do que viveu ou do que vai viver, mesmo sem saber exatamente o que virá ou sem entender o que se passou. Acho que só sente saudades de verdade quem tem coragem de se lançar ao inevitável da vida. Saudade não é falta, é alegria do vivido, do outro e alegria do que virá. Aquela energia nos momentos difíceis, inclusive, e uma dose extra de coragem para viver o presente com toda a intensidade, para se construir grandes narrativas de vida. Hoje, ao menos, é assim que sinto. Amanhã, sabe-se lá… Certa que a saudade produz uma melancolia, mas a melancolia nos ajuda a lidar com a vida. É necessária para entendermos o quanto fazemos parte do universo. Deveríamos dar mais atenção a isso.  Saudade e melancolia tem uma relação siamesa, me parece… E, por sua vez, com a liberdade e a felicidade, duas questões na minha vida hoje. Elas estão dentro da gente. Permitir-se a saudade parece um caminho para esse encontro com a liberdade e a felicidade dentro, na dobra de nós mesmos, o único “lugar” onde acredito que elas possam ser encontradas.
Hoje senti uma inusitada saudade de Roma e suas ruínas. Roma foi um dos lugares onde mais me senti bem na vida. E foram só quatro dias. Mas o suficiente para eu me apaixonar pela cidade ou pelo que aquela cidade que tanto já viveu dizia à minha memória genética, afetiva, social, coletiva. À cultura e à natureza em mim. Sinto mais saudades de Roma, por exemplo, do que da Espanha, onde passei mais tempo na Europa, ou mesmo das cidades onde morei no Brasil. O que me diz que amor é coisa que não precisa de um tempo longo para acontecer. E que saudade e amor também têm uma intrínseca relação. Acho que só sentimos saudade do que amamos. Não esquecendo que é possível sentir amor também pelas dores vividas, aliás, inclusive, porque o amor também está em nós, e só faz sentido falar em amor quando falamos em aceitação do fluxo da vida. É possível amar a dor quando a dor liberta! Sentir amor por algo ou alguém me parece que nada mais é que um reconhecimento, a partir do outro e no outro, do amor-mundo-universal que reside em nós. Há conexões que tornam o amor tão evidentes, pela intensidade com que se estabelecem, que passamos a amar o objeto da conexão. Uma pessoa, uma cidade, um livro, o mar. Na verdade, estamos é expressando a razão de ser da vida. Amor. Será? Lembrando que o amor, para ser amor, precisa libertar.
Amor, saudade… Como tudo isso tem relação com a liberdade? Bom, tudo é insight ainda. Apenas sei que saudade, para mim, se tornou coisa boa. E encontrei em Mário Quintana uma boa explicação pra isto, que só a língua portuguesa soube sintetizar: “Para sempre é muito tempo. O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo…” Porém, como poeta, me pergunto se não invento a saudade. Se, na verdade, o que me move é inventar tudo o que sinto na poesia ou, quem sabe, exagerar… Afinal, o poeta é um fingidor. E inventa, como o título do poema de Hilda Hilst do qual me apropriei, viagem, retorno e morre de saudade… Mas se inventei a saudade ou não, fato é que ela está comigo. E para quem pretende fazer uma grande viagem daqui há um tempo, e outras muitas pela vida, será bom carregar um pouco desse tempo suspenso, para equilibrar com os momentos de novidade. Lembro sempre nessas horas paradoxais [em que convivem uma grande saudade e uma vontade de partir] do grande poeta português, como não poderia deixar de ser, já que fui por ele formada na poesia e na arte de sentir tudo de todas as maneiras e excessivamente. O que já virou um jargão do poema tão conhecido “Mar português” é para mim tão verdadeiro que é um mantra poderoso: tudo vale a pena, se a alma não é pequena… Já pensou no sentido desta frase? No quanto ela pode ser libertadora se conseguirmos ultrapassar seu conteúdo perigoso e doloroso? Seu Bojador?
Fiquemos, então, com a grande saudade de Pessoa… E mais a liberdade, o amor e a felicidade. Pois quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Permita-se a saudade. Permita-se o amor. Permita-se a liberdade. Ouse conversar consigo e abrir espaço para encontrar em si tudo o que talvez estivesse buscando no lugar “errado”, fora de você. Mas com uma atenção, acredito: o fora é dentro, o dentro é fora…
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

