As quatro estações cariocas

A Primavera

Chegada é a Primavera
Se uirapuru ou sabiá que a saúda, que importa
Correntezas aninham-se aos ventos que celebram pássaros
E as águas correm aliviando o doce calor carioca

Uma tempestade se anuncia no horizonte marítimo
Trovões levantam as ondas e alegram meninos
Ao seu fim, retornam as andorinhas ao Arpoador
E distribuem hipnóticos cantos sob o céu azul

Neste cenário de luz entre o mar e o bairro alto
Ao balançar das árvores e às buzinas de carro
Dorme o mendigo com um buquê de flores e o seu cão ao lado

Do pastoral subúrbio ao centro festejante
Dançaria Vivaldi um samba ao seu próprio furor e abrigo amado
Da primavera, cuja aparência de quase verão é brilhante e austera


O verão

Sob a dura estação pelo sol incendiada
Lânguidos homem e cachorro, arde o meio dia
Libertam as maritacas seu canto estridente
Cantores correm para os teatros à refrescar a poesia

Um doce vento norte se vai, e uma disputa
É improvisada pelo sudoeste das viradas na praia
E lamenta o marujo, porque sabe
Teme a feroz tempestade e é seu destino enfrentá-la

Toma dos pobres , após a lida, o repouso
O temor de alagamentos e trovões
E, de repente, inicia-se o tumulto furioso

Temor este, verdadeiro, que fulmina um céu vermelho
E um vendaval, a controverso modo, expulsa o suor dos dourados corpos
Que ora chove e assusta, que ora é o sol a pino que expulsa


O outono

Celebram os cariocas, com danças e cantos,
O grande prazer de um clima mais ameno
Entorpecidos ainda pela cerveja
Encerram as noites em bares sob a lua cheia

E ao fim dos carnavais e do sol estendido
O clima de outono é aprazível
E a estação convida a todos
A gozar um sono auspicioso

Mas o trabalhador, na nova manhã, sai à lida
Com ferramentas, gravatas, corre ao metrô, que irrompe
E foge do calor, da navalha, fogem dele as suas madrugadas

Exausto e em busca de um grande amor
Por dias e noites de cansaço e ameaças
Seu corpo pede calma, seu coração, oprimido, pede alma


O Inverno

Agitado tremor traz o dia cinza
Ao alegre sussurrar de tempos mais gélidos
Sacamos nossos casacos e echarpes
Batemos os dentes para lembrar que é inverno

Subir a serra e acender lareira
Enquanto lá fora a chuva fina traz neblina
Caminhar sobre o asfalto molhado a passos lentos
Gozando cada momento de frio parco, com medo de deixá-lo

Imaginamos gelo, abrimos vinho, namoramos no edredom
Há melancolia também em nossos corações
Que buscam a poesia no cintilar do orvalho da manhã

Sentimos, ao abrir a porta, arrepiar os pêlos
Ventos invadem os desejos por todos os lados
Cariocas também gostam de dias nublados

Uma releitura carioca dos sonetos de Antonio Vivaldi
Escritos no verão de 2016, no Rio de Janeiro, para interpretação com a orquestra Johann Sebastian Rio

O universo das coisas não publicadas

Sento-me diante dela
A quem costumamos nomear vida
E à rosa subsiste seu nome

Deixo de lado cetro e vaidade
Acomodo-me em seu sítio forte
Onde trono é tronco de árvore

Ela me solicita despir-me
Abandonar os livros e a razão
Para ouvir o que grita

Recolho os meus sentidos e os vazios
Meus demônios dizem
Que talvez não valha a pena

Uma nudez com pena da morte?
E a morte ri na minha cara
E diz que é vida ainda

Retiro, então, a pele
Marcada mesmo
É por traços invisíveis

E encaro os profundos olhos dela
Vida ou morte, tanto faz
São fêmeas

Ambas dão a luz
E são a mesma face cálida
Mirando as nossas fragilidades

Para extrair delas
O óleo essencial de nossas almas
Verdades

Busco em seus espelhos
Os porquês
Em vão, tolice

Disparo sangue pelos meus
Com o coração chovendo espinhos
Despedaçado

Ao lembrar a infância feliz
Com cheiro de mato
Totem de um tempo já perdido

O que importa é fluído
A vida é círculo
E de tudo resiste sempre uma flor

De cada vida na nossa, pólen
Flor até mesmo quando feia
Como o poeta confrontou à náusea