uma crônica no dia da cultura

escrevo, nesse dia da cultura, uma crônica do meu dia que, desconfio, pode até falar da cultura, mas não tenho tanta certeza. só sei que eu pensei nela o dia inteiro. então pode ser que sim, que eu fale da cultura. meu dia hoje foi marcado, basicamente, por discussões, leituras e escritas. um dia cultural? eu ia comemorar o dia da cultura no samba da pedra do sal. mas desisti. não consegui quem fosse comigo. e, mesmo assim, talvez eu não tivesse ido, porque fui tomada, como às vezes acontece, pela febre da escrita. eu já havia sambado no fim de semana. e dançado bastante. venho dançando há semanas. dancei charme, até meus pés cansarem. estou cogitando virar frequentadora assídua de bailes charme. essa música se conecta comigo de uma forma estranha, fisicamente interessante. inexplicável. mas tudo está tão inexplicável que pouco importa. um garoto que me viu entregue ao charme veio falar comigo que estava encantado com a minha entrega à dança, que percebia que eu não era da galera do charme, mas que a minha entrega era um encanto. bonito isso. exceto o fato de que essa percepção diz que eu errava mais do que acertava rs. e isso é cultura!
então sim, eu vou falar de cultura. pois bem, tenho insistido com os meus alunos desse semestre para irem ao samba da pedra do sal, esse reduto da cultura. mas do que estou falando mesmo? reduto da cultura! o que será que quero dizer com isso? de toda forma, é de grande importância cultural, e eu queria muito ter ido ao samba da pedra do sal. mas vou na próxima segunda. de qualquer jeito. sozinha, com alguém legal ou alguém chato que eu possa esquecer na cadeira enquanto sambo. talvez lá eu tivesse encontrado amigos ou até alguns alunos, mas eu tive que vir pra casa. até pensei em chegar e praticar yoga antes de escrever, já que hoje não fiz pela manhã, mas fui tomada por essas palavras. yoga é cultura? pensei ainda em desistir de tudo isso e ir à meditação budista das segundas-feiras. mas não era mais possível. e toda segunda é esse dilema. escolher entre o samba e Buda… cultura!
tomada então, pelas palavras, cheguei em casa e não fiz o que quase sempre faço primeiro, que é tirar os sapatos, uma ato cultural de conexão imediata com a natureza. eu liguei o computador. mas precisava comer. a natureza gritava. porque, me conhecendo, sei que esse texto seria longo e eu poderia fraquejar olhando a tela e teclando. caminhei tensa pra casa, lembrando que na geladeira parecia não haver nada sólido. foram muitos dias entre minha casa e casas alheias nesse último mês, que fazer compras já nem sei como é. estive nômade. só lembrava de líquidos. um suco do bem de tangerina já aberto, mate caseiro que eu fiz um dia e esqueci de beber e duas garrafinhas de Heineken pra me sentir James Bond, além da água, claro. não poderia ser esse o meu jantar. alguma coisa eu haveria de achar. e agradeci mamãe que me cedeu belas panquecas de espinafre quando até então eu só comia vegetais. isso foi na sexta-feira. santas panquecas que eu trouxe pra casa e me salvaram o jantar da segunda-feira! ponto pra mãe!
pela manhã, discuti com os alunos qual era a contribuição da ideia de economia criativa para a cultura. talvez, no mundo da superespecialização, falar em economia criativa seja criar ainda mais abismos, já que setoriza a criatividade. mas ainda estou pensando sobre isso. de toda forma, a criatividade (para além da economia) é algo a ser discutido em tempos de disputas necessárias. disputa. desde que conheci Marcus Faustini tenho usado esse termo. ele caiu como uma luva ao meu momento de revisão de conceitos. hoje, em pé na espera da barca para Niterói, eu lia as páginas quase finais do seu Guia Afetivo da Periferia. desde que comecei a ler o livro, e desde que conversamos pela primeira vez, tenho me perguntado quais os inventários possíveis da minha vida, e fico com vontade de também escrever uma autobiografia. caótica assim, como um guia, um mapa de afetos. por alguns instantes, acho engraçado, aos 32 anos, querer escrever uma autobiografia. mas talvez a vontade exista porque eu ache que eu já tenha vivido o suficiente pra, ao menos, contar umas histórias engraçadas, e queira povoar o mundo com mais histórias inúteis. que seja então. ou só porque gosto de contar histórias, e minha vida tem algumas. escrever é minha cachaça. e estou disputando a cidade também, o imaginário, o desejo. estou criando meu espaço-tempo, ou os meus espaços-tempos nas relações todas que tive e tenho. fiquei com a impressão de que encontrar a Agência de Redes pra Juventude e o Faustini (que, em nossa conversa, descobri que havia participado do Inter, o projeto mais amoroso que já fiz na vida), nomeou algumas coisas que estavam sem nome pra mim. de toda forma, falarei com ele sobre isso. e estudarei essas produções de inventários, cartografias e abecedários. amanhã, uma terça, passarei o dia na Agência, porque sei que alguma coisa ali tem algo muito forte pra me dizer. tenho me interessado muito em conhecer as formas de viver que as pessoas têm encontrado nas cidades. especialmente, aquelas que disputam espaços com as hegemonias em favor da autonomia. isso talvez seja minha pesquisa de doutorado. é na ação cultural que as pessoas mais tem encontrado as formas de produção de autonomia? pode ser. 
(pausa: nesse momento em que escrevo uma banda começa a tocar na escola do lado da minha casa. uma bateria forte, uma voz feminina cantando “agora só falta você”. afinada a menina, bom batera, guitarra consistente. a música acaba e começa uma versão rock and roll de “preciso me encontrar”, do Cartola. isso é cultura.)
mas o grande deslocamento desse dia se chama Slavoj Zizek. nunca havia parado para ler um livro de Zizek, somente artigos. mas hoje era meu primeiro dia de férias da UFRJ. eu estava no centro do Rio tentando resolver umas coisas da trevo criativo, a empresa da qual sou sócia consultora e mais o nome bonito de “articuladora de redes”. não consegui resolver o que deveria, não por mim, mas pela desorganização alheia. resolvi entrar na livraria porque ainda tinha a esperança de ir pro samba. fui pra Travessa, pedi um café, uma água com gás e abri o computador. escrevi. uma mini autobiografia para o meu blog (estou verborragicamente egocêntrica), porque vou transformar o blog em um espaço para quase tudo que eu crio. então lá haverá um “quem sou eu”. pois bem, cansada de escrever, eu desci e fui ver o que as estantes me trariam, já segurando a mão pra não pegar na carteira e comprar mais um monte de livro que vai ficar esperando o dia de ser lido. Zizek me chamou por um título: “órgãos sem corpo”; em uma alusão clara ao corpo sem órgãos de Deleuze. eu, que desde que conheci Deleuze, andei de mãos dadas com ele, fui lançada no vazio. Deleuze como o filósofo do yuppie… Ok, nada tão estranho. Mas ao ler um dos capítulos de “em defesa das causas perdidas” era como se Zizek me olhasse e falasse: “tolinha. você fica acreditando no trabalho em rede achando que isso é uma revolução, e é só mais uma  forma de atualização do capitalismo”. tá, tudo bem. até já pensei sobre isso. bastante. mas a forma como ele faz uma crítica à ideia de multidão de Negri, que também muito tem de Deleuze e, por sua vez, de Spinoza, da inteligência geral como o auge do capitalismo, em que este mesmo se extingue, numa perspectiva marxista totalmente tradicional, mas atualizada na revolução do digital, desloca totalmente o ser humano apaixonado. porque me apaixonei por Deleuze. a tal ponto de usar o Mil Platôs (sua fantástica cooperação com Guattari) nas aulas de política cultural, em que sentava à vontade na mesa da sala, abria o livro e jogava para os alunos: e aí, o que tem as máquinas desejantes a ver com a política de cultura?
resisti o quanto pude a comprar o livro. vamos ver o quanto aguento. mas desde que terminei o mestrado eu prometi pra mim mesma que deixaria um pouco a leitura filosófica de lado para me dedicar mais ao corpo, à poesia e a práticas diversas, para diversificar o meu olhar e minha perspectiva e retornar à filosofia depois dessas novas imersões. tenho conseguido. mas Zizek não me sai da cabeça. porque falou diretamente comigo, não só por me provocar, porque essa crítica a Negri eu mesma já fiz. até mesmo ver Deleuze como alguém que fala direto ao jovem empreendedor não é de todo estranho. e de alguma forma, eu sou uma figura que passeia entre o empreendedor e o artista. uma figura-nada. mas a forma como faz Zizek é que me pegou. a forma consistente numa escrita avassaladora. porque tenho essa relação com a escrita, que passa pela estética. a plasticidade, a sonoridade, a construção, elas me encantam. antes de pegar o livro de Zizek estava folheando um livro do Pierre Levy, já conhecido, tentando reencontrar nele o que me fez ter como primeira ideia de monografia e depois de mestrado falar sobre a Internet. mas eu ainda não sabia muito bem o que falaria naquela época, não havia subsídios que me ajudassem naquele ano de 2003. e optei por falar da cultura, querendo vê-la pela ótica da teoria da ecologia profunda e das redes cibernéticas. um trabalho de filosofia. e assim a cultura me persegue desde então. no mestrado lá estava eu, na busca de entender o sentido contemporâneo de cultura, levada por uma metodologia foucaultiana, outra das minhas paixões. essa cantora careca. nunca vi um sadomasoquista escrever tanto… mas também nunca conheci um. não que eu saiba. e aí veio o Zizek com sua cara de garoto problema. preciso lê-lo. se vai ser agora não sei. mas sei que preciso.
me pergunta se isso é cultura!? não sei. e se eu tivesse ido ao samba da pedra do sal chegaria a tal verborragia? talvez essa verborragia seja cultura, e o samba seja natureza pura, porque é ritmo, sensação, batucada, paixão, crônica da rua. espontâneo. mas essa separação cultura e natureza é um dos grandes problemas do mundo. então é melhor parar por aqui, ou farei uma tese. isso é cultura.
sei que, chegando em Niterói, dois casais, por algum motivo, me chamaram a atenção. eu estava com a cabeça cheia. fechei o livro do Faustini e segui andando pensando no filho da puta do Zizek e em como tudo isso havia me dado uma vontade absurda de escrever sobre cultura, mas eu nem sabia por onde começar e a única coisa que me vinha a mente era fazer um texto sobre tudo isso, por que não. comecei a desenhar o texto na cabeça. sem forçar a barra. o texto se esboça sozinho. ao mesmo tempo um diagrama da trevo começou a aparecer na minha cabeça. desenhei na mente esse diagrama pra desenhá-lo no papel, porque agora sei o que a trevo pode ser em potência. mas isso é assunto pra outro momento. no meio de tudo isso, eu aflita na minha sede insaciável da escrita, vivo a seguinte cena. uma garota corre em direção a um garoto que a esperava na saída da barca. os dois se abraçam como se quisessem se fundir um no outro. e choram. aquilo me arrebata de uma tal maneira que paro e fico olhando a beleza daquela cena. eu que estava tão submersa em pensamentos, sou arrastada por isso. paro alguns instantes e meu coração aperta, como se se sentisse sufocado de tanta cultura e quisesse também um abraço dessa intensidade, e só um abraço assim fosse capaz de me aliviar o peso que às vezes querer tanto causa nessa vida. e eu sei, eu queria sim um abraço como aquele. por isso saí com um sorriso no rosto, feliz por eles. aquele abraço já não devia estar aguentando pra ser dado. ufa, me aliviei por eles. quando atravesso a rua um outro casal. sem que eu me desse conta, de repente estava na frente de um jovem casal brigando. o garoto rasgava um papel com fúria. uma carta, um poema? vai saber. aquilo também foi pra mim um gesto que me aliviou. porque às vezes tudo o que a gente quer é rasgar com toda a nossa vontade o que já não faz mais sentido. e eu continuei andando a pensar o que não faz mais sentido na minha vida. e percebi o quanto, nessa hora, difícil é discernir desejo, de intuição, de cultura, de autonomia. mas é preciso fazer esse exercício. e, assim, ia construindo o texto, andando rápido pra chegar logo em casa. nessa febre de andar rápido, passa ao meu lado um garoto num skate. usava blusa verde, all star vermelho e tinha cabelos negros quase até a cintura. me chamou atenção de cara. foi engraçado porque lembrei do Shiryu, meu cavaleiro do zodíaco preferido. a associação foi imediata. Cavaleiros do Zodíaco marcou minha adolescência (tenho todos os episódios no meu computador, e ainda salvos no HD externo), e lembro que imaginava que se o Shiryu fosse de verdade ele seria muito gostoso. pois aconteceu do menino dar uma tropeçada no skate e o seu skate cair na minha frente. e ele veio pegar e me olhou com profundos olhos negros que me fizeram tremer na base. como era bonito a criatura! mas ele só olhou, pegou o skate, não disse nada e foi embora. tanta coisa me distraiu num trajeto que não durou nem 10 minutos, mas elas na verdade alimentaram o meu texto e minha reflexão sobre cultura. assim, pensando nos casais, nos meus inventários, no garoto do skate, no Zizek, no Deleuze e nos desejos todos desse momento da minha vida me pergunto: mas porque um dia da cultura? o que isso quer dizer? porque eu, como produtora cultural, pensadora que faço questão de ser, poeta, professora, palestrante (pode?) não consigo simplesmente escrever nada nesse dia sobre identidade, política, economia, do in antropológico, lei Rouanet e nem mesmo sobre contracultura e aquela alegria toda hippie? nem sobre o meu trabalho?
então eu acho que estou chegando àquele estágio tal de imersão numa questão que tudo parece ser uma coisa só. tântrico isso (talvez porque eu esteja estudando o tantra na sua radicalidade imanente?). e quando começo a pensar sobre cultura não consigo esquecer a natureza. lembro que estou devendo minha dissertação pra um mundo de gente que prometi enviar, e que preciso fazer isso. lá eu falo de cultura até dizer chega, e da natureza. cultura talvez seja a palavra mais presente na minha vida. porque briguei com ela durante muito tempo. a cultura nos afasta (pense só…). mas aí eu entendi que nós, cada um de nós, é que fazemos a cultura, e que ela pode ser o que quisermos. 
a segunda palavra mais presente na minha vida deve ser paixão. dizer que a cultura pode ser o que a gente quiser é uma fala apaixonada! e pra mim, paixão é natureza. eu escrevo, e isso é cultura. mas escrevo porque estou apaixonada por uma ideia, um texto, uma vontade de expor tudo isso. isso é natureza. natureza é aquilo que é espontâneo? se for assim, eu tenho sido mais natureza que cultura. a tal ponto de me contradizer o tempo inteiro, de escrever poemas chamados de últimos mas que não são nem os primeiros. ao ponto de viver o conflito “expor ou não expor”, eis a questão. mas sei que meu combustível tem sido a paixão porque estou despudorada. perdi o medo de me expor. posso não me expor por outros motivos mais nobres mas, por medo, de forma alguma. quando fiz uma consulta ayurvédica há um tempo atrás a terapeuta descobriu meus doshas (constituições de todo o universo) dominantes: pitta-vata, com desequilíbrio de vata. isso quer dizer o seguinte, em linhas bem gerais e de forma bastante ordinária. pitta é regido pelo fogo. quem tem predomínio do dosha pitta é movido pela paixão. vata é regido pelo ar. quem tem predomínio do dosha vata gosta de diversidade, pensa muito e quer tudo muito. se está desequilibrado, o que é o meu caso, a pessoa sofre com insônia, dispersão e fica literalmente voando por aí. que combinação, pensei, quando ela me falou. e me passou uma dieta que acalma meu vata e regula meu pitta. mas acho que estou é estimulando pitta sem acalmar vata. há tempos que não me lembro de estar tão apaixonada. tanto que preciso ter o cuidado de não me sabotar em nome daquilo que me arrasta. não falo apenas de estar apaixonada por alguém. falo da paixão de estar vivo, de se descobrir potente, de mudar tudo sem o menor medo do que estar por vir. de fazer revoluções a cada minuto. faz uns quatro meses que minha vida deu uma guinada. foi como se de repente tudo, absolutamente tudo, precisasse ser revisto. e foi doloroso. mas foi necessário. ainda sinto os efeitos. foi como uma tsunami. os estragos estão por toda parte. mas as casas começam a se reerguer. nunca escrevi tanto. escrevi em quatro meses mais do que escrevi no ano passado inteiro. ou não teria conseguido lidar com tanta mudança que eu mesma provoquei, até certo ponto, o que torna tudo mais difícil. mas era preciso. era preciso para que eu não sabotasse o meu desejo. e o desejo só apontava pra um lado: mudança, porque a mudança era o desejo. minha bússola é como aquela do Jack Sparrow, aponta pro desejo. onde fica o norte e onde fica o sul não importa. eles se reconfiguram o tempo inteiro. fico procurando uma imagem que possa sintetizar esse momento de tanta migração. ainda não achei. o mais perto que cheguei, tatuei no meu corpo no mês de agosto. uma gaiola aberta com um pássaro voando. para onde ele está indo não faço ideia. só sei que ele precisa ir. cultura? natureza? só voando longe pra saber…
e foi movida por paixão que eu havia resolvido fazer uma viagem nessas breves férias. pensei nela o dia todo também. porque amanhã, se isso tivesse vingado, eu estaria embarcando pra Patagônia ou pra Bolívia. passei noites pesquisando os lugares, preços de passagem, esperando encontrar passagens mais baratas, vendo albergues, pensando na roupa de frio, e em como o gelo ou os desertos me colocariam num contato profundo comigo mesma. mas, de repente, uma surpresa. mudança de casa. e foi preciso aceitá-la. e se tornou quase insuportável a ideia de viajar sabendo que eu chegaria e voltaria pra minha casa solitária em Niterói, como uma pendência mal resolvida. era como viajar pra esquecer um problema e voltar e encontrar tudo de novo. faltava ainda essa mudança, entendi. porque a casa como existe hoje, nessa cidade, já não faz mais sentido. venho pra casa já em tom de despedida. chego em Niterói já na ânsia dos dias em que a barca será substituída pelo metrô. confesso que isso me angustia um pouco. perderei o mais belo de morar em Niterói, a travessia quase diária pelo mar, para passar por um buraco onde as pessoas desfilam suas caras de cansaço. mas tudo bem, buscarei a poesia do subterrâneo. questão de sobrevivência, questão de vida. Niterói se tornou um marasmo. mas, mais que isso, eu já não me sinto mais parte de Niterói. isso já faz um tempo, e já há algum tempo venho esboçando a mudança para o Rio. mas eu precisava de uma chacoalhada pra isso. e ela aconteceu. vamos eu e dois amigos. três pessoas sedentas por mais movimento. vamos fazer saraus. vamos viver no caos. porque é isso que agora queremos. e se tornou também necessário economizar, aprender a viver com menos. eu que deixarei um emprego no próximo mês… para ter mais tempo pro prioritário, para ser mais leve, para ter mais arte e para viajar mais. e organizar uma pequena volta ao mundo. ir à Índia, finalmente, depois de tantos anos praticando yoga, estudando aquela loucura de país que me atrai e provavelmente vai me deslocar de forma assustadora. tudo isso é cultura? sim, acho que tudo isso é cultura. esse deslocamento sem dúvida será um choque cultural. e falar de mim é falar da cultura. cada um que fala de si fala tanto da cultura quanto da natureza. sendo assim, acho que falei da cultura nesse dia da cultura. eu que tenho lido os poemas eróticos e de amor de Hilda Hilst e escrito também alguns pra mim, e fico pensando em como Foucault foi feliz ao escrever a história da sexualidade como uma história da própria construção do ser humano como sujeito. porque o sexo nos desafia, ao estar na fronteira da cultura e da natureza.
e agora chove lá fora. e isso não é cultura. muito embora meu pai tenha me dito que hoje existem tecnologias de manipulação localizada do clima. medo disso… medo é cultura e natureza. eu sinto uma melancolia gostosa das noites de chuva. bom, isso é cultura? na verdade, eu percebo, que se é cultura ou natureza não interessa, gosto mesmo é de estar nas fronteiras. prefiro a exclamação do tudo pode ser! porque, em suma, tudo pode ser o que quisermos, do jeito que quisermos. basta termos isso no horizonte e disputaremos pelo nosso espaço-tempo. isso é cultura. isso é natureza. isso é ser humano. isso é beleza. 