Espiral de muitas camadas
Tudo o que está fora dos compêndios
Incerta e exata

Universo paradoxal
Das coisas não publicadas
De tão singulares

A vida
Tão frágil
E ainda assim uma estrela iluminada

Pote de ouro
Círculo mágico
Lótus em comunhão com o infinito
Composta de notas raras

E bela, até mesmo no fim
E todo fim é também início
Óbvia conclusão
Pra um interstício

Tema clássico

Escorre meu coração
Através de um adagio
A chuva rememora
O frio da infância
Era um naufrágio de névoa
Cobrindo as montanhas
E cheiro de avó na cozinha
Preparando a refeição
Escorre e aperta
Respira e se eleva
Ao solo terroso
Ao que espera
De um desejo novo
Atravessa a partitura
E cria, o coração,
Literatura
A chuva insiste
Mas acalenta quentura
Da companhia
Dos poetas na estante
Estou repleta
Completa de mim mesma
O frio traz saudade
O calor que tenho dentro,
Liberdade
Escorre meu coração
Ora grave
Ora vivace

País tropical

Moro num país tropical
Abençoado e maltratado
Há no parlamento
Asquerosos mal dotados
De intelecto e amor
Ladrões por toda parte
E boa parte da gente
Dá jeitinho em tudo
Pura arte?
Corrompem-se por bem pouco
E suas fraquezas esfaqueiam
As potências do outro

Dizem que todo mundo
Tem seu preço
Já me ofereçam tudo:
Cargo, dinheiro
No dia a dia
Tentam me comprar
Com vaidade, desejo
Mas eu prefiro as árvores

Moro num país tropical
E há nele um homem prepotente
Que se intitula presidente
E se eu quisesse continuar a rima
Diria que impotente
E por aí vai

Mas minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá
E ela é um deleite para poetas
Pena que não se compreende mais nela
A força dos estetas, dos livros e das festas
Mancham de sangue os coretos
Rotulam jovens estudantes de baderneiros
Estrangulam as liberdades
Como estupram moças a cada esquina
E depois as culpam pela saia pequenina

Mas dizem que a história é cíclica
– Deveríamos respirar? –
E se isto nos desespera
Também nos alerta
Para lembrarmos que um dia tudo irá mudar
Mas é claro que não do seu sofá
Há que se levantar e criar!
Este é o lema
Busquemos palavras de ordem
Que sejam mais que emblemas
A forma cada um que busque a sua
Há inúmeras
E nenhuma é pequena
Pequena é a alma dos que nos acham supérfluos
A minha poesia, a sua arte, o nosso mistério

Patológicos do poder
E do rebanho
Grito alto a vossas mediocridades:
A vida bate! Mesmo que tentem matar a nossa arte.
“Subterraneamente, a vida bate”