em Niterói, 05 de novembro de 2012, finalizado às 23h05

Ensaio sobre a nudez

a poesia, hoje, cedeu lugar à prosa.

O que ainda não é, só se faz sob o sol quando abrimos mão da obediência.  Não a obediência em relação ao outro, mas a que impomos a nós mesmos ou a de outros que introjetamos como se fosse nossa.
(Nilton Bonder, A Alma Imoral)

Hoje, domingo, acordei com um pressentimento. Saí de casa e voltei com uma missão. Era preciso escrever. A febre da escrita passou o dia em suspensão. Ela não sabia muito bem o que seria escrito. E, como febre, assim permaneceu. Mas agora as palavras começam a delinear um cenário. E sabe que, pra que o texto nasça, é preciso um ato: despir-me. Escrevi há alguns domingos atrás que domingo é o dia do possível. E resolvi fazer de todo domingo um dia especial. Religiosamente, para começar a semana com a certeza de que a vida, ainda que não seja escolha, não é senão o que acontece quando damos atenção a nós mesmos. Como muitos de meus dias, este não foi, em parte, como eu queria. Mas quantas vezes não é. Imagino que para todos nós seja assim. Porque criamos expectativas a partir de nossos desejos, e a vida quase sempre dá rasteira, porque é o puro e simples espaço da impermanência e da fortuna, em equilíbrio com o que fazemos dela. Hoje começa o ano novo judaico. Na relação íntima que cada um de nós, ocidentais, temos com o judaísmo, arrisco afirmar: hoje começa, para mim, um novo ano.
O dia não foi o que desejei? Melhor assim. Ele foi inteiro para mim. Ele foi uma orgia minha comigo mesma. Ele foi a celebração da novidade. Eu não estive só o tempo todo. Porém, no íntimo, sim. Eu estive naquela profunda e completa solidão de quem viveu o que viveu e sabe o que viveu e vive. Aquela solidão de que só você conhece a sua própria experiência, suas próprias limitações e seus desejos mais profundos. Então, não hesito em sair só. Arrisquei ir só, como tenho arriscado sempre. E neste ir só a gente esbarra em pares. A gente reconhece a solidão, da qual todos compartilhamos, naqueles que arriscam não escondê-la. Duas obras de arte me marcaram neste dia. Neste domingo de um fim de semana tão marcado pela arte. Assisti a um filme e a uma peça. Intocáveis e A Alma Imoral. Não me parece que foi um acaso. De alguma forma eu buscava alguma coisa com a qual pudesse compactuar na minha solidão e nela me confortar ao saber ser, a solidão, uma multidão. Fui ao filme só, – ainda que tenha feito um convite -, movida pelo desejo de ver com os meus olhos e o meu coração o que todos, afinal, comentavam tanto. E lá estava eu, num cinema lotado, às três da tarde, com a sensação de que a vida era estranha, porque coisas estranhas haviam se passado no caminho, e porque ela não é o que a gente quer (como uma criança birrenta), simplesmente. Quando o filme acabou, eu não sabia como reagir. Estava nua. As pessoas levantavam e saíam, algumas comentavam como era incrível, que bela estética, que história sensível. Eu não sabia o que fazer. Tinha vontade de chorar. Mas não chorava. Talvez por medo ou vergonha, porque eu sabia que o choro não seria comedido. Eu tremia. Eu queria dançar. Eu queria cometer uma loucura. Saí. Corri até o banheiro e chorei. Chorei. E como chorei… Eu não sabia como reagir e chorei. Chorava sem explicação (isso que não quero mais, explicação). Era tudo tão lindo e tão potente, e se misturava com tristeza, estagnação, espera, dor, culpa. Tudo ao mesmo tempo. Era lindo e era doloroso. E entendi que estranha não era a melhor palavra para definir a vida, mas sim diferente. Lembrei-me de quando ouvi isso (“não está estranho, está diferente”) e como cabia tão bem àquela hora. Tudo estava diferente, e não estranho, porque nada é estranho à vida, especialmente, os acontecimentos. A vida sempre se revela diferente do que nos acostumamos… 
Mas ainda estava por vir o ápice da história, seu fim, que viria a ser, como todo fim, apenas mais um recomeço. Eu fui assistir A Alma Imoral. Encontrei dois amigos, que lá comigo estiveram o tempo todo. Um deles, um par de muitos anos. Tantos anos, que se torna impossível traduzir o que é nossa passagem pelo mundo e o que é o nosso amor. O outro deles, ela, alguém que desejei tanto que nunca chegasse perto e por quem hoje agradeço aos céus por amar, e por amar a sua coragem de amar. Conversei também com umas pessoas na fila, ávidas por essa imoralidade como eu estava. E encontrei um amigo-palhaço, corajoso de se lançar, a quem abracei profundamente por alguns segundos mesmo tendo passado tanto tempo da nossa intimidade, reconhecendo nele um par, uma alma flutuante, dessas inquietas, que querem mudar o mundo e sabem que se começa mudando a si mesma. E o que é essa mudança? Primeiro, buscar-se, sem medo do medo, sem medo do que possa encontrar. 
Amigos de muito tempo, outros de tão pouco, amores eternos, outros que não se sabe… E eis que vem o tempo. Tenho pensado muito sobre o tempo e o quanto ele é relativo de fato. O tempo longo pode ser tão potente quanto o tempo curto. Mas cada um tem a sua potência. A tradição nos faz acreditar que o tempo longo é o único que deve ser respeitado. E ignora o tempo curto, o instante, o inesperado. Tanto ignora que, quando o acontecimento rompe com todo o nosso conforto, a gente se desestabiliza e não consegue esquecê-lo. Se o acontecimento nos causa dor, passamos a odiá-lo. Se causa alegria, passamos a vangloriá-lo. De toda forma, com dor ou alegria, no momento do acontecimento o tempo se suspende. Chronos se ausenta, porque Kairós vem nos dizer que também ele reina sobre a Terra. A suspensão do tempo é aquele estado em que, ou estamos em profundo horror ou em profundo prazer que esquecemos tudo ao nosso redor e o tempo parece não existir, e é puro presente. Puro estado do renascimento, puro estado da iluminação. Porém, fracos, depois que se torna passado, desejamos voltar no tempo para evitá-lo, se em estado de horror; ou, se estamos em profundo prazer, desejamos voltar no tempo para revivê-lo. Das duas formas, é apego. 
Alguns dias atrás revi “O pequeno Buda”, e reli o Dharma. Depois de alguns anos retorno a essa história maravilhosa do príncipe Sidarta e sua transformação em Buda. A vida me colocou novamente neste caminho, que eu não solicitei. Ele veio, e só me restou aceitá-lo. Fui a um templo de budismo tibetano. Falei de medo, crise e dor. Meditei em silêncio. Ah, o momento em que Sidarta descobre o sofrimento… Não há momento mais belo na história deste que viria a ser um iluminado. Sempre choro nessa hora, compartilhando com aquela alma imoral a alegria de encontrar, finalmente, o caminho da luz. A descoberta do sofrimento é a descoberta do caminho para a libertação. E ele encontra, tendo a terra como testemunha.
Pois quando o espetáculo começa, eis que lá está o budismo. Clarice Niskier nos conta sobre, sem querer, ter se tornado uma judia-budista. E nos conduz, assim, a uma jornada pela nossa imoralidade. Nada mais belo, nada mais providencial. Era como se cada palavra me dissesse o que eu já sabia. Mas isso revelava ao mesmo tempo a impotência. Saber. De que adianta saber? O que nos “adianta” é a coragem de, sabendo, agir. Mas isso me traz com ainda mais intensidade o que, além do tempo, é minha outra grande questão. Estrutura. Não temos estrutura para lidar com a vida como ela é. Ninguém nos ensinou que a vida era caos. Aprendemos a obedecer a ordem. E quando descobrimos que não controlamos a vida, corremos sérios riscos de entrarmos em estado de choque.
Nossa cultura não nos cria para sermos grandes, potentes e acreditarmos em nós mesmos. Mas a vida ignora a cultura. O desejo ignora a cultura. Porque a transgressão também compõe a realidade. A moral não é soberana. Aliás, nós somos transgressão. É isto que faz o humano ser humano. Clarice nos conta, como no livro de Bonder, que o mar vermelho não se abre antes para que os hebreus passem. Moisés encoraja-os a marcharem, aí sim, Deus, comovido com tamanha coragem, abre caminho no mar para que eles passem, quando já estão quase se afogando. Complementando, assim, essa passagem, ela então conta que certa vez, conversando com o rabino Bonder, comenta que se, quando criança, tivesse sido ensinada a marchar antes do mar abrir, não teria esperado tanto tempo pra fazer alguma coisa. Ao que o rabino lhe diz que não é preciso ensinar isso. As crianças não precisam ser ensinadas a desobedecer. Elas já nascem sabendo. Eis o retorno ao início deste texto, à frase retirada do livro. Se o corpo passou a ser o lugar da moral, é preciso que resgatemos o imoral da nossa alma. Porque a alma humana é essencialmente imoral. É na transgressão que a vida se mantém, porque se ela fosse sempre moral, acabaria. E hoje, num mundo onde até a transgressão parece se tornar uma moral, corremos riscos seríssimos de desaparecermos como espécie. Como singularidades então, nem se fala. A cada dia vejo morrer muitos de nós, humanos. Devagar. Nas filas, nas obrigações, afogados em suas máscaras, diluídos no passado ou num futuro imaginado, tentando cumprir o que esperam de nós. Somos um conglomerado de medrosos. De fracos cheios de si. Não temos estrutura. Nenhuma. Crescemos cheios de certezas, e de repente vem a vida