Rio de Janeiro
Novembro/2016

Phoenix, um poema

Para Sergio Roberto de Oliveira
De tudo renascemos – Anunciou-se!
Do pó viemos ao pó retornaremos
Para dele, reerguermos sonhos – não muros,
No ciclo eterno de vida renovada
Teu corpo é de cada humano – Alvorada!
Tua dor quem sente é o mundo
Pelos fios da linguagem universal
Emoção-sal
De corpo água-forte
Respirar não é mais
Que impermanência e sorte
E, de repente, a morte
E o primeiro reviver
Simultâneos intervalos
Quando nasce a morte
Morre o passado
Ambos um só, sem hiato
E eis que ela, a vida,
Brilha no choro agudo
Da criança recém-nascida
Morre o jovem, nasce o pai!
Eis o que se consuma!
E celebra-se a bruma!
Segue-se a jornada
Em seu curso, amarrada,
A criança crescendo, o pulso, a estrada,
Dias e noites cumprindo o seu destino insano
E, então, de novo ela, dilacerando,
A morte na forma do fim do amor
Para renascer, em exato instante,
O novo amor que se torna errante
Qual relógio que passa de pai para filho
Mas em novo pulso, resignifica
Morre o marido, nasce o eterno amigo!
Eis o que se consuma!
E, então, inteiro homem!
Até que num pedido de socorro do corpo
Toda lógica perde o sentido
Tonalidade, rima, ritmo
Tudo é abismo
O que se consuma é paraíso?
O que pode um câncer?
Corpo mesmo que se dobra
E se retorce
Cada célula alimentando à si mesma
A morte
Tentando ela entender, a contraforte,
A nota distorcida,
A vibração de desejos que não mais
Compõem-se com os beijos
E definha, renega,
E, como se não bastasse tal sorte,
É renegado
Vela rasgada
De barco abandonado
Que chora
Chora rios
Hipérboles, sim, fazem sentido!
E de tal coisa abissal que é o abandono
Brota a morte de tudo ao redor
Estepe estranha da alma
Lama arremessada na calma
Cheiro de enxofre
Maremoto na noite
Intransponíveis montanhas
Era melhor que fosse mesmo lama
Infinito sem rumo do corpo nu
Era melhor que não fosses tu, mulher…
Poderia dizer
Poderia nunca mais querer viver
Mas amor…
Amor é para os fortes
É atravessar desertos sem garrafas d’água
E sobreviver!
A alma de quem ama
É suspiro em meio ao drama
Jamais adormece ou se apequena
Ou faz contas por obrigação
Silêncio em meio ao não
E festa quando tudo é trama
E a tristeza,
Ainda que o poeta diga não ter fim,
Consome-se em riste para renascer.
Verso triste este meu
Que chega a ti para dizer
Imperativo: sorria!
Que o que não tem mesmo fim
É a vida
Ainda que as células
Digam que sim
Mas tu crias!
Grades férreas
E doces de sonora poesia
Para nós a vida é eterna
Do tempo, terna senhora!
Eis o que se consuma!
E revem a aurora!
Pois, anima-te, amigo!
Veja que o horizonte faz abrigo
Uma luz de lua nasce sem sentido
Embriagada a fome nossa
Dos que criam livros
De palavras, notas
E receitas claroneadas
A natureza é sábia
E tudo ensina
Alumiando pós dias cinzas
Renasce alegria
Arrumação!
Eis o que se consuma!
Morre uma vida, nasce uma!
De tudo renascemos
Do pó viemos, ao pó retornaremos.
Anunciou-se – E fez-se som!

Vanessa Rocha
Rio de Janeiro, junho de 2016
Inspirado na história de Sergio e em sua música autobiográfica
Phoenix, para clarineta e orquestra sinfônica

Derradeiro

Ante o imponderável
Paro e sinto
Que mistérios ligam
Os meus sentidos
Ao infinito
Pensar alturas não é só para poetas
A vida tem asas e abismos
Pairando no tempo o espaço aberto
Rasga um coração
Derramamentos
Fosse meu corpo um cetro
Eu o traria agora para mim
Dono de si-realeza-interna
Cavalheiro de cor marfim

Ante o impossível
Paro e observo
O antes improvável
Torna-se certo
Que de noite seja dia
Porque não
Que o dia seja raro
O beijo desejado
Acontecido
O fosso das almas perdidas
Encontrado
Fosse minha mente uma jangada
Eu faria deste planeta um só mar
Inteiro sem fronteiras e sem leis
Cozido no amor com sabor de manacá

Ante o inconsciente
Paro e respiro
Que palavras se parecem
Com o que digo
Que as estrelas sejam olhos
Que os olhos sejam fome
Talhado na pedra o charque
Fervido na brasa o molho
Arado o solo-chão para o sexo
Fosse o meu mundo terroir
Eu distribuiria música com Dionísio
Beberíamos todos em sol maior
Aniquilados pela sorte do vinho

Ante o imponderável
Arde sempre o impossível
Inconsciente sensitivo

E ante tudo isso
Existe nada mais
Que os nossos frios e sismos

Abalos humanos desmedidos
Estejam preparados os nossos pêlos

Tudo tem origem
Num ínfimo instante

Derradeiro

Imoral e física

Sou fagulha de sol
Na direção do improvável
Tudo o que imagino
Realizo
E minha aura radiante paiol
Veste túnicas de cetim sanguíneo

Há que se considerar que,
Afoita,
Jamais manseio
E que, carregada de arpejos,
Não me entrego a qualquer fato
Hoje, avalio ontem
Repenso
Estratégia me faz
O tempo me ensinou a ser selvagem
E a catarse dos momentos
A manter foco em arte

Sou arma de forte na entrada no mar
E pirata que toma os navios da realeza
Não concebo
Moral
Que a alma não aprove
E me debruço à falta dela
Porque me sirvo
Desejo