e diz que as nossas certezas não são absolutamente nada no tempo do universo. E o que fazemos nessa hora? Tudo aquilo que já cansamos de ver, de ouvir, de apreciar (!!!), de desejar. somos ódio, medo, ciúme, inveja, orgulho. Tudo isso. Tudo que faz parte do ser humano, mas que é fruto da moral. A alma imoral, nessa hora, coitada, se dilui. Some. Deixamos de nos ver como toda aquela potência desobediente e nos tornamos somente os cordeiros da moral. Não temos estrutura porque crescemos acreditando que a vida está sob nosso controle, talvez porque quiséssemos ser Deus. Mas também aí a gente se engana, porque Deus é tão impermanente, tão contraditório, tão brincalhão. O universo é caos. A ordem é o que inventamos pra lidar com isso de uma forma mais tranquila. O problema da nossa cultura ocidental é que resolvemos, sei lá por quê, dar mais peso pra um dos lados. E aí começou a confusão. Por isso, perder a noção, lançar-se ao novo, passou a ser sinônimo de ser filho da puta. É por isso que fico tentada a celebrar os filhos da puta! Porque são filhos do desconhecido, da transgressão, da desobediência. Mas não confundam. Não façam isso. Não falo dos que querem parecer rebeldes. O rebelde simplesmente é rebelde porque não pode negá-lo. Ele é nômade. Ele é errante. Ele não é rebelde. Rebelde foi o nome dado pela moral. Ele é aquele que não pode negar a si mesmo, e nada mais. Nenhuma outra descrição lhe cabe.
Então, se hoje começa um novo ano, esse ano envolve um esforço de transgressão. O medo precisa dar lugar à loucura. Compartilho com Osho de que enlouquecer de vez em quando faz parte de uma vida equilibrada. Se não o faço, é por medo. O medo que todos temos, e que tantas vezes são máscaras, são muros que erguemos pra nos esconder. Medo: nesse momento, você não é bem-vindo. Deixe a dor se instaurar. A dor de nascer. De sair de um lugar estreito para um lugar amplo. Bonder também nos diz: “quanto esforço fazemos em direção ao nada”. E nos conta parábolas de homens santos que olhavam com pesar aqueles que estudavam por obrigação e sorriam para os que, ao invés de estudar, dormiam, entregues ao sono sincero. Preciso ser sincera com o meu desejo. Desejo como potência, como abertura, como errância. Porque a gente confunde esse desejo, essa errância, com a cultura. A gente confunde. E fica lá, confortável, em nosso lugar de confusão, culpando o mundo por nossa fraqueza. Sair do lugar estreito para o lugar amplo é extremamente doloroso, mas é mágico. Se alguém lhe disse alguma vez que não seria desse jeito, lhe enganou. E é aí que percebemos a falta de estrutura. Buscamos o mundo ideal do lado de fora, no outro, no futuro que nunca chega, nos paraísos artificiais, no que já passou. O mundo “ideal” está dentro da gente. E essa dor, é a dor que temos que enfrentar para sermos tudo o que podemos ser. Nada marcou mais a mim neste espetáculo que ouvir: “aquele que não faz uso de todo o potencial de sua vida, de alguma maneira diminui o potencial de todos os demais”. Fiquei sem ar esta hora…
No livro, a frase continua da seguinte forma: “se fôssemos todos mais corajosos e temêssemos menos a possibilidade de sermos perversos, este seria um mundo de menos interdições desnecessárias e de melhor qualidade”.
Então, não quero mais a tolice do medo, e nem o medo de ser perversa. Ao menos isso é um passo e tanto. E hoje já rio de quem me diz que não tem medos. Afinal, quem de nós é iluminado o suficiente pra não ter medos? Onde estão os nossos budas? O medo é a gaiola que aprisiona a nossa condição de livres. Livres de verdade, e não livres como o rebelde do filme americano. Livres como aqueles todos que não cabem em classificações. Somos oceano. Somos algo de tal profundidade e densidade que assusta. Mas só assusta porque criamos uma série de certos e de errados. Mas às vezes o errado é o certo. Como, às vezes, o certo é o certo, o errado, o errado, e o certo é o errado. Sem hierarquia, sem prioridade. A vida é um constante ajuste, artisticamente um equilíbrio entre o bom e o correto, porque quase sempre eles não se encontram. E não podemos, em nome da justiça, essa que só agora entendo, deixar que a moral seja soberana. Precisamos sempre cultivar o jardim da desobediência, especialmente a de nossas gaiolas. Precisamos abrir as gaiolas. E nos deixar voar. Nesse momento, eu percebo que tenho dado muita atenção à moral. Mas, nossa! Como fui desobediente… Como, sem saber muito bem, deixei que a minha alma imoral fosse tão ela. Eu fui o que eu tive de ser. Eu fui os desejos todos que tive de ser. Mas depois de tanto acontecimento, agora me vejo ouvindo demais a moral. Me vejo aquela que tem medo de mais rupturas, especialmente a maior de todas elas: com a imagem que eu construí de mim mesma e que criou uma personagem. Dói. Dói despir-me desse jeito. Mas é preciso enfrentar que talvez, e muito provavelmente, eu seja tão diferente do que fui que nem sei mais como sou. Eu sou um bebê nascendo. E a memória do corpo não nega. Quando a gente sai de um lugar estreito para um lugar amplo, a gente sofre. Mas, não esqueçamos. O sofrimento é a chance que a vida nos oferece de sermos cada vez mais potentes. E quanto mais a gente amplia, mas sentimos necessidade de ampliar. Por isso, medo é palavra que deve estar presente sem ser soberana. Porque a vida sempre triunfa, e o caos, já nos dizem físicos e místicos faz tempo, é o padrão. E se a vida tiver que extinguir toda a espécie humana para triunfar, ela vai fazer. Mas duvido muito que isso aconteça. Somos grandes, eu sei. Quanto mais a gente amplia, mais queremos ampliar. Basta a coragem de dar passos para a frente e esquecer que os nossos medos tem nomes. Às vezes os damos nomes de coisas que nos parecem eternas e nunca superáveis. Culpa, por exemplo. Às vezes o nome é o do pai, da mãe, do chefe, do marido, da namorada. Às vezes o nome é ódio, às vezes é um palavrão. Mas mesmo que tenha nome, ele é só nosso. Não tem o nome de nada e de ninguém. E, por ser nosso, é que podemos com ele conversar para negociar seu lugar de soberania. Mas pra isso, meu bem, o esforço às vezes é muito grande.
Então hoje, eu, uma mulher, ser este que nunca deveria ter esquecido que é a semente da transgressão, que inclusive é quem planta no homem a desobediência, resolvi parar de ouvir as muitas asneiras que me dizem e guardar só aquelas falas potentes. Resolvi que preciso de mais ferramentas pra ampliar o que preciso ampliar. E que preciso me expressar do jeito que mais sei. Que meu corpo e minha alma são templos. Templos de um amor tão grande, que é capaz de se plasmar no todo e de superar o medo pra se mostrar. Busco as ferramentas, busco as estruturas. Ao menos, não tenho medo de buscá-las. Eu sou uma mulher apaixonada! Pela vida, pelo humano, por si mesma!
Tudo isto me traz uma lembrança. Há sete anos atrás ganhei um DVD de presente, e nele veio escrito como dedicatória: “com o desejo de que sejas o profeta de sua própria história”. Fui profundamente tocada pelo filme e pelo livro Lavoura Arcaica, que hoje vejo como nada mais que uma história que fala sobre a tradição e a traição. Clarice, no início da peça, nos convida a um mergulho, desta forma absurda: “não há tradição sem traição, assim como não há traição sem tradição”. Encerro, então, com uma reflexão sobre o tempo, de Lavoura Arcaica, porque me volta à memória sua trindade: o pai, o tempo longo, André, o tempo curto que se assusta, e Ana, nômade que desafia qualquer noção de temporalidade. O pai, ao dizer as palavras que seguem, dá a elas um peso que encurva nossos ombros. Como carregamos pesos sobre os ombros… André, se lesse o texto, o leria com a euforia do descobridor de novos mundos, mas que, no entanto, teme ao se deparar com esse novo, e escuta, temeroso, o pai. O pai pondera a fala, André fala demais. Ana simplesmente dança e não fala sequer uma palavra, ignorando qualquer reflexão sobre o tempo. Porque ela não o conhece, ela é a pura espontaneidade, a pura existência da natureza. “Porque a natureza mexe em time que está ganhando”. É isso que precisamos aprender, é isso que preciso aprender. A dançar. Sempre. E cada vez mais. Dancemos, como Shiva, como Dionísio, convidando as soberanias de Vishnu e Apolo a se curvarem diante do equilíbrio. Para uma vida equilibrada, é preciso criar o espaço da loucura.
“O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Embora, inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento. Sem medida que eu conheça, o tempo é contudo nosso bem de maior grandeza. Não tem começo, não tem fim. Rico não é o homem que coleciona e se pesa num amontoado de moedas, nem aquele devasso que estende as mãos e braços em terras largas. Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde a conviver, com o tempo, aproximando-se dele com ternura. Não se rebelando contra o seu curso. Brindando antes com sabedoria para receber dele os favores e não sua ira. O equilíbrio da vida está essencialmente neste bem supremo. E quem souber com acerto a quantidade de vagar com a de espera que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco de buscar por elas e defrontar-se com o que não é. Pois só a justa medida do tempo, dá a justa natureza das coisas”.