Há quem se alimente de restos
E se contente com palavras belas
Ou sou diversidade
Aquarela
Ou me recuso a ser esteta

Prefiro a imoralidade da traição
À sensação castrati de viver obrigada
De que adianta alcançar as notas
Sem que o corpo conheça
A dança apaixonada

Há quem pense em agudos
E, só depois, em graves
Eu deslizo por toda a grade

Sou fagulha de nada
Que sabe ser tudo
Não me culpo a arrogância
De me sentir um Deus

Existem ditados
Que dão lições de sentido
Ouço apenas os que traem
Nosso cotidiano cinismo

Há quem se aprofunde nos rasos
Eu, encaro os abismos

Carta a quem interessar

Não me importam as tuas narrativas
Mas o que dizem as entrelinhas
As fotos que publicas
Os poemas que recordas
As músicas que gostas
Não me dizem nada
Não sou fã das aparências
Procuro o que escapa no teu gesto
A significância do que mostras
E o desejo por trás de tuas apostas
Não me interessam
A voz bandida ou de anjo
Se tu te achas do bem
Ou se te achas do mal
Eu me divirto com adjetivos
São apenas possibilidades da linguagem
Julgamentos morais não me atraem
Pois o que realmente te faz
Fica guardado no teu plano mais secreto
Se tu gostas de mim ou não
De nada me interessa
Tua opinião é só mais uma entre sete bilhões
Quero saber o que isso me diz sobre ti
E o que te faria largar o teu ego
O que expressas numa mesa de bar
Interessa à sociologia e ao teu analista
(Como o que expresso, ao meu)
A mim interessa o que existe
Quando estás só e em silêncio
Quando toda a luz já se apagou
E toda a cultura dorme
Quando mostrar-se já não é necessário
E os medos e as dores
Já não podem ser deixados de lado
Quando sofres, me interessa!
O que te alegras a alma sem alarde, me interessa!
O que desejas quando ninguém está por perto,
O que te moves e te feres no peito,
E te fazes todo dia manter-te no caminho…
Isso é o que me interessa de ti!

Oração

Que a poesia me livre 
Das suas prisões
E das minhas e das de todos nós
E me permita, ela,
Sempre a liberdade
Ainda que subjugada
Sob a bandeira da necessidade
Ou a sentimentos presos
Em gargantas ilhadas
E que minhas verdadeiras intenções
Não sejam reveladas 
A quem não merece conhecê-las
E meus desejos mais secretos
Sejam apenas meus e daqueles que escolho
Que o tesão se faça todo dia
Nas brechas dos momentos burocráticos
E através deles
E a ironia sorria para os que mentem a si mesmos
E fingem ser o que não é
De tal forma que se tornam caricaturas ao espelho
E que venham sonhos e nos libertem, todos
E sejam eles os meus guias
Nessa estrada de vidas que se querem poucas
Que minha face mais verdadeira
Seja dada aos momentos de fato sinceros
E as máscaras certas sejam usadas
Nas horas em que só cabe sobrevivermos
Que eu não tenha medo
E ele também não 
E ela também não
E nem eles, nem nós, 
Nem irmãos ou inimigos
E sejamos todos capazes
De ver que nada somos
Para além do nosso umbigo
Para que a poesia de ser nada
Se instaure nas raízes do coração selvagem
E faça brotar uma vida mais leve
Filha da mais profunda viagem

O primeiro dia

Todo dia é sempre
O primeiro dia
Do resto de nossas vidas

Dia de dizer palavras duras
Que já não podiam não ser ditas
E ouvi-las, algumas

De descobrir que o amor se fortalece
Mesmo quando a gente esquece
– Quando se deve esquecer –
E nos dias cinzentos dos afastamentos
Que carregam a esperança
Dos novos e futuros felizes momentos

Todo dia é dia de saber
Que existe amor no sim
Mas também no não
E que não e sim
São como luz e escuridão

Todo dia é dia de jogar coisas fora
Aquelas cartas de anos atrás
Que estavam empilhadas em pastas
Por sua vez empilhadas em armários
Por sua vez empilhados – pesados –
Num excesso de memória

Dia de descobrir que elas
Não servem mais a nada
Que não à história
E é só no coração o seu lugar

Para que guardar tanto objeto
Em um mundo já repleto?
E porque represar energia
Quando deve o novo chegar?
Se o se que passou só existe
Como lembrança e aprendizado
– às vezes como o inventado –
E nem existe ainda o que virá

Sejamos poetas do agora!
Porque todo dia amanhece
Anoitece e retorna a aurora
Sempre na promessa do novo
Sempre na função de um espia
Olhando em direção ao horizonte do mar
Com olhos de quem busca a infinita alegria

Porque todo dia é de basta
Todo dia é de festa
Todo dia é de não dá mais
Todo dia é de promessa
Todo dia é do fim delas
Todo dia é de um santo
Todo dia é de engano
Todo dia é dia de dizer eu te amo!