Pílulas

1. Em tempos de sociedade de controle morar num prédio sem câmeras nos elevadores, corredores e garagem é um luxo contemporâneo pra quem não sorri ao ser vigiado… Já há câmeras demais no mundo, inclusive nas bolsas e bolsos de todo mundo que, não contente em utilizar seus celulares em nome da proteção e do bem querer daqueles que amam, ainda podem utilizá-los para o disque denúncia da vida alheia.

2. Manoel Carlos, poupe-nos de suas lições e manuais de como viver a vida!

3. Serra na capa da Veja sorrindo? Alguém já viu o Serra sorrir antes? Quanto custa esse sorriso de Monalisa?

4. Escrevo tão pouco ao papel hoje que minha letra leva um tempo pra se encontrar…

5. A questão não me parece ser produzir e criar, mas produzir e criar com consistência.

6. Nas décadas de 70 e 80 Caetano Veloso, Sidney Magal, Ney Matogroso, Rita Lee, cada um com a sua genial singularidade, frequentavam o programa dos Trapalhões. Hoje a Turma do Didi recebe os astros mais singulares e inteligentes da nossa televisão: os ex-BBB´s… Uh, uh, uh, que beleza! Eu tento não ser nostálgica, mas no caso da TV parece uma tarefa árdua.

7. As tecnologias de visibilidade são perigosíssimas para quem tem o que dizer ao mundo. Fazem uma massagem no ego booooooaaaa…

8. O comercial sobre os 50 anos de Brasília merece o prêmio de piada do ano! E um prêmio especial deveria ser concedido a todos os moradores das classes média e alta que andam por lá produzindo abaixo-assinados para que escolas públicas não sejam construídas ao lado de suas singelas casinhas, e que as existentes sejam fechadas. Viva a diversidade brasileira! O gente bonita, nada preconceituosa, nada racista, nada machista, nada moralista… Um beijo na sua boca cheia de dentes!

9. Acho que estou enfastiada e vou dormir. Descobri com Foucault que sou um pouco romana,já que os romanos exercitavam a “escritura de si”… E ela cansa.

Rotina

Existe poesia na rotina? digam aí. eu só vejo poesia!