E de aceitar
O que não se controla
O que não se isola
E deixar voar os pássaros
Que precisam sair das gaiolas

Todo dia é dia de enfrentar
O medo do suspiro derradeiro

E seja ele banhado de paz ou de dor
É sempre o primeiro

Astrolábio

Partiu mais um barco

Levou pro sem rumo da vida
Os barris de rum vazios
Quinquilharias que já não
Faziam sentido

Roupas velhas,
Papagaios mortos
E todas as cartas de um baú
Já carcomido
Onde a craca dos mariscos
Longe d’água
Começou a dar mau cheiro

Partiu mais um barco
E, em mim,
Partiu-se ao meio

Mas eu, pirata que sou,
Roubei outro para mim!

Meu sonho
Nunca é um barco abandonado
Pois é fiel ao destino
De não ficar ancorado
No mínimo,
Somos uma família de exilados
Meus sonhos, o sol, os peixes
E os pássaros
Conversando todas as manhãs
Sob um convés alado

E o que dizer do espelho?
Quando olho pro mar
E me reconheço
Sei que antes

De amar qualquer coisa

Devo sempre
Amar meu próprio zelo

No mais,
Entre uma solidão e outra
Encho os barris
E convoco a artilharia

Agora, ando apenas
Com artilharia pesada
E não há mais desejo em mim
Que passe fome
Pois a arma
Mais forte que encontrei

Foi dar ao barco
O meu próprio nome

Então, carregado o barco
De rum e pólvora de qualidade
Faço festas
E convido outros piratas

Nessas horas,
Abandonado é o coração
De quem não se permite navegar
Meu barco não!

Esse é forte, seguro,
Aguenta as tempestades

Sem renegar

Porque sem elas,
Ele não pode provar
Que é o melhor barco

Que já existiu!

Capaz até mesmo
De suportar a farra
Dos marinheiros que invadem,
Sem convite, o festejo,
Enchem o barco de música e beijo
E, depois,
O acham demasiado

É nesta hora

Que me torno meu próprio

Astrolábio
E me mantenho
Rumo às estrelas
Do mundo desejado

Partiu mais um barco
Roubei outro para mim
E o mar é um círculo

Mas tudo depende

Se paralelas se cruzam no infinito

Liberdade

Perder o que nunca foi seu
Não é perder
Nascemos sem nada
Morreremos igual

E sozinhos

E isto é liberdade

Uma vida humana
Só sabe ela mesma
O resto é sensação
E memória do outro

Então, para que preocupar-se
Com frivolidades?
E porque ter medo?

Estamos aqui para ser!
E o que restará de nós
Ainda será do mundo
(Mas nunca nosso)

E o mundo fará reverências
A quem o deixar regalos

Só construímos verdadeiramente algo
Quando não nos apegamos
Ao que estamos construindo
Mas o deixamos pertencer à vida
Sujeito, assim, às intempéries do tempo

Para ser inteiro
É preciso entregar

Pois deixar um rastro,
Filhos, livros,
Música, a ciência,
Tudo isso é legado apenas
Quando não se trata de vaidade

Não temos nada
Entendendo isso
Podemos tudo

Ao fim de cada rumo
Chega um novo
Súbito vem a primavera
E o que mais importa
Que a liberdade de ter tudo sem ter nada?
De florescer sabendo que mais tarde
O inverno levará as cores…
De pisar como bicho no ciúme, na raiva,
E nos destroços das paixões malditas
Para deixar florescer as bem quistas

As que nos dão potência
As que não aprisionam
As que fazem verão
As que permitem o outono

Não há lei maior
Que a lei da própria vontade
Porque todo ser que é humano
Só segue regras sociais
Por medo, prisão ou necessidade

A vontade é a vida!
Sempre dupla, em si mesma,
E infinita

Única regra que, por fim, dita

A alma humana é livre por natureza!