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Toca o despertador. Acordo. Não entendo o que está acontecendo. Disparo o soneca do celular. Ontem dormi um pouco tarde. Foi inevitável. Senti o cheiro da pele e do cabelo, pé no pé, chuvinha lá fora, o calor do corpo dele do meu lado. Gozei e perdi o sono. Falamos da vida, tivemos idéias esquisitas, rimos muito disso. Ele dormiu, eu fiquei pensando em qualquer coisa, peguei um livro, Pessoa, Saramago, Tantra, Eram os Deuses Astronautas… tanto faz. Era um livro que eu gostava. Dormi. O soneca dispara a cada cinco minutos. Não consigo configurar pra dez. Levanto e vou fazer xixi. Vejo minhas olheiras no espelho. Vou ao quarto dar um beijo no rosto dele enquanto ainda dorme e fecho a porta. Nado, faço yoga. Volto. Fazemos café, vitamina com frutas, quinua, linhaça e leite de soja. A gente se beija, se abraça e come pão integral com manteiga. Vejo o que se passa na TV. Notícias de furacões, terremotos, maremotos, Mais Você, Bom Dia Brasil, agenda cultural. Fico em silêncio, acho que estou de mau humor sem motivo. Junto tudo na bolsa: o celular cheio de funções que ainda não sei usar, uma agenda cheia de papel e contas pra pagar, fones pra ouvir música no trânsito, livro pra ler na barca, bolsinha de moedas, carteira gorda de cartões de visita, cartão da Unimed, documentos, comprovantes do Visa… e vazia de dinheiro. A bolsa é de pano e fica pesada. Penso em levar a mochila. Não estou afim. Entra tudo na bolsa. Escovo os dentes, vou ao banheiro ficar mais leve e tomo banho com sabonete de mate verde pra me sentir mais perto do mato. Passo hidrante de guaraná. Ainda não uso creme anti-idade, se é que um dia vou usá-los. Escolho a roupa. Hoje é dia de trabalhar. Salto alto ou salto baixo? Vou de all star de couro e casaco meio blazer, calça apertada, brinco grande, lenço colorido no pescoço. Cabelos soltos até secar. Saio correndo, ando até as barcas porque preciso economizar. Os ônibus diretos têm demorado. A barca está saindo. Porque isso sempre acontece? Saio correndo com o fone quase caindo, livro em uma mão, guarda-chuva verde na outra. Consigo passar na roleta a tempo. Está frio mas estou suando. A barca está cheia, consigo sentar e ler um pouco mais. Chego na Praça XV. Preciso comprar um presente de aniversário para um amigo. Vou até a livraria. Escolho e pago. Saio. Corro pra pegar outro ônibus. No ponto uma criança pede dinheiro. Todo mundo desvia dela e ninguém olha no olho da criaturinha. Dou uma moeda para poder comer ou para o seu ópio diário. Sei que ela precisa mais que eu dessa moeda. Pego o ônibus, está cheio. Minha irmã manda uma mensagem e diz que pode passar lá em casa na semana que vem. Um ambulante vende canetas a um real. É bom poder comprar canetas a um real. Um pouco de trânsito, uma pessoa em cada carro. Quem anda de carro não pode comprar canetas a um real… e ainda perde as pérolas que ouvimos por aí. O ônibus dá um freiadão, todo mundo reclama. Os carros todos buzinam. Um senhor bêbado grita pela janela: passa por cima mané! Uma patricinha não dá sinal direito e xinga o motorista porque ele não pára no ponto. Enfim, eu desço do ônibus. Atravesso a rua, depois a passagem subterrânea, atravesso um shopping, mais uma rua e finalmente chego. Subo as escadarias do prédio neoclássico. Chego à sala. Ainda vazia. Encho uma garrafa de água pra beber. Aproveito para me concentrar no texto e no orçamento que tenho que fazer. Antes vejo os emails. Há mensagens da equipe do projeto que estou trabalhando pela empresa. Há trocas de emails efusivos sobre a nova proposta por aqui, há um recado da pós dizendo quando as aulas começam. Há muitos emails da banda pra gente decidir a ordem das músicas do show, o que gravar, que dia fotografar, que músicas eu canto melhor. Há recados de amigos com saudades, de alunos ainda sem nota, de outros que querem fazer projetos. E um monte de piada, powerpoints moralistas, petições, indicações de vídeo do youtube, publicidade, spam. Vejo o que é mais importante, outros guardo para a noite ou o fim de semana. Vejo ainda rapidamente as notícias. Nada de novo. Trabalho. Bate a fome mas tenho muito a fazer. Almoço tarde. Como arroz integral, feijão, legumes, bebo suco de laranja. Dá vontade de um doce. Hoje não. Volto e todos estão lá. A concentração vai para o espaço. É a hora da produção e de reivindicações. Muitas vozes, o telefone não pára de tocar. Na rua, buzinas. Dentro, começa uma reunião. Muitas vozes… Eu falo, tu falas, ele fala. É preciso fazer um cronograma. O tempo passa, preciso ir. Olho para a tela do computador e não vejo mais nada. Estou cansada. A cabeça dá um nó. Um amigo liga me chamando pra sair. Hoje é impossível, eu falo. Mas a gente marca na semana que vem uma catarse. Saio e espero o ônibus direto. Ele demora e passa lotado. Fico puta. Penso em reclamar. Mas com quem reclamar da máfia? Decido ir de barca. Pego um ônibus até lá. De novo a barca está saindo. Corro. Consigo pegar mas está lotada. Encontro um lugar. Minha mãe me liga dizendo que sumi. Digo que estou fazendo muita coisa e o tempo tá curto. Um dia trabalho, no outro também, um dia ensaio, no outro limpo a casa, faço compras. E é preciso namorar, ver os amigos, beber cerveja, curtir um som, um filme, uma trilha, uma praia. É preciso criar. Penso em tudo isso. Penso nos lugares que quero conhecer, na próxima viagem, na música que não consigo acertar, naquela que ficou linda, nos encontros, nos desencontros, no presente, no passado, no futuro, nos cogumelos que quero fazer no fim de semana, e no vinho para acompanhar. Penso nos livros que preciso ler, na frase do Nietzsche, no lixo da Baía de Guanabara. A barriga dá sinal de vida. Tenho fome. Esqueci de trazer meus biscoitos integrais. Ouço uma música. A barca chega, eu pego um ônibus porque estou cansada e não quero andar. Mas também é um pouco tarde. Em casa, enfim. Me dá vontade de comer pão com azeite e sal e beber suco. Faço isso. Como ainda um iogurte natural. Vou organizar a agenda e trabalho no mapa de palco da banda. Entro no orkut e vejo fotos engraçadas. Alguém que não conheço quer ser meu amigo. Excluo. Leio. Ouço música. Ligo para matar as saudades dele. Ligo a TV. Desligo a TV. Escrevo. Bebo chá de hortelã. Ligo para uma amiga para combinar o café e a conversa de trabalho regada a fofoca. Tomo passiflora porque tenho tido insônia. Procuro algo no Natureza Divina para expandir a consciência e minha paciência se esgota na Internet. Penso. Penso. Penso. E canso. Vou dormir. Penso que amanhã é sexta. E que sábado tem ensaio e depois tem festa. Penso que tenho que visitar meus pais pra matar as saudades. Lembro que tenho roupa pra lavar e a perna pra depilar. Penso que podia ficar frio mas fazer sol. Penso em como arrumar dinheiro pra fazer meu curso de mergulho e para ir para Portugal. Quase esqueço do despertador. Aciono. Penso em como sou feliz, penso em como sou confusa. Penso que daqui a pouco vai estrear um filme que estou louca pra ver. Penso que quero silêncio. Há carros passando na rua. Ligo o ventilador. Medito. E durmo. Amanhã o dia é outro. Completamente igual e completamente diferente.