Todo o resto é somente convenção
E toda convenção
Só pode ser seguida, de fato,
Por tolos
Ou por eles formulada

Os livres escapam

Negociam, mas escapam
Estão nela, mas escapam
Podem até beijá-la…
Podem até ser por ela escravizados…
Mas escapam!
E se reconhecem uns aos outros

Sabendo que regra nenhuma vale
Além daquela da coragem
De olhar a si mesmo para ser
Mundo

Pois títulos não valem nada,
Mas as honras das batalhas!
E conselhos nada legislam
Que não suas próprias pequenezas
Construídas, letra a letra,
Por medo da incerteza

Mas quem disse que a vida é certa?
Quem disse que é a moral que nos regula?
Pergunte aos hormônios
Pergunte a lua
Pergunte ao coração que pulsa
À razão que analisa
À meditação, que silencia
Para abrir a verdadeira escuta

Nascemos sem nada
E morreremos igual
O que fazer neste tempo
Se não realizar em nós
E em nossas obras
O objetivo antitético da vida
Qual seja:
Permanecer se transformando

Por isso, obedecer
Apenas aos desígnios
Da missão que viemos ter
E missão se sabe
E exige coragem
Pois não se brinca
Com a liberdade

Esta pede disciplina
Controle do próprio tempo
Para que não o controle
Mais nada
Instituição
Moral
Legislação
Tudo isso é tão contra a vida
Que nos cabe rir e dançar

Se às coisas que criamos
Não déssemos caráter de eterno
Ou a gravidade do sério –
como alguém que franze as sobrancelhas
para dar bom dia –
Não precisaríamos nos esforçar tanto
Para sermos livres

É preciso sempre lembrar:
A voz que importa é a do silêncio
E não a do legislador
E mestra é a solidão
Para que tenhamos relações livres e potentes
Porque só assim são reais
Sem medo da morte delas mesmas
Concretas na sua incompreensão
E sábias em sua insegurança

E se houver servidão ou apego
Que sejam conscientes
E sejam voluntários
E não se cobre reciprocidade
Como juros de um cartão
E que seja por amor!
Porque não há motivo maior que este –
A resposta para todas as perguntas

Amor antes de tudo à vida e a si
Pois é preciso ser egoísta
Para ser coletivo, do outro e generoso

O verdadeiro egocêntrico
Não é o egoísta
– o que busca olhar-se ao espelho –
Não é o que luta por si
Mas o que luta em nome do outro
Seja egoísta
Não seja herói
Lute pela vida
E não por “algo maior”

Não existe algo maior
A não ser na construção diária
Do desejo compartilhado
Esta é a força real dos encontros
E não a condução por códigos
Juridicamente – ou moralmente – assinados

E se existe um rei a quem servir
Ele está dentro!
Se existe um Deus
Ele vive como eu vivo!
Porque se não nos reconhecemos
Deuses e reis diante do espelho
Jamais seremos capazes de sermos
Servos da vontade – a única justa servidão –
De realizarmos a vida em potência e comunhão
Lembrando ainda que se não soubermos
A verdadeira função de um deus e de um rei
Cometeremos atrocidades
E, o que é pior,
Em nome da liberdade

Deuses e reis
Não deveriam existir que não para servir
O rei que não serve ao seu povo
Assim como o deus que não serve ao seu
Não podem assim ser chamados

Lembremos novamente
Que o egocêntrico
É o que fala pelo outro
E não por si
Quando falamos apenas por nós mesmos
Somos a voz do universo
Porque ele, inteiro,
Reside dentro de nós
– e fala através da gente –
Falar pelo outro
É escravizá-lo
E não reconhecê-lo como igual

Pois a única servidão que vale:
A que é liberdade!
E liberdade, uma vez conquistada,
Não se vende nem se dá a escambos

Compartilha-se e torna-se o caminho!

Boa parte da dor e do sofrimento
Provém da especulação
E não do concreto
Se a mente cria o medo
É a mente que liberta
E nos revela Deus dentro de nós

E se a vida é uma eterna
Roda da fortuna
Melhor mesmo é olhar para dentro
Porque o centro nunca gira

Estar seguro é estar consigo
O resto é dúvida

Então, para que o medo?
Viva tudo o que tiver para viver!
E pergunte a si mesmo:
Qual é o meu centro?

Nascemos sem nada
E morreremos igual
Ao entendermos isto
Passamos a ter tudo!