Bio e micropolíticas

Nesses últimos dias discuti com meus alunos a idéia de biopolítica como a lógica do estado, de que forma aquilo que Guattari chama de produção de subjetividade capitalística atualiza a biopolítica hoje, e como micropolíticas podem ser práticas efetivas de nos colocarmos como criadores e protagonistas, invertendo a lógica de que o macro (Estado, leis, corporações etc) é a voz que define as necessidades e, assim, ações de intervenção, sejam elas no âmbito social, educacional, da saúde, dos julgamentos etc. Cada turma reagiu de uma forma e enriqueceu a discussão. Porém nenhuma passou sem reagir, o que foi ótimo, pois a aula fica mais intensa e interessante para os dois lados. Muitos questionamentos surgiram na minha cabeça, inclusive de um aluno que questionou até que ponto o meu vegetarianismo não foi capturado por essa subjetividade dominante e se coloca reproduzindo velhas hierarquias e vícios que estão enraizados na nossa sociedade. Algo a se pensar. Ele tem razão ao afirmar que essa captura é possível; a própria categoria “vegetariano” é definida no âmbito das instituições, em relação com elas, inserindo-se como mais um nicho de mercado e muitas vezes não como uma postura ético-estética diante do mundo. E é assim com todas as categorias que são definidas por essa biopolítica para enquadrar os que se encontram fora do ideal de normalidade com o qual ela opera: feministas, gays, negros, criminosos, loucos etc etc etc. Uma reflexão boa seria pensarmos até que ponto os movimentos de afirmação ou defesa dessas categorias não estão reproduzindo lógicas hierárquicas, exclusões e segregações? De que forma operarmos com essas categorias para afirmar outros modos de vida possíveis que não o da subjetividade dominante sem nos deixar levar pela estigmatização, sem nos fecharmos cada vez mais nos guetos identitários que servem muito bem como massa de manobra, como rebanhos reprodutores de certos discursos? A reflexão que tenho feito tb com eles é: não há como trabalharmos com cultura sem considerar quais as implicações políticas (no sentido amplo de política) que a idéia de que cultura que trazemos com a gente tem. Sem considerarmos todos os discursos facistas (tanto de estados facistas quanto os pequenos facismos que vivenciamos muitas vezes no cotidiano, com a família, o amigo, as relações amorosas) que se utilizam da idéia de identidade. Onde estão as brechas para que os diferentes modos de vida possam emergir sem que o estado ou as leis delimitem seu campo de atuação? O que é essa idéia de representação que sustenta o Estado e as instituições? O que é o direito, a polícia, a mídia regulando a nossa vida? De que forma abrir espaços para que a discussão sobre o funcionamento e até sobre a necessidade ou não dessas instituições apareçam? Como e onde abrir espaços para a discussão da auto-gestão, do protagonismo, da possibilidade de uma vida mais criativa e reflexiva, especialmente nos países pobres, onde mal se tem o que comer? Tem um exemplo bem legal que gosto de falar que é o de um grupo de permacultura urbana que trabalha em Santa Teresa que recuperou com a comunidade uma área degradada de uma favela e a transformou em uma horta ecológica comunitária, resolvendo ao mesmo tempo problemas como fome, doenças, degradação ambiental, falta de perspectiva e geração de renda. Tudo isso sem passar pela estrutura Estado-Mercado de Trabalho, não buscando promover uma inclusão, mas criando-se um espaço de atuação. Outras questões que permanecem em mim: como transcender os dogmatismos e pré-conceitos que dificultam nossa capacidade crítica e tb de entendimento do outro? Quais as lutas possíveis para além da luta de classe marxista? As lutas são muitas, a de classe é apenas uma delas. Existem as lutas internas, de subjetividades, com os mercados, com a fome, com os desejos do corpo, com as diferenças… como diz Guattari, os proletários hoje são os marginalizados, excluídos, imigrantes. O contexto é complexo, ao mesmo tempo em que se diluem fronteiras outras nascem. Então, voltando a questão lá de cima, não sou vegetariana, produtora, professora, cantora, aspirante a isso ou aquilo. Sou um corpo que deseja, que é atravessado por discursos o tempo todo, que está buscando a sua forma de atuação ético-estética no mundo que, aí sim, passa pelo vegetarianismo, pela arte, pela reflexão da minha atuação como professora e produtora cultural, pelo questionamento do impacto do meu consumo, pelo yoga, pela minha relação com o meio ambiente e o outro. Sou tudo isso e mais aquilo que não consigo listar, pq o tempo todo estamos sendo atravessados por tudo. Assim, não sou alguém que pode ser engavetado e etiquetado. Não sou cidadã, consumidora, eleitora, algo passível de se tornar estatística. Sou uma pessoa, com tudo aquilo que é próprio de ser gente. E vc?
Alguns trechos de alguns pensadores-interventores…
Negri (em Exílio)
“A biopolítica é essa perspectiva dentro da qual os aspectos político-administrativos se juntam às dimensões democráticas, para que o governo das cidades e das nações possa ser apreendido de maneira unitária, reunindo ao mesmo tempo os desenvolvimentos naturais da vida e de sua reprodução, e as estruturas administrativas que a disciplinam (a educação, a assistência, a saúde, os transportes etc). […] uma vez admitida essa definição, é preciso, contudo, ir um pouco mais longe e perguntar-se o que significa biopolítica quando se entra no pós-moderno, ou seja, nessa fase do desenvolvimento capitalista em que triunfa a subordinação real da sociedade como um todo ao capital. […] o biopolítico mudou de cara: torna-se biopolítico produtivo. Isso significa que a relação entre os conjuntos demográficos ativos (a educação, a assistência, a saúde, os transportes etc) e as estruturas administrativas que os percorrem é a expressão direta de uma potência produtiva. […] o conjunto das forças produtivas, dos indivíduos e dos grupos se torna produtivo à medida que os sujeitos sociais se vão reapropriando do conjunto. Nesse âmbito, a produção social é completamente articulada através da produção de subjetividade”.
Guattari (em As três ecologias)
“Convém deixar que se desenvolvam as culturas particulares inventando-se, ao mesmo tempo, outros contatos de cidadania. Convém fazer com que a singularidade, a exceção, a raridade funcionem junto com uma ordem estatal o menos pesada possível. (…) Tal problemática, no fim das contas, é a da produção de existência humana em novos contextos históricos”.
Foucault (Em Defesa da Sociedade)
“A biopolítica lida com a população e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder. (…) Não se trata por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivíduo no nível do detalhe mas, pelo contrário, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e assegurar-lhes não uma disciplina, mas uma regulamentação”.

Produção cultural

Alunos lá da Faculdade (pra quem não sabe sou professora substituta de planejamento cultural no curso de produção cultural da UFF) pediram para eu escrever um texto para os calouros e para o manual que eles fizeram sobre o curso. Bem legal isso. Estão voltando as boas iniciativas alunescas lá na procult. Fizemos um debate de ex-alunos essa semana e foi bem legal relembrar um monte de coisas. Reproduzo o texto abaixo. Não sei o que acho dele. As vezes gosto, as vezes não.

Acredito que o ofício de produtor cultural é um dos mais abrangentes, porém um dos mais fascinantes e, ao mesmo tempo, mais perigosos que existem, porque podemos ser criadores e mediadores de desejos e políticas.
Assim, cabe a nós, que nos intitulamos produtores, trilhar os caminhos onde queremos atuar. Aqui vale uma reflexão: até que ponto é um produtor cultural aquele que colabora, hoje, na manutenção de instituições e padrões culturais da megamáquina de produção de subjetividade capitalística, para usar uma expressão muito bem vinda de Guattari. Aliás, esse mesmo pensador chegou a afirmar que cultura seria um conceito reacionário, uma vez que é o motor dessa produção de subjetividade.
Falando assim parece até que não temos alternativas. Trabalhamos com cultura ou, pelo menos, com produções simbólicas, semióticas. E aí? Nos serve ainda Guattari e sua idéia das micropolíticas e revoluções moleculares. Sejamos, então, produtores e mediadores de singularidades em contextos micropolíticos que existam baseados não em regras ou leis das máquinas estatais, empresariais ou qualquer outra megamáquina reguladora, mas que se baseiem em desejos e trabalhem com as multiplicidades e as singularidades (e não dicotomias como as de classe ou de bom e mau); que sejam máquinas de singularização, ou contra-máquinas.
Para beber mais desses pensadores autônomos e errantes, que atuemos nas brechas deleuzianas que se abrem no rizoma da existência, para alterar sempre o fluxo do rizoma, ou que sejamos os mediadores daqueles saberes sujeitados (como nos diz Foucault) em séculos de uma história de opressão e supressão desses saberes, tradicionais ou, simplesmente, não enquadráveis.
Quem sabe assim possamos reinventar a política, a empresa e, por quê não, nossa relação com o mundo e com o outro, para que ela seja mais sustentável e rica em cores, cheiros, cantos, danças e do sentimento de amor à vida.
Ser produtor cultural não é ser o técnico que entende tudo de Lei Rouanet. É, antes de tudo, assumir uma postura frente ao mundo, entendendo que nada está dado e sim, que a realidade é um caldeirão de possibilidades de modos de existir a ser talhada, moldada e desmoldada. Eu poderia aqui enumerar as várias qualidades técnicas que um produtor deve ter, assim como sua postura no trabalho e as possíveis áreas em que ele pode atuar, mas não iria acrescentar em nada, pois há quem faça isso melhor que eu. Prefiro uma reflexão, algo tão pormenorizado hoje em dia.
Acredito, desta forma, que a faculdade pode até instigar essa sensibilidade no pretendente a produtor, mas se não estivermos abertos a ela seremos apenas um técnico. Graduado ou não, o produtor cultural que preza seu ofício é aquele que sente o mundo e quer realizar, criar, fazer a diferença. Entrei na faculdade com esse pensamento, deixei de acreditar nele por um tempo. Mas só mesmo a experiência nos traz certezas. O caminho que trilho hoje me devolveu a certeza nele. Certeza essa que pode um dia ir por água abaixo, pois a vida não é nada precisa. Mas vamos viver o presente trabalhando para que sejamos os poetas do amanhã: arautos, músicos, cantores do amanhã[1]. Que possamos preparar uma canção que faça acordar os homens[2]. E deixar que os desejos, os símbolos, as semióticas com os quais trabalhamos construam os caminhos, as pontes e nossa sustentabilidade como produtores. Esse é o horizonte pra onde navega meu barco…


[1] Walt Whitman. Poetas do amanhã. Em Folhas de relva.
[2] Carlos Drummond de Andrade. Canção amiga. Em Antologia poética.